A partir de uma lógica cultural e demográfica, a Kurandé Cosméticos olhou para a beleza que existe dentro das favelas, superou barreiras estruturais e investiu na geração de uma nova cadeia de consumo, criando um novo mercado
“No final da década de 1950, Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, definiu as favelas brasileiras como “quartos de despejo”. Morando em uma favela em Canindé, em São Paulo, ela trabalhava como catadora de lixo, e escrevia sobre o cotidiano de sua comunidade em cadernos antigos que desenterrou do lixo.
Mais de 70 anos depois, as condições não melhoraram muito para os 13,6 milhões de pessoas que vivem nas favelas brasileiras. Muitos ainda carecem de moradia de qualidade e acesso ao saneamento, e também são excluídos por muitas das grandes empresas de bens de consumo em rápido crescimento.
Como resultado, milhões de pessoas que vivem em favelas. A maioria da população que vivem nesses territórios é composta por afrodescendentes, originários de comunidades indígenas, quilombolas ou migrantes. E todos, aliás, lutam para acessar muitos produtos e serviços que poderiam melhorar suas vidas.
A Kurandé Cosméticos Naturais, empresa brasileira de cosméticos, está tentando mudar essa realidade, pelo menos no que se refere a higiene pessoal e cosméticos, que são inacessíveis para muitos. Fundada por Felipe Garcia e Cláudio Marques, o foco da Kurandé em pessoas que tradicionalmente foram excluídas da indústria de cosméticos tem as marcas de uma clássica inovação criadora de mercados.
Num sentido mais didático, inovações criadoras de mercado transformam produtos complicados e caros em produtos simples e acessíveis, possibilitando o seu consumo a uma nova camada da população. Comumente, chamamos essas pessoas de não-consumidores.
Com foco inicial nas mais de 180 mil pessoas que vivem no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a abordagem de Kurandé para a criação de um novo mercado tem compensado, pois a empresou triplicou suas receitas e sustentou seu crescimento mesmo durante a pandemia de covid-19. Como resultado, continua se expandindo e já atendendo mais seis favelas brasileiras.
No entanto, como outras empresas que investem na criação de um novo mercado, o caminho de Kurandé não tem sido fácil. Como comprovam as pesquisas realizadas pelo Clayton Christensen Institute, as organizações que criam novos mercados são frequentemente confrontadas com três grandes desafios.
Abaixo, compartilhamos como o Kurandé está superando-os utilizando estratégias comuns empregadas por outras organizações de criação de novos mercados.
Desenvolver soluções para não-consumidores pode ser um desafio, especialmente porque eles estão acostumados viver sem acesso a muitos produtos e serviços. Para projetar produtos que os não-consumidores adotarão, empresas que criam novos mercados precisam enfrentar barreiras que impediram o consumo no passado, como: dinheiro, acesso, tempo e habilidade.
Entre as mais de 100 organizações criadoras de mercado estudadas pelo Christensen Institute, todas precisaram superar pelo menos uma dessas barreiras, enquanto 95% precisaram superar múltiplas barreiras ao mesmo tempo. Como em todos os aspectos do processo de criação de mercado, as circunstâncias importam.
A primeira barreira de consumo que a Kurandé removeu foi o dinheiro. Em vez de ir pelo caminho mais caro que muitas empresas brasileiras de cosméticos tomam, importando as matérias-primas que usam para seus produtos, a Kurandé utiliza plantas e ervas locais. Ao fazê-lo, Kurandé é capaz de reduzir custos porque não está absorvendo o custo de produção, transporte e importação de outros países.
O próximo desafio depois de enfrentar as barreiras que inibem o consumo é criar um novo mercado. Para isso, 100% das organizações estudadas tiveram que redefinir suas atividades empresariais e estrutura de custos para alcançar novos consumidores, ao mesmo tempo em que garantiram um caminho para a rentabilidade.
Kurandé desenvolveu uma nova cadeia de valor para sua produção e distribuição dentro das favelas. Isso possibilitou que a empresa vendesse seus kits de produtos por cerca de metade do preço de produtos típicos no mercado, mantendo ainda boas margens de lucro.
Além disso, ao invés de importar matérias-primas caras, os fundadores da Kurandé basearam as fórmulas de seus produtos em receitas antigas de sua mãe e bisavó, personalizando os produtos para as particularidades das peles pretas e marrons. Essas receitas usam produtos locais mais baratos.
De acordo com o cofundador do Kurandé, Claudio Marques, “” Algumas marcas de cosméticos naturais usam óleo essencial de uma erva que você só encontra lá fora, em uma região super fria e distante. Isso aumenta o custo de produção e o preço final. Então, o que fazemos é focar na sustentabilidade que é real: por que eu deveria usar óleo essencial de uma erva cara se eu posso ter o mesmo efeito com uma erva brasileira aproveitando o conhecimento de nossos ancestrais?””
Particularmente quando se busca inovar em economias emergentes, muitas vezes não é suficiente desenvolver excelentes estratégias e estruturas de negócios. O ambiente de negócios em muitas economias emergentes, onde há um potencial significativo para inovações criadoras de mercado, é muitas vezes imprevisível, e a burocracia governamental pode ser lenta e mergulhada na corrupção.
Como organizações criadoras de novos mercados que optam por operar nesses países, como o Brasil, devem pensar nesses obstáculos?
Tendo desenvolvido um produto em um setor altamente regulado e dominado por multinacionais, os fundadores da Kurandé superaram alguns desses obstáculos, sendo proativos e acertivos na forma como gerenciam seu relacionamento com as agências reguladoras.
Com o objetivo de reduzir o tempo na obtenção de sua licença de produção (que leva em média dois anos no Brasil), a empresa ajustou sua estratégia inicial, optando por desenvolver sua fabricação através de uma parceria. Fazendo isso, conseguiu obter sua licença operacional em seis meses, sendo capaz de reduzir os custos iniciais de produção.
Kurandé ainda é uma empresa jovem, mas tem uma ambiciosa missão de não só disponibilizar seus produtos para quem vive nas favelas, mas também celebrar as culturas dos povos negros e indígenas. Sob o slogan “”Do Complexo do Alemão para o mundo!””, a Karandé está fazendo exatamente isso.
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