O viralatismo brasileiro em relação ao Fundo Amazônia chega a ser uma ofensa aos vira-latas, mas ainda não há outro complexo que explique melhor o que está acontecendo com essa iniciativa
A cunhagem do termo viralatismo é atribuída ao grande escritor Nelson Rodrigues, cronista que captou em seus textos a essência do comportamento de uma parcela do povo brasileiro. A definição do viralatismo brasileiro é a nossa baixa autoestima e como resultado a posição de inferioridade auto infligida em face do resto do mundo, atributo também conhecido como complexo de vira-lata.
Concordo plenamente com Nelson Rodrigues: esse desvio de caráter verifica-se comumente em parte da elite intelectual brasileira que constantemente bajula os países ricos, com especial predileção pelas nações europeias e pelo estado americano da Califórnia. Um parênteses: discordo, entretanto, que vira-latas apresentem esse tipo de comportamento. Talvez vira-latas famintos. Sou tutor de duas caramelos pretas e um “yorklata”, todos muito empoderados. Enfim, gostaria de registrar o meu desagravo aos vira-latas.
O Fundo Amazônia (FA) foi criado com o objetivo de financiar ações para redução de emissões de gás carbônico (CO2) provenientes do desmatamento e da degradação florestal, majoritariamente no bioma amazônico e seletivamente em outros biomas brasileiros e estrangeiros. O FA utiliza um mecanismo de financiamento conhecido pelo acrônimo REDD+ desenvolvido no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) para remunerar países em desenvolvimento por seus resultados relacionados a atividades de:
1. redução das emissões provenientes de desmatamento;2. redução das emissões provenientes de degradação florestal;3. conservação dos estoques de carbono florestal;4. manejo sustentável de florestas; e5. aumento dos estoques de carbono florestal.
O Fundo Amazônia foi proposto pelo Brasil em 2007, na 13ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e contratado junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – gestor do fundo – em 2008, por meio do Decreto Presidencial nº 6.527. O Fundo Amazônia já recebeu aproximadamente R$ 3,4 bilhões em doações não reembolsáveis, sendo 93,8% provenientes do governo da Noruega, 5,7%, do governo da Alemanha, por meio do KfW Entwicklungsbank, e 0,5%, da Petrobras.
Pois bem, nada além do viralatismo explica a cobertura da imprensa e a repercussão entre os formadores de opinião brasileiros da visita do primeiro ministro Olaf Scholz da Alemanha ao Brasil, seguida da audiência de cinco minutos concedida ao presidente Lula pelo seu homólogo americano Joe Biden. Aparentemente, em ambas as ocasiões, os mandatários estrangeiros ofereceram dinheiro e apoio ao Fundo Amazônia.
O jornalismo ativista brasileiro idolatra os europeus e os alemães em particular. Da minha parte não consigo esconder o meu mau humor com a transição energética alemã, a chamada Energiewende, que penalizou a energia nuclear permitindo uma sobrevida desnecessária às termoelétricas a carvão no país europeu. Por outro lado, considero a humanidade devedora vitalícia dos descendentes dos aldeões da região da Germânia que em 1516 criaram a lei da pureza da cerveja.
Enfim, segundo o relatório de auditoria do Fundo Amazônia mais recente, publicado em junho de 2022, a Alemanha aportou no FA até 31 de dezembro de 2021 o total de US$ 68 milhões. Este montante equivale a aproximadamente 14 milhões de toneladas de CO2 abatidas da atmosfera segundo metodologia de cálculo estabelecida pelo comitê técnico do fundo. A Alemanha emite aproximadamente 2 milhões de toneladas de CO2 por dia. O primeiro aporte da Alemanha no FA ocorreu no dia 29 de dezembro de 2010, ou seja, as doações alemãs em pouco mais de 11 anos de fundo equivalem a uma semana de emissões do país europeu. Não me parece necessário um diploma de economista da Unicamp e cálculos sofisticados para chamar esta doação de dinheiro de underberg para a Alemanha.
Por seu turno, a Noruega aportou até o final de 2021 o montante de US$ 1,2 bilhões no FA. O país escandinavo produz 2 milhões de barris de petróleo diariamente o que equivale a aproximadamente 360 mil barris per capita. Este volume excepcional para um país pouco populoso coloca a Noruega na quarta posição em termos de produção de petróleo por habitante, atrás apenas do Kuwait, do Qatar e dos Emirados Árabes. E é muito importante que a Noruega continue produzindo petróleo.
O mundo consome aproximadamente 100 milhões de barris diários. Me parece intuitivo que caso a Noruega abandonasse o mercado de exploração de óleo e gás, algum outro produtor de petróleo eventualmente menos comprometido com a descarbonização iria suprir a oferta do país escandinavo. Em termos econômicos, desde o começo do ano, o barril de petróleo tem sido negociado a US$ 80 aproximadamente, o que significa receita diária de US$ 160 milhões para o país do artilheiro Erling Haaland. Cada barril de petróleo emite 0,43 toneladas de CO2, ou seja, a Noruega coloca no mercado um produto que, quando utilizado, irá emitir mais de 300 milhões de toneladas de CO2 anualmente.
Curiosamente, o dinheiro aportado pela Noruega no FA ao longo de 13 anos equivale a pouco mais de 240 milhões de toneladas de CO2 abatidas da atmosfera, sempre segundo metodologia de cálculo estabelecida pelo comitê técnico do fundo. Não é necessário um diploma de economista da PUC do Rio de Janeiro e cálculos sofisticados para concluir que o aporte da Noruega é dinheiro de aquavit – a bebida mais popular do país escandinavo.
Já durante a visita oficial do presidente Lula aos Estados Unidos, enquanto Joe Biden cochilava, aparentemente o governo americano oferecia US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia. Na próxima vez que um estrangeiro lhe perguntar o significado de dinheiro de pinga use o exemplo da oferta de Joe Biden ao Fundo Amazônia. Não conheço melhor definição.”