O Marco Regulatório Trabalhista Infralegal impôs restrições em termos de tributação previdenciária sobre a folha de salários, inclusive em temas como o vale-transporte pago em dinheiro. No contexto do home office, tal restrição se torna ainda mais impactante
Após quase dois anos de trabalho remoto forçado, o retorno presencial ocorre de forma gradual. Apesar disso, para a grande maior parte das empresas, o trabalho presencial não voltará a ser como era antes. A implementação de um sistema de home office (total ou parcial) é uma realidade no Brasil e no mundo. Suas vantagens, desvantagens e consequências jurídicas ainda estão sendo debatidas.
Na medida em que os empregados passam a estar mais tempo em casa, há outro tema relevante: benefícios como o transporte continuarão a ser concedidos? Há a possibilidade de flexibilizar este benefício?
Publicado em 10 de novembro de 2021, o decreto 10.854/2021, também conhecido como Marco Regulatório Trabalhista Infralegal, introduziu novas disposições e restrições em termos de tributaçãoprevidenciária sobre a folha de salários, além de consolidar e simplificar normas trabalhistas. Contudo, antes de comentar especificamente sobre esse ponto, cabem breves considerações sobre a hipótese de incidência das contribuições previdenciárias.
A Contribuição Federal, em seu artigo 195, estabelece os contornos da contribuição previdenciária. A hipótese tributária desse tributo restringe-se ao pagamento de salário e demais rendimentos do trabalho. Por sua vez, o artigo 201, parágrafo 11 determina que somente ganhos habituais devem incorporar o salário “para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios”.
Os artigos 22, inciso I e 28 da Lei nº 8.212/1991 determinam que a contribuição previdenciária somente incide sobre os rendimentos pagos ao segurado empregado ou contribuinte individual, em retribuição ao trabalho ou serviço por ele prestado.
Em resumo, segundo a Constituição de 1988, na legislação ordinária e com base no entendimento da jurisprudência atual, um pagamento deve ser levado em consideração para recolhimento da contribuição previdenciária somente quando:(i) for concedido habitualmente ao empregado;(ii) decorrer do trabalho prestado (retributividade);(iii) for passível de incorporação nos proventos da aposentadoria.
Importante levar em consideração que a base de cálculo da contribuição previdenciária é coincidente com a base de cálculo da contribuição ao Seguro Acidente do Trabalho (SAT) ajustada – o cálculo se dá da seguinte maneira: contribuição ao SAT ajustada é igual ao Fator Acidentário de Prevenção (FAP) multiplicado pela Contribuição ao SAT –, e às contribuições destinadas a terceiras entidades ou fundos, de modo que a tributação sobre a folha de salário (tributação previdenciária) pode chegar a 31,8%.
Embora estejam presentes tais requisitos, a Lei nº 8.212/1991 determina que não haverá incidência de contribuição previdenciária sobre as verbas que estiverem indicadas em seu artigo 28, parágrafo 9. Esse dispositivo expressamente retira da base de cálculo da contribuição previdenciária, denominada salário-de-contribuição, diversas verbas, dentre as quais temos o vale-transporte.
Por sua vez, o decreto nº 95.247/1987 determina que as verbas pagas a título de vale-transporte não se incorporam à remuneração para quaisquer efeitos desde que exista a participação do empregado no custeio do benefício.
A lei que regulamenta o benefício do vale-transporte é a Lei nº 7.418/1995, segundo a qual o benefício não tem natureza salarial nem se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos, inclusive para fins de incidência de contribuições previdenciárias. Vale pontuar que a própria CLT determina expressamente que o vale-transporte não pode ser considerado salário.
O racional por trás dessa hipótese de não incidência advém do fato dessa verba ser paga para permitir que o empregador possa se deslocar até o local de trabalho, sendo, portanto, uma forma de não o sobrecarregar, caso possua residência longínqua do local de prestação de serviço.
Com relação a esse ponto, importante frisar que o STF já se manifestou no sentido de que até mesmo quando pago em dinheiro, o benefício relacionado ao transporte não integra a base de cálculo da contribuição previdenciária. No mesmo sentido, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) já se posicionou diversas vezes no mesmo sentido, de tal forma que existe inclusive uma súmula (89) tratando do assunto.
Justamente nesse sentido, em 1º de julho de 2020, foi publicado o decreto nº 10.410/2020, que alterou o regulamento da previdência social (decreto nº 3.048/1999) e passou a dispor que “a parcela recebida a título de vale-transporte, ainda que paga em dinheiro, na forma da legislação própria” não deve ser tributada.
Na contramão do posicionamento da jurisprudência e até mesmo da legislação, o recente editado decreto nº 10.854/2021 determinou que estaria vedado ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento (artigo 110).
A nosso ver, esse dispositivo certamente será questionado quanto a sua legalidade e constitucionalidade. Como já inclusive decidido pelo STF, “a cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade normativa”.
As empresas que decidirem ingressar no judiciário para se resguardar contra eventual coação por parte da Receita Federal não deverão encontrar resistência por parte do Fisco, sobretudo considerando o Ato Declaratório nº 4 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), de 31 de março de 2016.
Segundo o Ato, a procuradoria fica autorizada da dispensa de apresentação de contestação, de interposição de recursos e pela desistência dos já interpostos, desde que inexista outro fundamento relevante “nas ações judiciais fundadas no entendimento de que não há incidência de contribuição previdenciária sobre o vale-transporte pago em pecúnia, considerando o caráter indenizatório da verba”.
Faz-se necessário, portanto, alertar os contribuintes para que se protejam de eventuais tentativas de constrição por parte das Autoridades Fiscais.
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