O programa que visa ampliar a participação dos biocombustíveis para 18% na matriz energética brasileira até 2030 enfrenta uma série de obstáculos, como a resistência dos próprios ambientalistas e a baixa liquidez dos créditos de descarbonização, mas pode fazer enorme diferença
Na minha carreira de empreendor em energias renováveis, nunca entendi direito o preconceito generalizado de ambientalistas com relação aos biocombustíveis. O único pressuposto digno de nota é uma eventual competição por área agricultável para a produção de alimentos. Obviamente não faz sentido produzir biocombustível se faltar espaço para a agricultura de subsistência da humanidade.
Aliás, esse foi o único argumento consensual entre o discurso dos ambientalistas e o documentário fake “Planeta dos Humanos”, produzido pelo cineasta Michael Moore. A propósito, cheguei a conclusão que Michael Moore está entre os maiores cientistas sociais de todos os tempos. Juntam-se a ele em ordem alfabética: Moe, Larry e Curly. Mas eu divago. Em uma das cenas arrastadas do documentário, quando surge uma planta de etanol caindo aos pedaços, localizada muito provavelmente na América Central, o narrador menciona a devastação das florestas no Brasil induzindo os espectadores a assumir que a produção de biocombustíveis seria a grande vilã do desmatamento da Amazônia.
A destruição dos biomas brasileiros é tema urgente, mas muito complexo para ser tratado com informações distorcidas. Uma parcela muito pequena do desmatamento da Amazônia pode ser debitada na conta dos biocombustíveis.
Em 2005, com a ratificação do Protocolo de Kyoto, a produção de biocombustíveis entrou definitivamente na pauta global como alternativa ambientalmente sustentável aos combustíveis fósseis. Desde ali, ativistas bradam enraivecidos denunciando o desastre humanitário acarretado pela eventual escassez de alimentos causada pela indústria dos combustíveis renováveis.
Uma vez que a correlação entre a produção de biocombustíveis e a fome é muito tênue, essa ojeriza parece estar concentrada nas falanges mais extremadas dos formadores de opinião. Em suma, leio na extrema imprensa e na mídia golpista que a fila para julgamento no Tribunal de Haia é longa, mas até o momento não inclui os defensores dos biocombustíveis. Aqui vale destacar o protagonismo anti-biocombustiveis do tabloide inglês “The Guardian”, que pratica jornalismo de alto calibre, mas adota linha editorial que privilegia pautas alarmistas, muitas vezes alinhadas com o ativismo ambiental mais radicalizado. O fato é que jornalistas ativistas de quando em quando descobrem que vivem em uma sociedade capitalista.
Mais conhecida pelo codinome “Renovabio”, a Politica Nacional de Biocombustiveis foi instituida pela Lei 13.576 em 2017 e tem como objetivo incentivar o uso de combustíveis renováveis no País. O programa foi inspirado no “Low Carbon Fuel Standard” da California e estabeleceu a meta de ampliar a participação dos biocombustíveis para 18% na matriz energética brasileira até 2030.
Tal percentual faz parte do compromisso assumido pelo Brasil nas tratativas que culminaram com o Acordo de Paris e poderá representar um aumento de quase 100% ante o volume de biocombustíveis ofertados no mercado nacional em 2020. Adicionalmente, os formuladores do Renovabio estimam que o programa irá promover a redução das importações de derivados do petróleo dos atuais 11 bilhões de litros para cerca de 5 bilhões de litros até o final desta década.Entre os aspectos mais interessantes do Renovabio está a utilização de um mecanismo de mercado desenhado para tornar os biocombustíveis mais competitivos em comparação aos combustíveis de origem fóssil. O programa estabelece a criação de um ativo ambiental, o CBio (ou crédito de descarbonização), emitido em nome das unidades produtoras de biocombustíveis.
Por meio de uma engenhosa ferramenta de análise do ciclo de vida dos biocombustíveis, cada unidade produtora recebe uma nota de eficiência energética auditada por uma firma inspetora. Quanto maior a nota de eficiência energética, maior o volume de Cbios por litro de biocombustível comercializado pelo produtor.
Adicionalmente, cada unidade produtora precisa cumprir com o critério de elegibilidade no que se refere à supressão de vegetação nativa. Essa regra impede a emissão de Cbios para a fração de biocombustível cuja biomassa seja proveniente de áreas desmatadas após dezembro de 2018, data da promulgação da lei.
Por fim, o programa estabelece metas de descarbonização para as distribuidoras de combustíveis, que são obrigadas a comprar montante de CBios proporcional à participação no mercado de cada uma delas no ano anterior. Todo esse processo é regulado em suas diversas fases pelo ministério de Minas e Energia, pela Agência Nacional de Petróleo e Biocombustíveis e pelo Comitê Nacional de Politica Energética.
A fungibilidade é o atributo de um ativo que permite que esse ativo possa ser trocado por outro bem. O dinheiro é o bem fungível por excelência uma vez que, ao menos no Brasil, uma nota de R$ 100 pode ser trocada por quaisquer ativos de igual valor. Quanto mais ampla a fungibilidade de um ativo, maior a liquidez desse ativo e mais apurada a formação de preço desse ativo.
Os Cbios são ativos negociados na bolsa de valores e portanto podem ser trocados por dinheiro, mas é improvável que você consiga comprar um pacote de biscoito Globo na praia oferecendo pagamento em Cbios. Idealmente os Cbios seriam fungíveis em ativos negociados em outros programas de redução de emissões estabelecidos ao redor do globo. Enquanto esse dia não chega, o regulador do Renovabio instituiu a figura da chamada “parte não obrigada” no programa, permitindo que qualquer cidadão ou empresa – além das distribuidoras de combustíveis – possa negociar CBios.
Existe uma certa gritaria contra a utilização dos Cbios em mercados voluntários de redução de emissões, mas, parafraseando a estátua de Sir Winston Churchill, a caravana passa e a cachorrada ladra. No País em que os gerentes de banco batem metas vendendo titulos de capitalização, proibir um cidadão de comprar CBios na bolsa não faz o menor sentido.
Uma das razões pelas quais os Cbios não poderiam ser instantaneamente fungíveis em outro programa de comércio de emissões tem relação com o conceito de adicionalidade ambiental. Esse termo me persegue desde os primórdios do Protocolo de Kyoto. Basicamente, uma redução de emissão é considerada adicional se (e somente se) ela não fosse ocorrer na ausência do projeto ou atividade de cunho ambiental. Alguns verdugos do Renovabio questionam a adicionalidade do programa, uma vez que produzir biocombustível no Brasil é prática comum. Poucos fizeram as contas dos incentivos embutidos no Renovabio para a redução das emissões de gases de efeito estufa a partir da geração de biogás de vinhaça, para as plantas de etanol de milho e para as plantas de etanol de cana de segunda geração.
Em se mantendo o programa pelos próximos dez anos, aposto um Antonov cheio de pelúcias do Baby Yoda que a intensidade de carbono da matriz de combustíveis do Brasil vai cair pela metade. Na película italiana “Meus Caros Amigos”, provavelmente o maior filme de todos os tempos, o personagem Conde Mascetti, protagonizado pelo ator Ugo Tognazzi, sempre que se metia em alguma enrascada divagava sobre a “supercazolla”, esse termo ininteligível que não significa nada. Para mim, o conceito da adicionalidade equivale à supercazzola do mercado de carbono.
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