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Burnout não é troféu: os riscos da naturalização do workaholismo

Síndrome deveria ser tratada como algo grave, mas passou a ser incorporada no dia a dia do mundo corporativo

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

20 de Maio

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Artigo Burnout não é troféu: os riscos da naturalização do workaholismo

Há algumas semanas, durante um evento, enquanto conversava com alguns jovens iniciantes em suas carreiras, fui surpreendida com a seguinte pergunta: “Para ser bem-sucedida, eu preciso ter um burnout?”. Respondi prontamente e um tanto assustada que, obviamente, não.

Encontrar tanta gente depois de dois anos presa aos quadradinhos das videoconferências é um acontecimento. No entanto, o que mais marcou naquela noite foi o fato de que a pergunta da jovem não foi um caso isolado. As conversas que ouvi com certo tom de naturalização do burnout foram diversas.

Guardei os diálogos comigo e voltei para casa. Essa “naturalização” do burnout ficou martelando na minha cabeça durante dias. Isso virou algum tipo de troféu?

Meu incômodo está diretamente ligado ao discurso banalizante, com expressões como "meu primeiro burnout". Prefiro acreditar que a glamourização do tema é, na verdade, a fuga de uma questão difícil, ainda que feita de forma inconsciente.

Poucos anos atrás, quando o assunto começou a repercutir no Brasil e no mundo, as pessoas se mostravam preocupadas e atentas ao problema. No entanto, hoje, sinto que em vez de seguirmos lidando com a gravidade que o assunto merece, estamos incorporando o burnout no dia a dia do trabalho.

Por isso, quero propor que busquemos enxergar com clareza e de forma distinta o desafio enfrentado pelo indivíduo e as narrativas que o mercado aos poucos vai tecendo – sequestrando um tema de saúde pública para transformá-lo em conquista corporativa. “Trabalhe enquanto eles dormem”, “Marquei a entrevista no domingo para ver o quanto o candidato se interessava”, “Tenha empatia com seu chefe tóxico”. E por aí vai.

Quando se banaliza o que não é banal, perde-se a urgência de olharmos com cautela para os sintomas de uma condição que está acometendo cada vez mais pessoas. De acordo com uma pesquisa da Isma Brasil, o país é o segundo no mundo com maior número de pessoas afetadas pela síndrome.

Precisamos parar de alimentar o culto a um modelo de trabalho adoecido, gerado pelas demandas de quem só usa as lentes do capital. Temos que voltar o foco para o que merece nossa atenção: o combate às raízes do exaurimento das pessoas no ambiente profissional.

Para além do burnout: a produtividade tóxica

Como bem pontua André Alves, um dos fundadores da empresa de pesquisa Float, a nossa relação com o trabalho vem sofrendo grandes alterações nos últimos dez anos. Uma das principais e de maior impacto é a romantização do workaholismo, pautado no “trabalhe com o que você ama” e no mito do empreendedorismo.

Essas mudanças desembocam, necessariamente, em um nível de produtividade que é praticamente inalcançável. Produtividade deveria ser uma aliada do trabalho saudável, mas acaba virando um fantasma que nos assombra em nossos momentos de descanso e nos atormenta com questionamentos. “Você não deveria estar fazendo algo produtivo em vez de estar aí no sofá, após horas trabalhando?”

Não à toa, viramos a sociedade do cansaço, como explica o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em um ensaio de mesmo nome. Nessa sociedade, a responsabilidade do fracasso é do próprio indivíduo – passamos de sujeitos sociais para sujeitos do desempenho.

No livro, o filósofo afirma que vivemos tempos de “violência neuronal”, cuja materialização se dá a partir de aspectos fisiológicos do sistema nervoso: síndrome de burnout, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e depressão. Para o autor, tais distúrbios têm relação direta com o modo como o capitalismo contemporâneo opera.

Deixamos de ocupar um lugar de obediência e passamos a um espaço com o imperativo da realização, da mobilidade, da velocidade e da superação constantes. Somos a sociedade do “Yes, we can!” – slogan estadunidense que expressa com precisão esse excesso de positividade.

Há, portanto, o deslocamento da negatividade para a positividade: o sujeito do desempenho, mais rápido e eficiente, substitui o sujeito da obediência. Em tal contexto, a não-performance transforma-se em pressão interna, e as pessoas acabam por alimentar sentimentos de inadequação, sofrimentos psíquicos e, consequentemente, enfermidades.

Caminhos possíveis?

Proponho a você uma reflexão: de onde vem essa pressão? Quem está te cobrando? Por quê?

Quais são os modelos que te inspiram? Como você tem lidado com seus desafios? Você escuta, entende e busca por soluções ou apenas as incorpora? Será que você está, de alguma forma, reproduzindo práticas tóxicas na sua rotina sem perceber? Como atender às demandas, nesse sentido, do seu time?

Não tenho as respostas. São questionamentos que tenho feito a mim mesma, por também me ver como parte de um sistema que nos ensina a naturalizar uma produtividade inalcançável.

É angustiante para muitas pessoas vivenciarem padrões de comportamentos repetitivos ou até mesmo ter sintomas físicos e não saber o nome científico para esta "coisa". O bombardeio de informações, definições equivocadas sem base científica, diagnósticos de conhecidos e familiares, contribuem para que a pessoa se ancore nestes recursos para enquadrar-se em algo.

Este movimento é muito arriscado e delicado, pois começa-se a fazer um espelhamento desajustado que faz com que a pessoa acredite veementemente que carrega um determinado distúrbio (é como ler bula dos efeitos colaterais e começar a sentir todos eles). Esta necessidade de nomeação faz parte da nossa construção intelectual e da natureza humana, como estratégia de sobrevivência, porém, vale a reflexão sobre quais são os recursos utilizados para tais definições.

Penso que vale a pena destacar que antes de olhar para fora é essencial olhar para dentro e observar o que o corpo está sentido tendo como referência a si mesmo. Isto inclui, mudanças de hábitos, disposição emocional e sintomatologia. Além de procurar ajuda especializada que apoie a pessoa no contorno e construção de possíveis nomeações considerando suas subjetividades.

Uma saída possível, neste caso, é permitir-se sentir e observar-se, independente do "manual de diagnóstico".

Desejo profundamente que o burnout deixe de ser incorporado às narrativas de conquista corporativa e passe a ser sempre tratado como questão de saúde pública. É preciso reunir forças – coletivamente – para irmos na contramão dessa sociedade adoecida, pautada no desempenho. Precisamos, afinal, do contato com o outro para nos enxergarmos, para construirmos nossa subjetividade.

Acima de tudo, vislumbro um futuro próximo em que os mais jovens não irão naturalizar um modelo de trabalho adoecido. Futuro no qual as capas de revista, os prêmios e as honras pertencerão às histórias humanas, de gente que conquistou e realizou sem negligenciar o que mais importa: sua vida e sua saúde.

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Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

Grazi Mendes está como head of diversity, equity & inclusion na ThoughtWorks Brasil, consultoria global de tecnologia, é professora em programas de desenvolvimento de lideranças e cofundadora da Ponte, hub de diversidade e inclusão. Acumula cerca de 20 anos de experiência em gestão estratégica, branding, design estratégico, liderança e cultura, com atuação em empresas nacionais e multinacionais de segmentos diversos.

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