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Procuram-se talentos e sobram neurodivergentes. Mero desencontro?

Estudos sugerem que cognição de profissionais neurodivergentes tem relação direta com alta criatividade, perspectivas únicas e pensamento inovador

Maureen Dunne
Maureen Dunne
5 de agosto de 2024
Procuram-se talentos e sobram neurodivergentes. Mero desencontro?
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Falta de mão de obra. Esta é uma das dores estruturais que o mercado de trabalho de uma das maiores potências mundiais, os EUA, enfrenta. A razão: envelhecimento da população, aposentadorias precoces, perda de trabalhadores para a covid-19, entre outros. Quem deu a notícia foi Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (FED – o banco central dos Estados Unidos), enquanto anunciava atualizações na política econômica no final do ano passado. 

Fato é que, no fim de 2022, havia aproximadamente duas vagas de emprego para cada trabalhador disponível – chegando a 10 milhões de vagas a serem preenchidas. 

Sem dúvida, trata-se de números grandes demais para ser ignorados em uma potência econômica como os EUA. E que chamam ainda mais a atenção quando se tem em conta as taxas de desemprego entre adultos neurodivergentes no país. 

Estima-se que 15% a 20% da população global se enquadre no guarda-chuva da neurodivergência. Só nos EUA, são 50 milhões, entre os quais de 30% a 40% está desempregada. Considerando apenas as pessoas com ensino superior que estão no espectro do autismo, essa taxa pode chegar a 85%. 

Apesar de esses números se referirem apenas aos EUA, o problema transcende suas fronteiras e assola também o Brasil, entre outros países. Com frequência, os indivíduos com tipologias cognitivas – como autismo, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, dislexia, discalculia, sinestesia e dispraxia, entre outros – são ignorados pelo mercado de trabalho, o que vai além de uma discussão ética ou moral. 

A falta de caminhos efetivos e reais de inclusão da neurodiversidade no ensino superior, no mercado de trabalho e na sociedade tem implicações tangíveis e dificulta o sucesso das organizações em todos os lugares. Com tantas vagas não preenchidas nos EUA e tantos possíveis candidatos que não são considerados, a solução de ganha-ganha para esse desequilíbrio certamente merece ser explorada.

O “paradigma da neurodiversidade”, criado pela socióloga e ativista australiana Judy Singer no fim dos anos 1990, é uma abordagem que se vale dos pontos fortes dessas pessoas para compreendê-las, incluí-las e valorizá-las. 

Diversidade cognitiva e o ambiente de trabalho do amanhã

Aproveitar o potencial dos candidatos neurodivergentes pode ajudar os empregadores a construir uma força de trabalho mais bem preparada para o futuro. Algumas das competências em que tendem a se diferenciar são a criatividade, pensamento lateral (ou não linear), engenharia reversa para resolver problemas, habilidades visuoespaciais complexas, hiperfoco e reconhecimento de padrões multissensoriais. Por certo, competências que tendem a ser cada vez mais importantes à medida que a inteligência artificial se incorporar ao dia a dia.

Já existem neurodivergentes que ocupam posições de liderança em diversos setores do mercado, incluindo o militar, embora muitos ainda relutem em revelar sua condição. No entanto, evidências sugerem que esses indivíduos, quando inseridos em um contexto de trabalho eficaz e adequado, podem ter um desempenho tão bom ou até melhor do que seus pares neurotípicos em uma ampla gama de posições. 

Um estudo interno do banco ameriano PMorgan Chase, realizado no âmbito do seu programa “Autismo no trabalho”, revelou que funcionários do espectro autistas demonstram uma produtividade até 140% maior do que seus colegas neurotípicos que ocupam os mesmos cargos. Isso, claro, quando os primeiros estão corretamente integrados à função e ambiente de trabalho.

Não há duas pessoas neurodivergentes iguais, e é importante valorizar a riqueza e a diversidade de todos os tipos de mentes. Dito isso, há um crescente corpo de evidências que sugere que existe correlação entre neurodivergentes e habilidades incomuns, como uma capacidade aumentada de originalidade ou ideação inovadora. Além disso, pessoas dos espectro autista são menos propensas a vieses cognitivos e mais consistentes na tomada de decisões racionais do que a população em geral. 

Perspectivas e habilidades únicas como essas são valiosas para os empregadores. Representam uma proteção crítica contra o pensamento uniforme.

Formação de talentos nos community colleges

Nos EUA, muitos indivíduos neurodivergentes começam sua jornada de educação superior nos community colleges (instituições que oferecem cursos de dois anos de duração a preços mais acessíveis que as universidades tradicionais). Um estudo realizado em 2015 revelou que, na época, 80% das pessoas adultas no espectro autista estudavam nessas instituições.

Não por acaso, os esforços para trazê-los para a economia empresarial devem começar por lá ou, pelo menos, em uma parceria com elas. Isso pode ser um divisor de águas na abertura de caminhos que levem a oportunidades de emprego favoráveis à neurodiversidade.

O desafio, portanto, é expandir esses caminhos para os estudantes dessas instituições. Durante meu tempo como presidente da Illinois Community College Trustees Association, procurei incentivar a colaboração entre community colleges, empregadores e organizações de desenvolvimento econômico local e regional. 

O primeiro comitê estadual do futuro do trabalho foi projetado para facilitar parcerias diretas com empregadores a fim de criar essas oportunidades para estudantes, comunidades e empresas e facilitar conversas sobre indústrias e carreiras emergentes.

Construção de pontes com a indústria

O sistema de community colleges nos EUA se tornou um case de eficiência na formação de candidatos neurodivergentes qualificados para atender às necessidades do maior usuário final do sistema educacional: a economia corporativa. (no Brasil, o mais parecido que temos são os Institutos federais de educação, ciência e tecnologia (IFs), com cursos técnicos de nível médio e tecnológicos de nível superior) 

No entanto, o círculo virtuoso só se forma se os empregadores puderem explorar o conjunto de talentos desses estudantes, o que depende de oportunidades favoráveis à neurodiversidade, que precisam ser cultivadas e apoiadas desde o princípio.

Na prática, os community colleges são potenciais parceiros poderosos para atender às demandas dos empregadores locais. Se eles oferecerem um suporte abrangente, como apoio à saúde mental, tutoria especializada, ferramentas de gerenciamento de tempo e coaching de funções executivas e entre pares, os alunos neurodivergentes terão muito mais probabilidade de concluir o curso e conseguir um emprego na sequência.

Formações práticas, estágios remunerados e oportunidades de trabalho também desempenham papéis críticos na redução de lacunas entre o aprendizado adquirido e o emprego bem-sucedido. Muitos community colleges oferecem um modelo de ensino “estude e ganhe”, como o programa de aprendizagem do projeto Hire-Ed, do College of DuPage, no estado americano de Illinois, em que os empregadores pagam as mensalidades dos alunos para ajudá-los a aprender novas habilidades enquanto adquirem experiência no trabalho.

Um dos segmentos em que esse tipo de programa funciona bem é no de cibersegurança, no qual a presença de pessoas neurodivergentes já é significativa e tende a crescer. De acordo com o Bureau of Labor Statistics dos EUA, as vagas de analista de segurança da informação devem aumentar 32% entre 2022 e 2030

Programas acessíveis de certificação em segurança cibernética, que posicionam os candidatos em um plano de carreira com demanda local imediata, são oferecidos em community colleges de todo o país, incluindo os City Colleges of Chicago, em  Illinois, e o Nassau Community College, em Nova York. 

A educação baseada em competências, como o programa de formação em tecnologia de soldagem, do Lewis and Clark Community College, em Illinois, apresenta uma proposta também atraente, com opções flexíveis para estudantes com necessidades diversas, abrindo caminho para se obter créditos à medida que dominam novas habilidades.

Nos EUA, o movimento de neurodiversidade vem aumentado a conscientização sobre os talentos de candidatos neurodivergentes, o que já levou resultou em iniciativas colaborativas mais consistentes entre a educação pós-ensino médio e a indústria. Por exemplo, os serviços de inteligência do país voltaram seus olhares para a comunidade neurodivergente para turbinar suas práticas de aprendizado de máquina e segurança cibernética. 

Organizações de diversos setor também começaram a flertar com neurodiversidade após testemunhar gigantes como a consultura EY, o banco JPMorgan e a empresa de tecnologia Microsoft aproveitarem as vantagens de priorizar a diversidade de pensamento.

Tais iniciativas nos sugerem uma espécie de roteiro. 

  1. Colaborações entre parceiros da indústria, associações de desenvolvimento econômico e community colleges que apoiam a neurodiversidade representam um novo recurso no ecossistema do mercado de trabalho. 
  2. Ao nos voltarmos para essa tendência, temos a oportunidade de cultivar um banco de talentos neurodivergentes pronto para o trabalho e capaz de desafiar suposições antiquadas e improdutivas sobre o que é um candidato qualificado.

No ambiente de trabalho

Para formar e capitalizar um banco de talentos neurodivergentes, tanto profissionais especialistas em alocação profissional quanto empregadores precisam atentar para certos processos. Do lado da empresa, a área de gestão de pessoas deve rever suas práticas de recrutamento e contratação, com ênfase na inclusão. E também trabalhar para institucionalizar ainda mais as estratégias de integração para que pares e gestores tenham maior compreensão de como apoiar equipes neurodiversas. 

Na prática, isso pode envolver o acompanhamento do profissional neurodivergente durante seu processo de integração à empresa —  fornecendo informações claras sobre as métricas de sucesso, evitando ambiguidade nas orientações, até permitir acesso universal a fones de ouvido com cancelamento de ruído e outras ferramentas e práticas de acomodação.

Além disso, alguns neurodiversos são mais produtivos em ambientes familiares, portanto, demonstrar abertura para protocolos de trabalho híbrido ou remoto pode sinalizar uma atitude mais receptiva em relação às suas necessidades.

Em um nível prático, isso pode envolver orientações durante a integração – dando referências claras de sucesso, evitando ambiguidade e permitindo acesso universal a fones de ouvido com cancelamento de ruído e outras ferramentas e práticas para acomodação. E, como algumas pessoas neurodivergentes são muito mais produtivas em ambientes que lhes são familiares, demonstrar abertura para o trabalho híbrido ou remoto pode sinalizar uma atitude mais receptiva em relação às necessidades delas.

No entanto, esses passos têm pouco impacto quando a cultura organizacional não abraça a segurança psicológica, políticas anti-bullying e padrões claros de comunicação. Em outras palavras, não importa quanto sol e água você disponibilize, um jardim não crescerá em solo tóxico. O risco é alto, mas o retorno pode ser enorme para organizações visionárias dispostas a abraçar a inclusão e o pertencimento autênticos para neurodiversos. 

Ao combater estereótipos, permitir arranjos de trabalho flexíveis e orientados para resultados e fomentar culturas organizacionais acolhedoras, nas quais as pessoas não precisam mascarar suas diferenças cognitivas, florece todo o potencial de trabalho dos neurodiversos

Maureen Dunne
Maureen Dunne
Ph.D. e especialista em neurodiversidade reconhecida globalmente e ex-presidente da Illinois Community College Trustees Association, o terceiro maior consórcio de community colleges dos Estados Unidos. É autora do livro a ser publicado The Neurodiversity Edge: The Essential Guide to Embracing Autism, ADHD, Dyslexia, and Other Neurological Differences for Any Organization (Wiley, 2024).

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