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O otimismo dos críticos

No momento atual, negar tempo e espaço à reflexão crítica é cultuar a negatividade. Precisamos fortalecer a autoestima das pessoas que têm mentalidade de sobrevivente, pois precisamos delas

Cássio Pantaleoni
6 de agosto de 2024
O otimismo dos críticos
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O saldo resultante do ataque silencioso do coronavírus até o momento em que escrevo este artigo é assustador. Além do simbólico rompimento da baliza de um milhão de mortos no mundo e do número crescente de contágios, a economia fraqueja, a interação social se artificializa, e o fiel de nossa balança psicológica está adulterado.

Não obstante, alguns líderes mundiais improvisam discursos e formam opiniões de maneira similar ao que se observa nas redes sociais: argumentações revestidas com ares reveladores de supostos fatos e informações encobertas pela mídia ou pelos interesses científicos. Atuam como aqueles que, pela restrita e rápida leitura do índice, falam do livro como se o tivessem lido.

O efeito dessa intenção (ou veleidade) é devastador, em pelo menos dois sentidos. O primeiro se refere à sucessão de desinformações que, combinadas com a negligência original, incentivam certos grupos sociais a escolher comportamentos inadequados na pandemia. O segundo é a promoção de uma batalha entre opinião e reflexão crítica, sempre com o viés de submeter a última à autoridade do líder.

Lembro de um livro que ilustra muito bem tal comportamento. Trata-se da obra História do Cerco de Lisboa, de José Saramago. Na história, o protagonista, um revisor chamado Raimundo Silva, profana a “verdade” histórica, inserindo desobedientemente um “não” no texto sobre o cerco de Lisboa. Assim, ele muda a versão oficial, afirmando que os cruzados não ajudaram o rei no sítio à cidade moura. Com tal corruptela, abre-se caminho para um entendimento histórico equivocado.

História do Cerco de Lisboa
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O aspecto comum entre a obra de Saramago e o caso da Covid-19 é o descapricho intencional, que abre mão da revisão crítica dos fatos para favorecer opiniões ou interesses pessoais.

O paralelo organizacional

Tal situação ocorre também no ambiente organizacional. Diante de um negócio em crise, uma significativa parte das lideranças recorre a discursos que condenam o “pessimismo” daqueles que aspiram a uma crítica mais fundamentada do problema. Porém, o que é mais recorrente nesses casos, a ferramenta utilizada para desautorizar a crítica é algum exemplo predecessor.

O caso da Motorola, a outrora gigante das telecomunicações, por exemplo, é emblemático. A empresa foi a primeira a colocar um dispositivo de comunicação wireless nas mãos dos consumidores. Ela praticamente inventou a telefonia móvel e conquistou a liderança do mercado durante vários anos. Porém, rapidamente veio o declínio.

Diante da crise da empresa, os executivos da Motorola fizeram o que muitos outros executivos reiteradamente fazem: olharam para o que deu certo no passado, tanto para eles como para outras empresas, esquecendo que as circunstâncias eram totalmente distintas. Insistindo em receitas surradas, a empresa abriu espaço para que as necessárias disrupções fossem realizadas por concorrentes como a BlackBerry e, mais tarde, a Apple.

Posso imaginar aquele indivíduo que, ao receber orientação para seguir as decisões do board, quis iniciar alguma análise mais profunda da situação. Certamente foi controlado por um argumento lamacento como: “É assim que a empresa X saiu de sua crise há três anos. Para de ser negativo!”

Em minha vida profissional vivenciei incontáveis situações semelhantes. Em cada caso, o rechaço à crítica acontecia de modo distinto, mas sempre estava ali, como um campo de força intransponível. Algumas lideranças se manifestavam de modo coercitivo, aludindo à urgência de resultados (que depois não viriam em função da receita equivocada para superar a crise). Outras usavam o tom autoritário sem considerar a inteligência de suas equipes (aumentando a crise ao fomentar o turn-over). Havia também a rejeição, provavelmente a mais danosa que observei, que era uma manipulação. Não há nada mais obtuso do que lideranças manipuladoras.

A autoestima dos que sobreviverão

É notório que profissionais que operam com reflexão crítica são geralmente rotulados como resistentes ou negativos. Contudo, está na hora de recuperarmos a autoestima desses profissionais, pois estes, mais do que ninguém, são os verdadeiros otimistas.

Veja: o profissional crítico, que quer ir à raiz do problema, que sugere a revisão dos costumes ou das perspectivas da organização, é alguém que crê que a situação pode ser revertida sem que se recorra a expedientes ou soluções obsoletas.

Negar tempo e espaço à reflexão crítica é cultuar a negatividade. A visão crítica é uma característica empolgante! Os críticos fundamentam o seu método de trabalho na crença de que podemos fazer mais e além de nossas possibilidades. Eles acreditam otimistamente no desarmamento ideológico, na legitimidade do pensamento, no poder colaborativo para promover a verdadeira inovação! É maravilhoso!

O que me encanta nos profissionais de visão crítica é a mentalidade de sobrevivente. Eles não estão dispostos a apostar em algo que não garanta que possam sair vivos da crise. Eles também possuem uma capacidade de autocrítica incomum, e a usam como esteio para não se iludir com suas preferências ao resolver problemas. Além disso, raramente se colocam em posição de vítima ou colocam a culpa em outra pessoa.

Reflita: isso é muito otimismo reunido numa mesma pessoa, não é mesmo?

Pensar criticamente é ser curioso

Pensar criticamente é um exercício de realismo diante de desafios – uma disposição rara em muitas lideranças. Praticar uma crítica legítima exige colocar o que há de ruim em perspectiva e, no processo de pensar, descobrir o que há de bom ali.

A crítica se nutre de algo muito positivo: o propósito de ajudar, superando não somente o obstáculo em si, mas resistindo à dor do processo. Ela está atenta ao aprendizado e o considera um investimento para que, diante de novas crises, haja preparo. Essencialmente, pensar criticamente é ser essencialmente curioso.

Vejo uma oportunidade única nas circunstâncias do mundo. Oportunidade para que a sociedade, os indivíduos, as organizações e as lideranças abracem a reflexão crítica e revisitem seus valores e crenças. O momento pede novos caminhos, novos hábitos. Requer, sim, otimismo. O otimismo dos críticos.”

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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