No momento atual, negar tempo e espaço à reflexão crítica é cultuar a negatividade. Precisamos fortalecer a autoestima das pessoas que têm mentalidade de sobrevivente, pois precisamos delas
O saldo resultante do ataque silencioso do coronavírus até o momento em que escrevo este artigo é assustador. Além do simbólico rompimento da baliza de um milhão de mortos no mundo e do número crescente de contágios, a economia fraqueja, a interação social se artificializa, e o fiel de nossa balança psicológica está adulterado.
Não obstante, alguns líderes mundiais improvisam discursos e formam opiniões de maneira similar ao que se observa nas redes sociais: argumentações revestidas com ares reveladores de supostos fatos e informações encobertas pela mídia ou pelos interesses científicos. Atuam como aqueles que, pela restrita e rápida leitura do índice, falam do livro como se o tivessem lido.
O efeito dessa intenção (ou veleidade) é devastador, em pelo menos dois sentidos. O primeiro se refere à sucessão de desinformações que, combinadas com a negligência original, incentivam certos grupos sociais a escolher comportamentos inadequados na pandemia. O segundo é a promoção de uma batalha entre opinião e reflexão crítica, sempre com o viés de submeter a última à autoridade do líder.
Lembro de um livro que ilustra muito bem tal comportamento. Trata-se da obra História do Cerco de Lisboa, de José Saramago. Na história, o protagonista, um revisor chamado Raimundo Silva, profana a “verdade” histórica, inserindo desobedientemente um “não” no texto sobre o cerco de Lisboa. Assim, ele muda a versão oficial, afirmando que os cruzados não ajudaram o rei no sítio à cidade moura. Com tal corruptela, abre-se caminho para um entendimento histórico equivocado.
O aspecto comum entre a obra de Saramago e o caso da Covid-19 é o descapricho intencional, que abre mão da revisão crítica dos fatos para favorecer opiniões ou interesses pessoais.
Tal situação ocorre também no ambiente organizacional. Diante de um negócio em crise, uma significativa parte das lideranças recorre a discursos que condenam o “pessimismo” daqueles que aspiram a uma crítica mais fundamentada do problema. Porém, o que é mais recorrente nesses casos, a ferramenta utilizada para desautorizar a crítica é algum exemplo predecessor.
O caso da Motorola, a outrora gigante das telecomunicações, por exemplo, é emblemático. A empresa foi a primeira a colocar um dispositivo de comunicação wireless nas mãos dos consumidores. Ela praticamente inventou a telefonia móvel e conquistou a liderança do mercado durante vários anos. Porém, rapidamente veio o declínio.
Diante da crise da empresa, os executivos da Motorola fizeram o que muitos outros executivos reiteradamente fazem: olharam para o que deu certo no passado, tanto para eles como para outras empresas, esquecendo que as circunstâncias eram totalmente distintas. Insistindo em receitas surradas, a empresa abriu espaço para que as necessárias disrupções fossem realizadas por concorrentes como a BlackBerry e, mais tarde, a Apple.
Posso imaginar aquele indivíduo que, ao receber orientação para seguir as decisões do board, quis iniciar alguma análise mais profunda da situação. Certamente foi controlado por um argumento lamacento como: “É assim que a empresa X saiu de sua crise há três anos. Para de ser negativo!”
Em minha vida profissional vivenciei incontáveis situações semelhantes. Em cada caso, o rechaço à crítica acontecia de modo distinto, mas sempre estava ali, como um campo de força intransponível. Algumas lideranças se manifestavam de modo coercitivo, aludindo à urgência de resultados (que depois não viriam em função da receita equivocada para superar a crise). Outras usavam o tom autoritário sem considerar a inteligência de suas equipes (aumentando a crise ao fomentar o turn-over). Havia também a rejeição, provavelmente a mais danosa que observei, que era uma manipulação. Não há nada mais obtuso do que lideranças manipuladoras.
É notório que profissionais que operam com reflexão crítica são geralmente rotulados como resistentes ou negativos. Contudo, está na hora de recuperarmos a autoestima desses profissionais, pois estes, mais do que ninguém, são os verdadeiros otimistas.
Veja: o profissional crítico, que quer ir à raiz do problema, que sugere a revisão dos costumes ou das perspectivas da organização, é alguém que crê que a situação pode ser revertida sem que se recorra a expedientes ou soluções obsoletas.
Negar tempo e espaço à reflexão crítica é cultuar a negatividade. A visão crítica é uma característica empolgante! Os críticos fundamentam o seu método de trabalho na crença de que podemos fazer mais e além de nossas possibilidades. Eles acreditam otimistamente no desarmamento ideológico, na legitimidade do pensamento, no poder colaborativo para promover a verdadeira inovação! É maravilhoso!
O que me encanta nos profissionais de visão crítica é a mentalidade de sobrevivente. Eles não estão dispostos a apostar em algo que não garanta que possam sair vivos da crise. Eles também possuem uma capacidade de autocrítica incomum, e a usam como esteio para não se iludir com suas preferências ao resolver problemas. Além disso, raramente se colocam em posição de vítima ou colocam a culpa em outra pessoa.
Reflita: isso é muito otimismo reunido numa mesma pessoa, não é mesmo?
Pensar criticamente é um exercício de realismo diante de desafios – uma disposição rara em muitas lideranças. Praticar uma crítica legítima exige colocar o que há de ruim em perspectiva e, no processo de pensar, descobrir o que há de bom ali.
A crítica se nutre de algo muito positivo: o propósito de ajudar, superando não somente o obstáculo em si, mas resistindo à dor do processo. Ela está atenta ao aprendizado e o considera um investimento para que, diante de novas crises, haja preparo. Essencialmente, pensar criticamente é ser essencialmente curioso.
Vejo uma oportunidade única nas circunstâncias do mundo. Oportunidade para que a sociedade, os indivíduos, as organizações e as lideranças abracem a reflexão crítica e revisitem seus valores e crenças. O momento pede novos caminhos, novos hábitos. Requer, sim, otimismo. O otimismo dos críticos.”