“Em “A paixão transformada”, Moacyr Scliar, médico e escritor brasileiro que nos deixou em 2011, discorre sobre os laços entre medicina e literatura. Nunca de forma pedante, ensaística ou professoral, mas de maneira até certo ponto lúdica, leve e bem-humorada.
Na obra, publicada em 1996, ele nos ensina que na encruzilhada entre literatura e medicina, encontram-se testemunhos da luta secular contra a doença, e destaca: “A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: a anamnese, o diagnóstico, o prognóstico”.
Em seguida, Scliar acrescenta: “Vozes que falam de doença, vozes calmas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar: palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais”.
É da palavra escrita que se trata aqui. Neste sentido, é natural que os médicos escrevam, e até pensam, seguindo o aforismo do grande clínico William Osler, no paciente como um “texto”: um texto às vezes, fácil, às vezes difícil.
O texto médico, porém, quer prescindir da emoção. Para isso, começa com um processo de tradução: as queixas do paciente são vertidas para uma linguagem simples, neutra. A mesma linguagem que se encontrará nos artigos das revistas médicas. Aí nunca haverá pontos de exclamação, nem reticências, raramente um ponto de interrogação. Além disso, não há indignação, espanto, terror e incredulidade.
Eventualmente, contudo, esse tipo de texto já não é suficiente para traduzir e para conter a ansiedade médica e humana diante da doença, do sofrimento e da morte. Assim, o médico recorrerá à ficção, à poesia. Às vezes sem o saber, ou fingindo não saber.
Quando Paracelso descreve a criação do homúnculo, a partir do esperma incubado, ele está pretensamente descrevendo um evento científico. Contudo, na realidade, está inventando, criando uma narrativa. Pensamos, assim, que na nossa história como médicos, agora mais que nunca, é preciso que abracemos a ficção. Dizemos da ficção expressa em arte, sobretudo, já que aqui tratamos da palavra escrita em prosa e poesia.
Os supostos aprendizados de máquina (machine learning) e aprendizado profundo (deep learning), fundamentos máximos da inteligência artificial, terão como alimento o que nos oferece a literatura. Explico: vivemos a infância da inteligência artificial, tempo de aprendizado para ela e para nós.
Considerem o bebê humano e seu processo de aquisição de linguagem. Em parte, as máquinas confrontam-nos no presente com o mesmo desafio da aquisição e controle do processo de linguagem. De forma quase especular, surgem perguntas sequenciais para elas e para nós – sequenciais, mas com respostas não tão lógicas ou imediatas.
Os humanos, ao abastecê-las para o aprendizado contínuo e independente, composto por inteligência e linguagem, terão de, primeiro e em última análise, se abastecer dos mesmos elementos. Aí entra a arte como potência, e em especial a literatura de ficção, como recurso. Ambas vias de acesso ao que há de mais humano.
Como diria o neurocientista português António Damásio, estamos longe das “feeling machines”, frutos do equilíbrio quase homeostático entre razão e emoção. No entanto, o caminho para o surgimento de tais máquinas talvez comece, num futuro não tão distante, a ser vislumbrado. Neste sentido, surge aqui nossa proposta de ficção:
Isaac Asimov, visionário escritor e bioquímico russo, nos dá uma pista, creio, em “Eu, robô”, coletânea de contos de 1950 cujas histórias descrevem, num futuro hipotético, máquinas pensantes em situações de conflito com a grande comunidade humana. Na obra, o autor embasa todas as questões, ou quase todas, nas famosas três leis da robótica:
“1) Um robô não pode ferir um humano ou, por inação, permitir que um humano sofra algum mal; 2) Os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que essas ordens entrem em conflito com a primeira lei; 3) Um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores”.
Estas questões ressurgem na atualidade com o advento da inteligência artificial e de suas implicações ético-filosóficas. Olhando para esse contexto, pretendo me ater ao primeiro conto do livro de Asimov: “Robbie”.
Robbie é um robô antigo, que apenas ouve – a geração dos robôs falantes virá depois na obra –, e trabalha como babá da menina Gloria, de 8 anos. Ele gosta de ouvir histórias, histórias que a própria menina lhe conta. Não desejo avançar pelas surpresas do conto, apenas dizer que o robô puramente ouvinte precede a invenção dos robôs de voz articulada, como disse acima. Assim, Robbie precede a aquisição da palavra falada pelos robôs.
Asimov não diz no livro, mesmo assim arrisco indagar: ouvir histórias precederiam a aquisição da fala e do pensamento organizado, tanto no homem quanto na máquina? Lembrem-se, estamos ficcionando. Um dos efeitos da ficção é perguntar, e com perguntas, excitar a imaginação. Falando em imaginação, vamos a ela.
Ciência e arte, como conhecemos, nasceram juntas, e só viriam a se separar após o período renascentista. Assim, ao olharmos para a história, entender sobre arte, engenharia, ciência ou arquitetura era esperado de todas as pessoas reconhecidas e admiradas por seu gênio.
O homem renascentista, por definição, era um humanista, um polímata universal, nos moldes de Michelangelo e Leonardo. Só após o cientificismo e o iluminismo, durante meados do século 18, passamos a insistir na tese de que a arte não seria capaz de descrever a realidade com exatidão, portanto, seria incapaz de produzir conhecimento verdadeiro.
Isso perdura até a primeira metade do século 20, quando cientistas como Einstein, Heisenberg, Planck e Bohr assumem a concepção de que a imaginação exerce papel preponderante nas descobertas e no conhecimento científico. Arte e ciência são linguagens, e, como tais – para além de sistematizar ou descrever a natureza –, constituem alimento e ferramenta da imaginação. Com ela, combinam-se de forma potente para a criação de novos mundos, para o enriquecimento de nossa experiência terrena.
Aristóteles, em sua “Poética”, propõe que “mímesis”— velho conceito grego que entendia arte como imitação da vida – é mais que imitação. “Mímesis” seria uma ação que, ao tentar reproduzir a realidade, a supera, aprimora, modifica, e assim fazendo, recria o real.
Volto assim ao ponto inicial, a ficção, e acrescento a imaginação, essência da “mímesis”, como sua raiz e da ciência:
Somos seres de imaginação. E, para citar António Damásio novamente, somos equipados com um cérebro programado para narrar. Dessa maneira, nunca escaparemos ao anseio de criação perene e desafiadora, satisfeitos em parte pela capacidade de, ao narrar, desenvolver histórias.
Se as máquinas mais sofisticadas, em processo de criação e desenvolvimento de uma inteligência própria – em suma, de aquisição de linguagem –, forem semelhantes aos seres humanos, precisarão de suas próprias histórias, reais e/ou ficcionais.
Arte – em particular para nós, médicos, a literatura – e ciência surgem pela via da imaginação. Há inúmeros exemplos da boa influência da primeira sobre a segunda, e vice-versa: Mary Shelley em “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”; Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”; Arthur Clarke em “2001: uma odisseia no espaço”; William Gibson em “Neuromancer”; Asimov em toda a obra.
Podemos considerar a imaginação semente da boa arte e da boa pesquisa científica. Kant, na “Crítica da Faculdade de Julgar”, trata a imaginação como uma poderosa ferramenta criativa, capaz de reformar a natureza.
Além disso, para Kant, a imaginação é o fruto de intuições íntimas indeterminadas que estimulam o pensamento, porém inalcançáveis discursivamente. Ele prossegue: “como criaturas imaginativas, não somos limitados em nosso poder criativo.” Einstein complementa dizendo ser a imaginação mais importante que o conhecimento.
Neste artigo, propomos o reencontro, até certo ponto, entre ciência e arte. Todavia, como construí-lo? As respostas não são fáceis. Diria apenas que a pergunta deverá permanecer em nossos corações e mentes, se não para respostas definitivas, ao menos para nortear o caminho. A imaginação nos guiará.
As ciências da cognição, as neurociências e a medicina precisarão de algo mais que algoritmos para o regresso, pelo menos em parte, ao que já fomos. A literatura ajudará na resposta.
Grandes escritores, também por acaso médicos, mostram caminhos para o contato com a essência do que somos. Retornamos a Moacyr Scliar: “Médicos-escritores. Não é difícil citar vários exemplos: Rabelais, Tchekhov, Conan Doyle, Somerset Maugham, Céline, Jorge de Lima, Miguel Torga, Peregrino Júnior, Pedro Nava, Guimarães Rosa, Dyonelio Machado, Cyro Martins, Lobo Antunes.” E escritores não médicos, como Tolstói, Molière, Dostoievski, Shakespeare, Cervantes, Machado de Assis, além de outros, também abordaram questões médicas.
Embora possa parecer, não pretendemos restringir a literatura de ficção ao que médicos- escritores fizeram dela, nem a matéria da ficção às questões médicas; tampouco atribuir função educativa, ou qualquer função, à arte. Apenas lembrar, ainda que superficialmente, o que construímos como humanos. É disso, acreditamos, que mais precisaremos no século que se apresenta. Todos os autores mencionados, ancorados em ciência ou não, iluminam nossa mais bela face com a humanidade que a permeia.
E a poesia? Os poemas falam por si, uma tentativa de falar sobre eles tenderia a reduzi-los. Citamos apenas William Carlos Williams, poeta e também médico:
“Novidades em poemas, isso é difícil de obter,
no entanto, homens morrem miseravelmente a cada dia,
pela falta,
do que ali se encontra.”
O regresso ao humanismo pleno de arte e ciência tende a nos resgatar como médicos e pacientes; pais e filhos; professores e alunos; amigos; parceiros; criaturas humanas. E agora, não teria por desafio criar a melhor interface homem-máquina? As máquinas possivelmente nos lembrarão do que em nós não é máquina e do que em nós tornou-se máquina algo que a escrita literária e a filosofia vêm fazendo há séculos.
Amós Oz, escritor israelense, dizia ser a literatura capaz de despertar empatia e compaixão por sua capacidade de abrir nossos olhos para o outro, e assim funcionar como antídoto ao fanatismo. Necessitaremos disso para sensibilizar os que virão.
Este artigo foi escrito em parceria com Dr. Augusto César de Macedo Neto, médico radiologista e escritor. No mais, este artigo faz referência ao artigo “O Fio de Ariadne: imaginação, ciência e arte”, de Patrícia Fonseca Fanaya, pós-doutoranda em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Gostou do artigo do Gustavo Meirelles em parceria com Augusto César de Macedo Neto? Explora melhor a relação em ciência, arte e tecnologia assinando nossas newsletters e ouvindo nossos podcasts na sua plataforma de streaming favorita.“,”Imaginação e ficção proporcionaram avanços tecnológicos incríveis na medicina e na ciência. Contudo, precisamos estabelecer um reencontro com a literatura e com o humanismo para desenvolvermos máquinas cada vez mais inteligentes e cognitivas””