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Ensaio sobre a desoneração – parte 2: as camadas do universo digital

a vida moderna nos empurrou para o ambiente digital, para o mundo “cloud”, sem levar em conta os custos materiais desta plataforma.As interfaces com o mundo material que dão vida ao virtual

Cássio Pantaleoni
6 de agosto de 2024
Ensaio sobre a desoneração – parte 2: as camadas do universo digital
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Ao propor uma questão aparentemente tão distante dos debates econômicos, que interroga filosoficamente pelo sentido deste “encontrão” do ambiente digital com a nossa existência – que nos empurra recalcitrantemente para o mais além do mundo físico – alguns poderão imaginá-la descabida. Mas não nos apressemos.

Antes de mais nada é preciso (voltar a) pousar o olhar para esta tríade fundamental da economia – produzir, distribuir, consumir – do ponto de vista do que ora (no digital) é produzido. Refiro-me ao termo produção como aquela ação (ou conjunto de ações) que transforma insumos e recursos de qualquer natureza em produtos ou serviços, e que os concede o estatuto de “algo útil” para possíveis usuários.

Bem antes do digital, falava-se de matéria-prima, de equipamentos, de técnica de produção e de mão-de-obra segundo entidades palpáveis. Na esfera do digital, estas categorias ou conceitos estão agora submetidas a uma cisão. Precisamos considerá-las em dois níveis distintos: o nível dos recursos que mantém o ambiente digital operativo (que mantém tudo online) e o nível dos recursos disponíveis dentro deste ambiente (assets, usuários, dados etc) que corresponde à camada funcional.

Para produzir o ambiente digital precisamos de silício, lítio, cobre, estanho, ouro, prata, lata, ferro etc. Como bem descreve Kate Crawford, em seu livro O Atlas da IA, a vida moderna nos empurrou para o ambiente digital, para o mundo “cloud”, sem levar em conta os custos materiais desta plataforma. Como ela escreve:

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> Nosso trabalho e vida pessoal, nosso histórico médico, nosso tempo de lazer, nosso entretenimento, nossos interesses políticos – tudo isto ocupa o mundo das arquiteturas computacionais em redes que acessamos com a ponta dos dedos em nossos dispositivos móveis, em seu núcleo, usam Lítio. A mineração que faz a Inteligência Artificial funcionar é tanto literal quanto metafórica. O novo extrativismo da mineração de dados também envolve e promove o velho extrativismo da mineração tradicional (…) A cloud é a espinha dorsal da indústria da IA, e é feita de minérios, sal de lítio e petróleo.

Estes insumos (que, por vezes, não são lembrados na economia que roda dentro do ambiente digital) são transformados de modo a produzir, distribuir e ser consumido em escala global. Porém, nós – consumidores e partícipes desta nova economia – não estamos atentos ao fato de que, ao consumir os ativos digitais, também consumimos este aparato material que está aí como “algo útil” quase que no sentido de uma metafísica da economia digital. É isto que refiro quando falo do nível do ambiente operativo.

E o que dizer da camada superior, a camada onde se produzem, distribuem e consomem ativos digitais?

No nível “interno” do digital, tudo é muito mais simples. Não extraímos minérios em quantidades materiais finitas; extraímos dados brutos, armazenados em pastilhas de silício, com detalhes em alumínio, chumbo e ouro, alimentadas por baterias de lítio. Estes dados – que são registros digitais de nossas interações com as máquinas – são minerados e transformados de forma a criar algum ativo – que pode ser um novo dado ou uma imagem, vídeo, áudio, texto etc. Estes objetos digitais são distribuídos instantaneamente, acessíveis a qualquer tempo e lugar, e consumidos imediatamente quando percebida sua utilidade. É útil para mim uma imagem de um panda segurando uma criança? Compro. É útil para mim um podcast sobre política? Compro. É útil para mim um vídeo da Lady Gaga? Compro.

É indiscutível que, na camada funcional, o ciclo produção-distribuição-consumo aproveita o caráter imaterial do universo digital. Não há propriamente o manuseio de um produto, uma técnica manual de produção ou uma distribuição no sentido físico. Mas o que fazemos ali reflete no mundo físico tanto no nível operativo da tecnologia que suporta o digital quanto na materialidade dos produtos e serviços que por lá são movimentados.

Convém reparar uma sutileza: isso concede ao digital o estatuto de um universo circunscrito dentro do universo tradicional. Não se trata de um universo apartadado, mas antes de uma região dentro do universo do qual não podemos sair. A figura abaixo nos permite entender de modo mais claro:

Este sub-universo imaterial – ali onde giram as engrenagens da economia digital – parece desonerar todos os universos que o circunscrevem. Nesta região, nada se cria, nada se movimenta e nada se gasta fisicamente. Tudo é imaterial. Essa característica apela para níveis da nossa psicologia do escambo nunca imaginados. O custo para os participantes que operam nesta esfera é praticamente inexistente. Há o convívio com o “imediato” que nos dá uma percepção de amplitude “além” do universo econômico.

Contudo, a desoneração é virtual tanto quanto o sub-universo digital é virtual. Por estar circunscrito no sub-universo da tecnologia digital (a camada anterior), este ambiente demanda crescentemente de dispositivos de processamento, armazenamento e conexão. E para tanto, são necessários recursos minerais críticos que são parte da totalidade dos recursos do mundo natural.

O sub-universo da tecnologia digital é útil no sentido economicamente apresentado na primeira parte deste artigo. Sem ele, não temos o mundo virtual e imaterial do digital, onde produzimos, distribuímos e consumimos dados ininterruptamente.

O ponto para o qual devemos dirigir o olhar é: o digital, ali onde vivemos a desoneração geral da tríade econômica (produzir, distribuir e consumir), onerando o universo econômico de maneira crescente. Tudo aquilo que recebe o rótulo de “útil” e que é cobiçado em razão de nos desonerar de alguma tarefa ou responsabilidade alcança esse estatuto em razão de um ônus para a natureza do universo economicamente disponível.

Não é sem razão que consideramos o conceito de economia sustentável fator-chave para o futuro do mundo. Precisamos sim de um modelo econômico que desonere o planeta e desonere a nossa capacidade de gerir as expectativas de poder fazer qualquer coisa. Contudo, isso não prescinde de uma consideração mais ampla, que diz respeito às crenças e aos valores que fazem parte de nossa cultura. Afinal, nós produzimos desejos, distribuímos representações de felicidade e consumimos tempo salvo. E mesmo assim estamos sempre insatisfeitos com a nossa existência. É tudo muito oneroso.”

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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