Quatro casos recentes em atividades de marketing que quiseram inovar a partir do conhecimento do target da marca e tiveram alta repercussão, tanto pelo sucesso quanto pelo fracasso
Começo esse artigo com quatro casos muito recentes, dois de sucesso e dois de fracasso, mas todos de alta repercussão. Vocês vão notar que o denominador comum entre eles e o que gerou o sucesso ou o fracasso das ações é o conhecimento profundo do target das marcas. E, claro, um pouco de bom senso.
Deve-se pensar dobrado na adoção de estratégias de marketing nos dias de hoje. O capital reputacional de uma marca tem hoje valor dobrado. O que uma marca fala, como ela pensa e age tem peso e pavimenta o presente para construção do futuro do negócio. Portanto, conheça os limites de suas narrativas para com seus usuários (e para com sua própria identidade).
Vamos aos casos.
O que era para ser apenas uma ideia promocional da marca de cervejas Bud Light, da cervejaria americana Anheuser-Busch, se tornou um dos casos mais controversos de marketing e negócios dos últimos anos. Não importa compartilhar aqui com vocês o objetivo da promoção da marca, nem mesmo sua mecânica, mas vale compreender o caso pela sua narrativa verbal e não verbal.
O que realmente importa é que a promo em questão teve como protagonista um personagem improvável para uma tradicional marca de cerveja americana, a influenciadora trans Dylan Mulvaney, de 26 anos.
É claro que é louvável a iniciativa de marcas icônicas abraçarem causas, neste caso a questão da diversidade, equidade e inclusão (DE&I), no entanto, o senso comum de seus usuários apontou essa escolha como uma espécie de dissonância cognitiva entre marca e usuários.
Longa história curta, a ação não agradou aos consumidores clássicos da marca, representados pelo típico bebedor de Bud, uma espécie de tiozão americano conservador, pouco inclinado às questões de gênero modernas. Vale mencionar que ao longo dos anos, a Bud enfatizou em sua identidade de marca os valores do “”estilo de vida tradicional americano””, relacionados à cultura do país e ao sentimento de americanidade.
Apenas dois meses após o ocorrido, além de ver sua cadeia de valor desmoronar, especialmente os distribuidores e trade, estima-se que a cervejaria perdeu por volta de US$ 5 bilhões em valor de mercado.
Às vésperas do campeonato mundial de futebol feminino que acontece até agosto de 2023, a empresa produziu um vídeo de dois minutos lançando mão da tecnologia deepfake até então apontada como uma das mais danosas e perigosas tecnologias em inteligência artificial existentes. A empresa desafiou o senso comum e aceitou a recomendação de sua agência para colocar a peça no ar.
Para combater o preconceito de gênero no esporte, especialmente em torno dos grandes torneios, a divisão francesa da gigante das telecomunicações Orange lançou uma campanha que desafiava a percepção das pessoas.
O filme que começava como uma edição de momentos de destaque dos jogadores masculinos, estrelas da seleção francesa como Kylian Mbappé e Antoine Griezmann, do meio para o fim reproduzia a seguinte mensagem: “”Só os bleus (apelido da seleção masculina) podem nos dar essas emoções. Mas não são eles que você acabou de ver.””
As imagens são então rebobinadas para revelar que as jogadas sensacionais que o espectador viu foram objeto de edição de efeitos visuais em deepfake, e eram das jogadoras do les bleues (feminino em francês do apelido do time masculino) incluindo Sakina Karchaoui e Selma Bacha, por exemplo.
A peça com sua narrativa em defesa de gênero, portanto, também do território diversidade, equidade e inclusão (DE&I), já é considerada um dos melhores anúncios de futebol de todos os tempos no mundo e foi vista por mais de 6 milhões de pessoas no mundo todo. Um sucesso desejado por qualquer marca. Isso tudo apesar do uso de uma tecnologia vista como nefasta para sociedade.
Como faz todo ano, a marca lançou 2.350 produtos entre roupas, canecas, acessórios etc, mas a varejista resolveu ir além em 2023. Lançou uma linha LGBTI+ para crianças com dizeres “”cure a transfobia, não pessoas trans””, fez um “”collab”” com um designer inglês com símbolos e motivos satânicos e até colocou à venda um maiô feminino “”tuck friendly”” (tuck é o ato dos homens em esconderem a genitália para usar roupas com cortes femininos).
As citações hostis contra a marca começaram nas plataformas de mídia social, com posts e vídeos de usuários da Target condenando a atitude. As agressões chegaram às próprias lojas, com ofensas aos funcionários que estavam na linha de frente das lojas físicas.
A fim de proteger seu staff e preservar a data como comemoração habitual nas lojas, a Target decidiu retirar alguns itens da coleção deste ano. Altos funcionários disseram em off para imprensa que a marca temia uma escalada na crise e que se tornasse a “”Bud Light”” do mês.
A Kombi, Elis Regina, sua filha, a música. Esse case todos conhecem. De acordo com a agência de publicidade responsável pela peça, foram 50 milhões de views, mais de 24 horas no trend topics do Twitter, #1 no Google Trends e, mais impactante, 99% de comentários positivos nas redes da própria marca.
De novo a inteligência artificial realizando tarefas inimagináveis há poucos anos. E fazendo parte das ferramentas do marketing na construção de suas narrativas.
Ser um agente transformador do estilo de vida das pessoas é o sonho dourado de uma marca. É cumprir uma missão que vai além dos negócios. Mas, é notável o quanto as marcas estão se inebriando por essa possibilidade e, em alguns casos, se descolando das próprias estratégias escritas e acordadas no business plan (BP) ou em seu playbook de marca.
Na sociedade de consumo, a posse é uma forma poderosa de identidade. É onde o valor em “”ter”” precede ao do “”ser””. Por isso, é imprescindível ter consciência que o marketing desempenha um papel central na formação do estilo de vida da sociedade atual, tornando-se assim um vetor de impacto com responsabilidade moral e ética.
O ponto mais desafiador do marketing de hoje é que ele transita por duas rodovias concomitantes de alta velocidade que se completam o tempo todo: a do subjetivismo do comportamento humano e a do pragmatismo dos dashboards da web3. E, por isso, experimenta uma evolução exponencial sem precedentes.
Unir essas duas estradas não é fácil já que elas mexem com ambos os lados do cérebro. Como descreve a neurocientista Jill Bolte Taylor em seu livro My stroke of insight, o lado direito do cérebro trabalha em circuitos paralelos e o lado esquerdo em circuitos seriais.
Na prática, a equação do marketing segue a lógica lado direito, lado esquerdo do cérebro. O engajamento entre usuário e marca se dá por uma narrativa relevante e atual – lado direito do cérebro, mas precisa estar alinhada com sua capacidade de conversão à vendas – lado esquerdo do cérebro, na busca por resultados. É o subjetivo levando ao objetivo.
O problema dos casos de fracasso aqui foi se perder no campo subjetivo. E se enganar que adotar estratégias alheias às da marca e também as controversas que geram diálogo, poderiam elevar a marca a um patamar de mais contemporaneidade.
Portanto, cuidado com os modismos, com as tendências e até com as (necessárias) ações sociais positivas. Pergunte-se até onde sua marca pode chegar e quais os limites impostos pelo seu público alvo antes de cair na armadilha da subjetividade. No entanto, nunca deixe de ousar e inovar já que, como falei antes, a responsabilidade social de uma marca também é mostrar caminhos novos para seus usuários.”