Estudos científicos mostram que cigarros eletrônicos não são uma alternativa segura ao tabagismo tradicional — e por isso podem aumentar os gastos com saúde pública
A redução do tabagismo tem sido uma tendência global há muitos anos, resultante de diversas políticas públicas, como aumento de impostos sobre os cigarros, proibição de publicidade e de promoção do tabaco, implementação de ambientes livres de fumo e programas de educação e cessação do tabagismo.
Sem dúvida, o Brasil obteve um sucesso extraordinário com a adoção desse conjunto de medidas e, nos últimos 30 anos, reduziu o número de fumantes de 40% para pouco mais de 10% da população adulta em 2023.
No entanto, temos acompanhado a divulgação de matérias em prol da “regulamentação do cigarro eletrônico”, fomentadas pela retórica da indústria do tabaco, nos mais diversos veículos de comunicação. Hoje se estima que no planeta ainda haja 1,3 bilhão de fumantes de cigarros convencionais, a grande maioria em países subdesenvolvidos.
Na Europa, 32% dos jovens já usaram cigarros eletrônicos, segundo a Organização Mundial da Saúde. Dados brasileiros mostram uma crescente experimentação desse dispositivo nessa faixa etária.
Com a redução substantiva do número de usuários, e para manter seus lucros, a indústria do tabaco, conhecida por sua resistência às regulamentações e estratégias de marketing agressivas, iniciou uma nova estratégia: criou e promove os cigarros eletrônicos como uma alternativa moderna e menos prejudicial.
No entanto, evidências científicas indicam que esses dispositivos de tabaco aquecido, sob qualquer formato, apresentam riscos significativos para a saúde, por vezes superiores aos do tabagismo tradicional.
Em busca de novos clientes, a indústria tem trabalhado incessantemente para atrair a população mais vulnerável aos cigarros eletrônicos: crianças, adolescentes e adultos jovens.
Empregando estratégias atrativas, como a suposta modernidade dos cigarros eletrônicos, apresentações com formas glamourosas e sabores e odores variados, patrocínios de eventos esportivos e divulgação em canais digitais, a indústria tem alcançado seus objetivos.
Segundo dados recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), em muitos países o uso dos cigarros eletrônicos já supera o do tradicional, com 32% dos jovens europeus de 15 anos de idade relatando já ter usado cigarros eletrônicos, 20% deles nos 30 dias anteriores ao levantamento. No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) do IBGE, publicados na Revista Brasileira de Epidemiologia, também indicam uma crescente experimentação desses dispositivos entre jovens.
Durante a pandemia de covid-19, vivenciamos os estragos causados pela desinformação sobre tratamentos sem comprovação científica, complicando a adesão a medidas efetivas contra o vírus e o emprego das vacinas. De forma similar, o desconhecimento da população sobre os cigarros eletrônicos, aliado ao lobby da indústria, cria um ambiente perigoso e uma falsa sensação de segurança em relação ao hábito.
Contudo, estudos científicos robustos desmentem o argumento de que os cigarros eletrônicos são uma alternativa segura ao tabagismo tradicional, quer como redução de danos, quer como fonte de arrecadação de impostos, argumentos facilmente desconstruídos à luz de estudos já realizados e da economia da saúde.
Em 2020, uma publicação no New England Journal of Medicine documentou 2.558 hospitalizações e 60 mortes nos Estados Unidos devido a lesões pulmonares agudas causadas por esses dispositivos.
Os cigarros eletrônicos contêm a chamada “super nicotina”, uma combinação de nicotina com ácido benzoico, altamente aditiva e muito mais potente do que a encontrada nos cigarros tradicionais, de par com substâncias cancerígenas, como o propilenoglicol, quando entra em combustão. Essa mistura resulta em danos significativos para a saúde, incluindo diversas doenças indeléveis, como câncer, infarto, enfisema, bronquite e asma.
Outro estudo, realizado pela Universidade Johns Hopkins e publicado na revista Chemical Research in Toxicology, identificou quase 2.000 produtos químicos nos líquidos e aerossóis utilizados nos cigarros eletrônicos, muitos dos quais não são divulgados pelas fabricantes. Entre esses químicos, foram encontrados diversos contaminantes, além de substâncias industriais, pesticidas e cafeína.
Outro artigo, publicado na revista Inhalation Toxicology, observou vazamento de metais pesados das serpentinas para os líquidos dos cigarros eletrônicos, aumentando o risco de câncer e outras doenças graves.
Por último, mas não menos importante: os cigarros eletrônicos também representam uma ameaça para os fumantes passivos. No vapor desses dispositivos são encontrados diversos metais pesados e substâncias tóxicas, aumentando o risco de doenças cardiovasculares como infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral.
Recentemente, a Anvisa revisou a regulamentação para os cigarros eletrônicos no Brasil, e ratificou a regulamentação vigente desde 2009 (Resolução n°46 de 2009) mantendo a proibição de sua fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda, além de impedir o ingresso no país de cigarros eletrônicos para uso próprio, inclusive na bagagem de mão de viajantes.
A decisão da agência reflete a necessidade de proteger a saúde pública contra os malefícios comprovados desses produtos e incentiva a apresentação de novos estudos científicos que possam contribuir para uma melhor compreensão dos impactos absolutamente nocivos de tais dispositivos na saúde pública.
Em linha com a Anvisa, as Sociedades Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, de Cardiologia e Pediatria, e a Academia Nacional de Medicina já alertaram diversas vezes para os riscos dos cigarros eletrônicos, promovendo campanhas contra o seu uso em parceria com a Associação Médica Brasileira, realizando orientações na mídia sobre os seus riscos para a saúde e publicando um posicionamento institucional a respeito dos cigarros eletrônicos.
No Senado Federal, o tema continua em discussão, aguardando votação na Comissão de Assuntos Econômicos e dividindo a opinião de senadores e especialistas. Esperamos que os senadores respeitem a decisão a favor da manutenção da proibição dos cigarros eletrônicos, medida crucial para evitar retrocessos nos esforços de controle do tabaco.
> É crucial reconhecer a ameaça significativa que os cigarros eletrônicos representam para a saúde pública e para a economia da saúde, uma vez que qualquer arrecadação de impostos, eventualmente, seria inferior aos gastos em saúde para tratar as consequências geradas pela adição.
A crescente evidência científica deixa claro que esses dispositivos não são uma alternativa segura ao tabagismo tradicional, mas sim uma nova fonte de riscos à saúde. Ao adotarmos medidas eficazes e regulatórias agora, podemos proteger as futuras gerações dos danos associados ao uso de cigarros eletrônicos.
É essencial que governos, profissionais de saúde e a sociedade trabalhem juntos para assegurar que não revertamos os avanços duramente conquistados na luta contra o tabagismo. A ação proativa e informada de hoje será a base de um futuro mais saudável e livre de tabaco para todos.
Artigo escrito em parceria com a Dra. Margareth Dalcolmo, médica, professora, escritora e pesquisadora brasileira, atual presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.