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VIGILÂNCIA 9 min de leitura

A grande aposta das big techs e a paranoia estratégica

A rápida incorporação da inteligência artificial nas várias dimensões da vida e a forma como as big techs posicionam essa tecnologia como núcleo de seus negócios futuros devem nos fazer lembrar da grande lição de Andy Grove; complacência pode ser fatal

Roberto Funari
A grande aposta das big techs e a paranoia estratégica
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No terceiro trimestre de 2024, as gigantes Alphabet, Meta, Microsoft e Amazon elevaram seus investimentos em inteligência artificial (IA) para mais de US$ 60 bilhões, um salto de 60% em relação ao trimestre anterior. O ano de 2024 está chegando ao fim, e analistas do mercado financeiro projetam que os investimentos em IA ultrapassarão US$ 200 bilhões, com 80% desse montante direcionado para centros de dados. A previsão é que esse número cresça ainda mais em 2025, levando as empresas de tecnologia a um investimento conjunto próximo de US$ 1 trilhão nos próximos cinco anos. Isso supera qualquer revolução tecnológica anterior.

Tamanho volume de investimento sinaliza uma mudança estratégica profunda, que não apenas altera as prioridades das big techs, mas também de todas as empresas além de redefinir o papel da IA em nossa sociedade. Esse movimento das big techs força líderes empresariais de todos os setores a reavaliar sua abordagem diante da disrupção.

A meu ver, o movimento representa bem o conceito que o ex-CEO da Intel, Andy Grove, chamou de “paranoia estratégica”, que é a necessidade de empresas estarem sempre vigilantes quanto a mudanças rápidas e ameaças emergentes. Para Grove, a complacência é um risco que pode ser fatal. Em vez disso, recomenda ele, as empresas devem antecipar desafios, inovar constantemente e adaptar-se para sobreviver. Trata-se de um pensamento que ressoa especialmente em um momento em que a IA se torna o pilar de uma revolução tecnológica sem precedentes, elevando a barra da inovação e redefinindo as dinâmicas de competitividade em níveis nunca vistos antes.

As três dimensões de impacto

Os impactos dessa aposta monumental em IA podem ser resumidos em três dimensões: a do comportamento humano, a da competição entre empresas e a da estratégia corporativa. Cada uma dessas áreas passa por mudanças drásticas, impulsionadas pela rápida incorporação da IA e pela forma como as big techs posicionam essa tecnologia como núcleo de seus negócios futuros.

1. O comportamento humano é redefinido

A primeira grande mudança que a IA traz é sua capacidade de moldar o comportamento humano. A era da IA avança rapidamente para um modelo de “sucesso do cliente”, onde as empresas não buscam apenas engajar e satisfazer os clientes, mas garantir que estes alcancem os resultados desejados, ou até sonhados, ao usar seus produtos e serviços. Em vez de medir o nível de satisfação, o novo paradigma é ajudar o cliente a concretizar objetivos, muitas vezes antecipando seus sonhos de maneira personalizada.

A Alphabet, por exemplo, está reformulando sua plataforma de busca para que ela se torne mais preditiva e conversacional, com IA multimodal integrada em ferramentas como o YouTube e o Google Maps. Isso significa que, no lugar de aguardar que o usuário ative uma busca, a IA poderá sugerir soluções antes mesmo que o usuário perceba uma necessidade. Esse modelo transforma a maneira como interagimos com a tecnologia, oferecendo um tipo de suporte que se aproxima da intuição humana.

Esse novo nível de integração entre humanos e tecnologia modifica também o que os clientes desejam de seus produtos e serviços. Os algoritmos de IA permitem um envolvimento mais profundo e contínuo, impulsionado pela “proatividade” na relação entre empresas e clientes. Com isso, surgem também desafios éticos, pois essa integração, enquanto benéfica, pode alterar o comportamento dos clientes de maneiras que eles talvez não antecipem, exigindo que as empresas sejam transparentes e responsáveis.

2. Vemos em marcha o darwinismo corporativo

A segunda grande transformação está no que podemos chamar de darwinismo corporativo. A corrida pela IA criou um ambiente de competição extremo, onde a capacidade de inovar e adotar a tecnologia se torna o principal diferencial entre empresas que prosperam e aquelas que ficam para trás. A IA depende de uma infraestrutura massiva — centros de dados, chips especializados e modelos de dados proprietários — que requer um nível de investimento que apenas um seleto grupo de grandes empresas pode sustentar.

Isso cria um fosso entre empresas que possuem capital e expertise para implementar IA em escala e aquelas que ainda estão tentando entender como embarcar nessa jornada. Para as empresas tradicionais, a integração da IA em escala não é apenas um desafio operacional, mas uma questão de sobrevivência. As startups, por sua vez, se beneficiam da IA ao adotarem metodologias que vão além das metodologias ágeis tradicionais. Em vez de ciclos rápidos de entrega e feedback (próprios das metodologias ágeis), adotar a metodologia de “inteligência ágil” que consiste em usar IA para detectar padrões e tendências em tempo real, permitindo uma adaptação contínua e embasada em dados. As novas metodologias baseadas em IA e recursos humanos altamente capacitados é a nova fronteira competitiva das startups. A diferenciação entre empresas que se adaptam e as que “pagarão para ver” se tornará um abismo difícil de transpor. A corrida por talentos especializados em IA também se intensifica, e os custos para manter esses profissionais aumentam. Segundo uma pesquisa da Accenture, embora 94% dos profissionais estejam dispostos a adquirir habilidades em IA generativa, apenas 5% das empresas têm programas robustos para desenvolver essas competências. Isso sugere que as empresas que investirem em capacitação terão uma vantagem competitiva, especialmente na retenção de talentos.

3. A estratégia corporativa se transforma – e rápido

A terceira dimensão é a transformação da estratégia corporativa. A adoção rápida da IA não é um simples upgrade tecnológico; é uma reestruturação fundamental da forma como as empresas operam, tomando decisões, e se responsabilizam pelo impacto de suas ações. A IA exige uma nova abordagem para a gestão de riscos, incluindo preocupações éticas e de conformidade regulatória. Com a capacidade de prever comportamentos e tomar decisões, a IA redefine o conceito de responsabilidade e força as empresas a reavaliar sua relação com clientes, colaboradores e a sociedade.

Essa nova abordagem estratégica pode ser vista como uma transição da mentalidade tradicional de “controle” para uma de “adaptação” em tempo real, onde os dados e a IA guiam as decisões de forma quase autônoma. Isso traz o benefício de insights mais profundos e estratégias baseadas em dados, mas também coloca em evidência os riscos de privacidade, preconceitos algorítmicos e responsabilidades éticas. Empresas que não desenvolverem uma visão crítica e vigilante quanto aos impactos da IA correm o risco de perder a confiança de clientes e stakeholders.

Riscos e recompensas de futuro moldado pela IA

A velocidade de adoção da IA e seu impacto nas big techs são impressionantes. Cada resultado financeiro anunciado reforça que a IA não é mais uma visão distante — é uma realidade em crescimento exponencial. Essas empresas, ao investirem trilhões nessa revolução, não estão apenas construindo ferramentas; estão moldando o futuro da interação humana, onde máquinas e algoritmos terão um papel central na criação de valor e na redefinição do capital humano.

Em um mundo onde a inovação é constante e a transformação ocorre em ciclos cada vez mais curtos, a paranoia estratégica torna-se uma condição essencial para sobrevivência. Adotar uma postura paranoica, de vigilância e adaptação contínua, permite às empresas não apenas navegar as incertezas da era da IA, mas também prosperar nelas. A IA está criando uma nova fronteira de oportunidades e riscos, e somente os que souberem equilibrar inovação e cautela poderão aproveitar o potencial transformador dessa tecnologia que molda não apenas mercados, mas a própria natureza da competitividade e da sobrevivência corporativa.

Roberto Funari
Roberto Funari é um executivo global com quatro décadas de experiência em consumo e varejo. Atua nos conselhos do The Bata Group, fabricante e vendedor mundial de calçados, e The Bakery Brasil, gestora global de inovação. Fundador da HEI!Ventures, apoia a aceleração de startups de IA na Europa e Brasil. Comprometido com impacto social, integra o conselho do Projeto Gauss e é autor do livro Reinvenção Corajosa.

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