A competição que estamos vendo agora entre Netflix, Prime Video, Disney e outras tem muitas lições a nos ensinar sobre inovação
A ruptura, por definição, ocorre quando um pequeno desafiante, com poucos recursos, desloca parcial ou inteiramente uma grande empresa estabelecida em uma indústria. Um dos casos mais conhecidos é o da Netflix versus Blockbuster.
A Netflix começou, como Clayton Christensen chamou, com uma ruptura de baixo mercado. O catálogo de filmes era bom o suficiente (principalmente filmes antigos, re-apresentações) para consumidores não tão existentes (mais voltado ao público adolescente), adicionado de alguns benefícios:
1. a comodidade da escolha do que assistir sem ter que deixar o sofá,2. uma devolução sem prazos de entrega e multas e3. um preço que permite a experimentação.
Quando comparamos apenas os catálogos, a Netflix não poderia competir com Blockbuster, o produto não era tão bom. Mas entregando filmes primeiro pelo correio, depois pela da internet e sob demanda, a empresa desenhou um modelo de negócio diferente, assimétrico ao modelo de negócio da Blockbuster.
Netflix passou a prestar o mesmo serviço sem lojas e sem pessoal para servir clientes diretamente. Um modelo livre de ativos físicos. Basicamente uma articulação de ativos digitais. A assimetria do modelo impediu a Blockbuster de competir em custo e em conveniência com a Netflix (pense bem, a Blockbuster precisava rentabilizar as muitas lojas físicas e justificar o custo do seu pessoal de atendimento a cliente).
Fatal. Com o tempo, a Blockbuster acabou sofrendo a ruptura. De uma rede global de distribuição de DVD, após a falência, tornou-se uma única loja em Bend, no meio-oeste americano (a marca também existe no canal por assinatura DISH).
Muita gente pula a parte seguinte da história. A Netflix tratou de aprimorar seu serviço, usando os dados dos consumidores para criar uma lista de filmes única, uma recomendação mais que personalizada, para cada um de seus clientes, e para promover algum efeito de rede ao possibilitar que um consumidor pudesse recomendar um filme a outro (em teoria ao receber uma recomendação do que amigos estão assistindo, o valor da Netflix aumenta para os seus consumidores).
A empresa também empregou o que Clayton Christensen chamou de inovação de sustentação: estima-se que ela gaste cerca de US$ 17 bilhões ao ano na criação de conteúdos próprios, sob a marca Netflix Originals, para a melhoria contínua do catálogo.
Mas a Netflix, líder absoluta, com cerca de 160 milhões de assinantes, viu na pandemia e no isolamento social o surgimento, ou impulsionamento, de concorrentes de peso – que ainda não havíamos notado no mercado nacional. Só para trazer alguns números, segundo um executivo de uma dessas concorrentes, a base de clientes cresceu 145% e o volume de horas consumidas pulou de 40Mh/mês (agosto 2019) para 115Mh/mês (agosto de 2020). De repente, temos muitas para escolher. Alguns entre tantos que merecem menção são a GloboPlay, Disney+, Prime Vídeo e Apple TV+.
Será que algum desses concorrentes vai causar ruptura na Netflix? Será que a vantagem inicial da Netflix vai mantê-la líder de mercado? Ou os demais competidores que aprenderam com ela irão deslocá-la?
Segundo David Rogers, a ruptura ocorre quando algo muda no ambiente maior – tecnologia ou preferências do cliente ou infraestrutura de suporte / ecossistema para tornar a nova abordagem possível e lucrativa. A empresa estabelecida, preocupada com o status quo, não reconhece que a arena de competição está mudando. Foi exatamente o que ocorreu no caso Blockbuster versus Netflix.
Lá a chegada do DVD, que permitiu o envio dos títulos pelo correio, depois a internet permitindo o consumo sob demanda, e os vários ajustes no modelo de negócios. Mas e agora? Existe alguma mudança fundamental? Ou a diferença reside apenas no catálogo e público alvo? E será que apenas um catálogo superior é suficiente para causar uma ruptura?
Analisando os principais competidores, tendo a dizer que não. Não haverá ruptura.
Disney (Disney+) e Apple (Apple TV+) investiram pesadamente em conteúdo. A Disney já tinha muito conteúdo e comprou a Fox para aprimorar seu catálogo. A Apple contratou várias estrelas e executivos de Hollywood para produzir seus próprios filmes. Mas não há muita diferença em seu modelo de negócios comparados ao da Netflix.
Recursos, atividades, propostas de valor, canais e modelos de receita são basicamente uma cópia. Receitas e custos operacionais não se diferenciam muito. Nem qualquer um dos novos entrantes está usando uma tecnologia inovadora, que permitiria uma diferenciação significativa no preço ou na conveniência.
Até agora pelo menos, a competição parece ser apenas de produtos (catálogo de filmes). Os ecossistemas não entraram em ação. E em termos de ecossistemas, Disney, Apple e Amazon teriam (se soubessem usar) uma grande vantagem sobre a Netflix.
A Disney poderá acessar diretamente seus clientes, coletar seus dados e enviá-los de volta à plataforma de parques temáticos para melhor atendê-los. A Apple TV+ vem pré-instalado nos telefones da Apple, então com inteligência computacional será capaz de recomendar melhor filmes aos seus clientes, com base nos dados do consumidor que eles já têm do iPhone, iPads, Macs e outros dispositivos Apple. E a Amazon, do Prime e do Music, oferece um agrupamento de benefícios difíceis de serem copiados. Os três, se valendo das suas plataformas, poderiam gerar efeitos rede fortíssimos, para capturar clientes a um custo muito mais baixo que a Netflix, que precisará pensar como contrabalancear esta ameaça.
Mas, por ora, todos parecem iguais! Todos investem pesadamente na ampliação da oferta de vídeos, fazem a entrega pela internet e capturam valor com modelo de assinatura (o preço varia um pouco entre eles). E lembre: se conteúdo fosse um fator decisivo, a Netflix não teria derrubado a Blockbuster.
Deveremos observar o mercado streaming de vídeo expandindo, com Netflix e os novos entrantes disputando fatias do mercado. Nós, consumidores, ganhamos. E (se no bolso couber) teremos mais de uma assinatura, o que é chamado de “multihoming”.
Há perdedor? Sim, há um. A TV por assinatura. Esta já vem sofrendo faz um bom tempo. Em 2012, existiam 18 milhões de assinantes no Brasil. Hoje são apenas 12 milhões. Volta lá na definição de Rogers para ruptura, em tecnologia ou preferência do cliente, uma nova abordagem lucrativa… É, é o streaming. O broadcast mesmo já era.”