Estudo aponta as três categorias de inovadoras emergentes na China que estão tornando cada vez mais difícil para as empresas ocidentais competir naquele mercado
Em anos recentes, muitas empresas chinesas emergiram como inovadoras globais e atraíram atenção por isso – a gigante do varejo online Alibaba, a fabricante de eletrodomésticos Haier, o fornecedor de tecnologia de busca e dados Baidu, o ecossistema de comunicação social e jogos online Tencent.
São companhias que têm desafiado as estratégias de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de organizações não chinesas a acompanharem o passo da China e oferecem lições valiosas sobre como tornar ideias comercialmente viáveis.
Porém há outra força, menos óbvia, que precisa ser levada em conta: as milhares de empresas inovadoras que estão promovendo a ruptura em diversos setores, ultrapassando as líderes e desenvolvendo novos produtos e modelos de negócio. Essas inovadoras emergentes não são facilmente identificáveis e impõem ameaças reais para as companhias ocidentais, não raro em espaços inesperados.
Tome como exemplo a Royole, uma startup de Shenzhen que desenvolve produtos eletrônicos capazes de se curvar e dobrar, e que entrou no mercado automobilístico com um display ultrafino e flexível que pode servir de interface no painel dos carros. Apoiada por muito capital de risco, a Royole também lançou o primeiro smartphone curvável, que pode ser dobrado como uma carteira.
Também há empresas chinesas estabelecidas, fora do grupo das famosas, que têm pegado as multinacionais desprevenidas ao expandir sua distribuição. Uma delas é a Jiangsu Dongcheng M&E Tools, fabricante de ferramentas. No início dos anos 2000, operava na ponta final do mercado e não era vista como uma rival importante pela Bosch ou pela Stanley Black & Decker. Hoje, é a maior vendedora do setor de ferramentas elétricas, superando a Stanley Black & Decker em dez vezes na China e sendo competitiva em mercados de todo o planeta.
Para compreender a evolução da inovação na China, entrevistamos, na última década, centenas de executivos, empreendedores e investidores locais, e estudamos mais de 200 de suas companhias. Identificamos três tipos de inovadoras chinesas, cada uma representando um conjunto de desafios específicos para organizações ocidentais. Apresentamos as campeãs ocultas, as zebras tech e as transformadoras.
A PERGUNTA é:
Como uma companhia ocidental pode se preparar para concorrer com as novas inovadoras chinesas?
Eis os Achados
* Monitore seu cenário competitivo para identificar tendências emergentes e antecipar movimentos de rivais potenciais.
* Considere investir em startups e colaborar por meio do ecossistema de negócios.
*Aprofunde seu conhecimento dos mercados domésticos e explore a mudança de necessidades dos consumidores.
AS CAMPEÃS OCULTAS
Companhias altamente especializadas, elas costumam estar entre as três melhores do setor tanto na China como no mundo. Porém, em contraste com as marcas chinesas mais famosas, a receita anual delas não supera US$ 5 bilhões. Isso porque são movidas por uma busca de crescimento de longo prazo e perseguem inovação contínua em seus nichos, procurando agregar valor para os clientes já existentes.
Identificamos mais de 200 campeãs ocultas em diversos setores, como maquinário, químico, materiais e eletrônicos. As empresas nessa categoria tendem a customizar seus produtos para atender a clientes globais e estão acostumadas a usar uma abordagem rápida de tentativa e erro para testar o mercado, ajustando-se e aprendendo. Muitas delas agem como quem conserta coisas: desenvolvem produtos, então identificam e testam novos recursos para eles e os refazem.
Veja o exemplo da Lens Technology, a maior fabricante mundial de componentes de lentes (como sensores) usados em câmeras de smartphones. Fundada por Zhou Qunfei, empreendedor que largou o ensino médio na província de Hunan, a empresa começou fabricando telas de vidro para relógios digitais e percebeu a oportunidade de fazer telas de celulares flip para a TCL, uma importante companhia de eletrônicos de Huizhou, na província de Guangdong. O plástico era o material-padrão dessas telas, e a Lens convenceu a TCL das vantagens do vidro.
Na esteira desse êxito, a Lens tornou-se, em 2003, fornecedora da Motorola e iniciou a produção das telas de vidro para o aparelho Razr V3. Hoje, a Lens fornece telas para Apple, Samsung e outras fabricantes de smartphones.
Muitos representantes de campeãs ocultas que entrevistamos disseram enfrentar desafios de competir com companhias muito maiores e com bem mais vantagens em tecnologias e recursos. O que descobrimos é que as campeãs ocultas trabalhavam duro para compensar suas deficiências com rapidez, atualizando sempre sua oferta e mantendo seus custos sob controle.
A Hikvision é outro bom exemplo de campeã oculta. Em 2002, lançou um compressor de vídeo para computadores baseado em tecnologia Mpeg-4; no ano seguinte, lançou um conjunto de produtos em novo padrão de compressão. A empresa faz upgrade de sua oferta várias vezes por ano, e entende que essa abordagem é um modo de estar à frente das concorrentes e das imitadoras.
Uma maneira pela qual as campeãs ocultas adquirem vantagens de custo sobre concorrentes do Ocidente é atuando estrategicamente no recrutamento. Diferentemente de empresas chinesas mais bem conhecidas, como Haier e Alibaba, ou das multinacionais mundo afora, elas não focam a história acadêmica dos candidatos; concentram-se em identificar pessoas que tragam alguma atitude para o trabalho. Em vez de recrutar graduados de escolas de primeira linha, procuram quem fica feliz de focar o aperfeiçoamento do valor do produto para os clientes.
As campeãs ocultas chinesas impõem três grandes desafios às concorrentes não chinesas. O primeiro diz respeito à maneira de pensar a tecnologia. Como perseguem a inovação contínua, sempre criam oportunidades para que elas mesmas possam expandir sua oferta ou entrar em novos nichos de mercado – por exemplo, a Hikvision investe, em média, 8% de sua receita em P&D, e cerca de 47% de seus funcionários trabalham nessa área da empresa.
O segundo desafio para não chinesas é a ameaça competitiva global. Apesar de fazerem negócios em um enorme mercado doméstico, a maioria procura modos de crescer internacionalmente em cinco ou dez anos, e o faz de várias maneiras. A Goldwind, por exemplo, fabricante de turbinas eólicas, buscou internacionalizar sua tecnologia e seus produtos em parceria de pesquisa com a alemã Vensys Energy, antes de estabelecer uma subsidiária fora e começar a exportar.
A Hikvision e também a fabricante de equipamentos médicos Mindray escolheram expandir agressivamente pelo mundo por meio de dúzias de subsidiárias. Quase metade de suas receitas já vem do exterior.
Finalmente, o terceiro desafio para concorrentes não chinesas é a velocidade com que as campeãs ocultas são capazes de tomar decisões e crescer. Muitas se tornaram líderes domésticas e globais em uma década, o que é bem mais rápido do que fizeram suas concorrentes na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos. Subestimar essa velocidade é um perigo.
AS ZEBRAS TECH
As zebras tecnológicas são pequenas e médias empresas com receita anual inferior a US$ 60 milhões. Usam propriedade intelectual para criar um fluxo de produtos inovadores e, em muitos casos, são fundadas por pessoas que retornam à China após uma temporada em faculdades de elite nos Estados Unidos e na Europa. Nossa análise sugere que haja dezenas de milhares de companhias desse tipo na China hoje.
Diferentemente das inovadoras do Vale do Silício, os empreendimentos chineses trabalham coletivamente para inovar e ampliar as fronteiras das tecnologias e dos mercados. Apesar de muitos não conseguirem sobreviver, alguns chegam a ser líderes de mercado. O grande número de negócios em qualquer categoria de produto ou serviço na China faz aumentar a probabilidade de que pelo menos um dos empreendimentos prospere. Por exemplo, em nossa pesquisa sobre o setor de energia solar, de 2016, identificamos mais de 150 empresas chinesas com propriedade intelectual em tecnologia fotovoltaica.
A Weihua Solar foi criada em 2010 por três formandos da Universidade Tsinghua. Um deles, Fan Bin, doutorou-se na Suíça pela École Polytechnique Fédérale de Lausanne, onde fez pesquisa com líderes na tecnologia de células fotovoltaicas. Em 2013, a Weihua Solar e a alemã Merck fecharam um acordo de fornecimento de materiais avançados e a concessão da permissão à Weihua Solar para usar patentes importantes. Essa parceria, em combinação com os esforços de P&D da Weihua, levou ao desenvolvimento de uma célula leve e flexível que é mais eficiente do que qualquer outra célula do tipo.
Outro grupo notável de azarões chineses está se dedicando à inteligência artificial (IA). Em nossos cálculos, havia mais de 80 empreendimentos de healthcare baseados em IA em meados de 2018. Um deles, de Beijing, é a Huiying Medical Technology, fundada em 2012. Ela desenvolveu uma plataforma em nuvem para imagens médicas, é parceira de escolas como Universidade Tsinghua e Stanford University, e colabora com mais de 800 hospitais chineses para fornecer IA para diagnósticos e tratamentos.
Outra zebra é a Malong Technologies, especializada em reconhecimento avançado de imagens, o que permite que equipamentos comerciais usem tecnologia de raio X para ver as coisas de modo microscópico. Esse recurso tem aplicação no varejo (checkout rápido em lojas sem atendimento pessoal, por exemplo), manufatura (sistemas criados para detectar defeitos) e segurança (escaneamento de bagagens). Além de estar disponível tanto em nuvens públicas como privadas, pode ser incorporado a um sistema ou servidor que possa operar sem uma conexão de internet.
Como as campeãs ocultas, as zebras tech colocam três desafios a concorrentes não chinesas. O primeiro é que o imenso número de empresas desse tipo torna difícil saber quais representam ameaças e quais não. Como as multinacionais que atuam na China mas têm origem estrangeira tendem a ter menos conexões com companhias e investidores locais, elas não conseguem participar da conversa sobre ameaças emergentes.
Em segundo lugar, as zebras tech lançadas após o ano 2000 tendem a se basear em tecnologias de ponta, e seus fundadores estão ficando cada vez mais sofisticados. São empresas que atuam em campos como genética, energia solar, IA, novos materiais e tecnologia agrícola.
O terceiro fator é que muitas delas têm pouca ou nenhuma presença na mídia. Essa falta de visibilidade pode ser uma vantagem que permite aos azarões pegar concorrentes de surpresa quando entram em novos mercados.
SOBRE O ESTUDO
Este artigo é fruto de uma década de pesquisas, ensino e consultorias na China. Incluiu entrevistas com mais de 350 empreendedores, investidores e gestores de 200 empresas chinesas, participação em fóruns de inovação locais e conversas com profissionais de 50 companhias da Fortune 500.
AS TRANSFORMADORAS
Essas “change makers” tentam obter vantagem com as rupturas digitais. Muitas delas são criadas com grandes volumes de venture capital. Operam em uma grande variedade de setores, incluindo mídia e conteúdo, aplicativos de transporte de passageiros e varejo. Diferentemente das campeãs ocultas e as zebras techs, são altamente visíveis e seu número de participantes só parece crescer.
A Toutiao, por exemplo, que usa a IA para fornecer recomendações customizadas de notícias, é uma das mais visíveis realizadoras da mudança na China. Fundada em 2012 e financiada por mais de US$ 3 bilhões em capital de risco ao longo de vários anos, a Toutiao distribui informação personalizada para usuários com base em seus interesses declarados e hábitos de navegação em redes sociais. Graças a esse investimento robusto, a empresa tem sido capaz de fornecer a cobertura de assuntos que não são geralmente destacados na grande imprensa.
Como fica longe de conteúdo que seja sensível para o Estado ou que atente contra os interesses do governo, a Toutiao consegue promover a ruptura na mídia controlada pelo governo, que tende a ser menos responsiva às necessidades dos usuários. Em julho de 2018, a companhia tinha mais de 120 milhões de usuários ativos por dia, sendo que uma alta proporção deles estava abaixo dos 30 anos. Seu valor de mercado foi calculado, à época, em US$ 11 bilhões.
A China tem abundância de capital empreendedor, cada vez mais proveniente de fontes estrangeiras, e também abundância de jovens ansiosos para iniciar um negócio digital. O serviço online de solicitação de comida Ele.me, por exemplo, foi fundado em 2008 por dois alunos da Universidade Jiao Tong de Xangai que ficaram com fome enquanto jogavam na internet. (O nome Ele.me é inspirado na pergunta “Você está com fome?” em mandarim). Aproveitando as mídias sociais e o marketing agressivo, eles formaram vínculos com outros jovens que queriam entrega de comida tarde da noite. E, em 2015, as receitas da companhia tinham ultrapassado US$ 1 bilhão – em 2018, foi comprada pela Alibaba.
Como as campeãs ocultas e as zebras tecnológicas, as transformadoras chinesas impõem três desafios às multinacionais estrangeiras. Primeiramente, elas costumam aparecer do nada, às vezes desdobradas de experiências de outros setores. Ninguém antecipou que a mídia controlada pelo governo poderia ser subvertida por uma empresa como a Toutiao, por exemplo. Seu fundador usou sua experiência em três atividades prévias (agente de viagens online, engenheiro da Microsoft e desenvolvedor de plataforma online para o mercado imobiliário) para pensar criativamente sobre como solucionar a necessidade de informação dos consumidores e empreender para além das fronteiras existentes na indústria.
Em segundo lugar, as transformadoras aplicam modelos de negócio digitais a uma ampla variedade de setores, como varejo, serviços financeiros e transportes (aplicativos de motoristas ou compartilhamento de bicicletas). Apesar de a China estar atrás de países como os Estados Unidos em penetração de internet, o uso de internet móvel na China é alto. Operar sob demanda e mobile é um padrão esperado das companhias – de internet e tradicionais.
O terceiro aspecto é que, diferentemente das empresas chinesas famosas e das multinacionais tradicionais, as transformadoras são completamente centradas no usuário. Não empurram para o mercado produtos existentes; elas se comprometem continuamente com usuários nas mídias sociais a adaptar produtos e, dependendo da necessidade, a rever modelos de negócio.
LIÇÕES PARA NÃO CHINESAS
Como rivais não chinesas deveriam reagir a esse trio? Oferecemos três recomendações:
1. Pense para além das fronteiras da indústria. As novas competidoras chinesas vão muito além daquela dúzia de empresas com que os executivos internacionais de qualquer setor estão familiarizados. Apesar de precisar identificar seus concorrentes mais prováveis, você também tem de se preparar para ameaças menos óbvias que vêm de uma variedade de lugares.
Quando a Uber entrou na China, esperava abrir guerra contra a Didi Chuxing, e errou. Não viu que ela estava conectada com os provedores móveis de pagamentos da Tencent e da Alibaba, e que, por isso, era uma rival complicada. Tanto que a Uber acabou vendendo sua operação chinesa para a Didi. Então, explore espaços estranhos no cenário competitivo e antecipe movimentos.
2. Experimente coisas diferentes. Apesar de a estratégia tradicional e a teoria organizacional enfatizarem a importância do foco, inovadoras chinesas nos lembram de que tentar várias frentes, à busca de oportunidades, pode ser compensador. Em alguns casos, descobrimos que, quanto mais as organizações funcionam como ecossistemas, melhor respondem aos desafios que emergem. Multinacionais devem dar às subsidiárias chinesas mais autonomia do que fariam em outros países a fim de que isso aconteça.
A Bosch entendeu isso depois que foi ultrapassada no mercado de ferramentas pela Dongcheng. A alemã tem se empenhado em conectar-se a ecossistemas locais organizando programas de incubação e investindo em iniciativas chinesas. A holandesa DSM, de químicos especializados, comprou uma companhia chinesa de componentes fotovoltaicos pelo mesmo motivo. A Pfizer firmou parcerias com a Tencent e a seguradora chinesa Ping An em competições locais de planos de negócios de healthcare.
3. Cuide de sua base doméstica. Ainda que as empresas ocidentais sejam bem consolidadas em seu setor de origem e no mercado doméstico, elas têm de estar atentas a possíveis ameaças competitivas das chinesas. Assim, precisam fortalecer seu conhecimento dos próprios mercados e compreender como a nova safra de inovadoras chinesas poderá operar e inovar se decidir atuar lá. As ocidentais também devem explorar necessidades mutáveis dos clientes, investir em novas tecnologias e fazer sua transformação digital:
Nossas recomendações apontam caminhos para as empresas ocidentais competirem mais efetivamente com as inovadoras emergentes chinesas. Não é o caso de apenas tentarem ser “mais locais” na China; elas devem é estudar essas sino-inovadoras, compreender os desafios que colocam e dar respostas rápidas e fortes a essas questões.