O uso desenfreado de chatbots e de outras tecnologias de inteligência artificial e a maior recusa pelo modelo presencial de trabalho afetam o desenvolvimento das soft skills, características indispensáveis para o profissional do futuro
Há dez anos, em um mundo ainda sem Alexa (ok, a Siri já existia, mas ainda sem tanta popularidade), o filme Her apresentou a história de “amor” entre um humano e uma assistente virtual e as implicações sociais daquela distópica relação: Samantha, uma inteligência artificial cativante e com aparentes sentimentos genuínos por Theodore, um escritor de cartas personalizadas cada vez mais isolado e envolvido com aquela companhia sem carne, nem osso. Em uma cena, o personagem interpretado por Joaquin Phoenix questiona o valor de seu trabalho, refletindo se de fato ajudava as pessoas com suas palavras ou se apenas criava uma ilusão de conexão emocional entre elas.
Corta para o nosso mundo atual.
Vivemos o boom dos chatbots, com simulações e interfaces cada vez mais sofisticadas e acessíveis, em que a máquina, adaptada às preferências do usuário, oferece apoio, informação, lazer e prazer sem a expectativa de reciprocidade. Somos livres para programarmos a companhia virtual ideal. E qual é o impacto nas vivências interpessoais? Como aprimorar as chamadas soft skills se nos distanciamos e nos prendemos cada vez mais às plataformas digitais? Neste texto, você ainda verá muitas outras interrogações.
Nas recentes edições da South by Southwest (SXSW), onde acompanhei uma série de palestras do South Summit Brazil, no qual representei o CESAR em um dos painéis, e de outros eventos, as soft skills estão no centro do debate, seja para falar de educação, inteligência artificial (IA) ou das necessidades para o profissional do futuro. Pensamento analítico e crítico, inteligência emocional, raciocínio lógico, resolução de problemas, criatividade, liderança, persuasão e negociação, resiliência, tolerância ao estresse e flexibilidade estão entre as habilidades listadas pelo Fórum Econômico Mundial que estão mais em alta no mercado. Mas como pensar criticamente se somos constantemente induzidos por algoritmos? Como ser mais criativo quando temos conteúdo pronto à distância de um clique? Como persuadir se lidamos com obedientes robôs? “Como desenvolver human skills se as plataformas digitais nos isolam?”, fiz esta provocação no South Summit.
A dissonância nos dias atuais aumenta devido à enorme barreira para retomar a rotina presencial de trabalho. Para muitos, até o híbrido deixou de ser possibilidade. É 100% remoto: “Entrego o que pedem, tudo certo, mas ficarei aqui no meu cantinho”. De forma consciente ou inconsciente, optamos por mais isolamento, e isso não ajuda no desenvolvimento das capacidades profissionais requeridas.
A rotina de mediação digital transmite de forma precária diversos parâmetros, e vamos preenchendo em nossas cabeças, ao nosso modo, as características de personalidade daqueles com quem estamos lidando só por meio de telas. Pior: assumimos tais aspectos como verdadeiros. Fazemos isso mesmo sabendo ser possível apenas ao longo da convivência, e esta pode ser frustrante. Ninguém quer se frustrar mais.
A tendência é de massificação da interação com as companhias digitais “perfeitas”, como chatbots, assistentes de voz e avatares, livres dos nossos humanos defeitos. A tal “virtual companionship” tem um capítulo dedicado por Rohit Bhargava no ótimo livro The future normal – cujo subtítulo é como vamos viver, trabalhar e prosperar na próxima década, em tradução livre. “E se você pudesse desenvolver um relacionamento significativo com um aplicativo ou um robô?”, questiona. Embora as entidades virtuais possam oferecer benefícios em termos de engajamento do cliente e criação de relacionamentos, também há riscos significativos a serem analisados. Um deles é a dependência emocional.
Bhargava observa que as pessoas podem se tornar tão dependentes que podem negligenciar as conexões humanas reais e, em última análise, prejudicar a saúde mental e emocional. Ele ainda adverte empresas a serem cuidadosas ao criar essas entidades virtuais, para garantir ética, privacidade, segurança e outras responsabilidades, além de evitar prejuízo aos usuários. As companhias precisam estar cientes de que esses relacionamentos virtuais não substituem as conexões humanas reais e devem ser vistos como complementares.
O alerta é ignorado por muitos. Um exemplo é o assustador crescimento do Xiaoice, chatbot desenvolvido pela Microsoft e fenômeno na China, um sucesso graças à programação avançada de inteligência artificial e capacidade de aprendizado de máquina. Parte considerável dos mais de 700 milhões de usuários “namora” com a IA, que age como se fosse uma jovem com seus 20 e poucos anos. Problemático, para dizer o mínimo.
A terapeuta belga Esther Perel compartilhou no SXSW o caso de um paciente que, ao não conseguir uma consulta com ela, criou o BOT Esther, uma IA treinada com os artigos da profissional, para lidar com seus dilemas amorosos. Apesar da inovação, Esther, claro, desincentiva, porque não há respostas certas ou erradas quando se trata de questões complexas. A IA não tem experiência de vida ou memórias emocionais, necessárias para a real interação clínica.
Voltando ao indiano Bhargava, ele diz para não criarmos futuros apocalípticos e sermos otimistas quanto às transformações tecnológicas. Para isso, em minha opinião, não podemos continuar nos limitando a interagir das nossas casas. Além do componente da economia, com vários setores afetados pelo home office, pode haver uma lacuna muito grande nas habilidades de relacionamento entre as pessoas, e esta ficha parece não estar caindo. Não é só presencial, nem tampouco só remoto. Nem tanto, nem tão pouco. Que voltemos a nos arriscar mais, a nos frustrar mais, a nos relacionar mais com as pessoas. Imperfeitas, porém verdadeiras.