INOVAÇÃO 14 min de leitura

Por que mesmo a ciência é um bom negócio no Brasil?

Como fazer com que as empresas precisem organicamente de pesquisa para prosperar? Essa pergunta deve nortear o novo paradigma de estratégia no Brasil, levando os gestores a querer transformar conhecimento científico em produtos e serviços com alto valor agregado

Bruno Stefani
16 de dezembro de 2024
Por que mesmo a ciência é um bom negócio no Brasil?
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O mundo corporativo brasileiro foi chacoalhado neste final de ano por dois eventos que colocaram em pauta uma parte pouco discutida do futuro da inovação no País. Tanto o Forward, organizado pela Oxygea, como o Deep Tech Summit, promovido pela Emerge, jogaram luz sobre o fato de que negócios de base científica podem transformar empresas em protagonistas de um novo ciclo de desenvolvimento tecnológico.

A sequência de debates a que assistimos evidenciou a necessidade de superar a visão mais tradicional da economia brasileira, aquela que posiciona as universidades como as únicas produtoras de conhecimento e as empresas como meras receptoras. Isso perdeu a validade no cenário dinâmico e competitivo do século 21. Agora é essencial que as empresas assumam um papel diferente: o da produção e integração de ciência, tecnologia e inovação.

Muitos leitores provavelmente questionarão esta minha coluna de estreia, com dúvidas sobre a razão de ser necessária a mudança de perspectiva. Mas é mera questão de lógica: considerando a complexidade dos principais desafios contemporâneos – a busca de soluções para as alterações climáticas (que cada vez mais afetam tudo e todos), para a saúde e o bem-estar da população, e para impulsionar um crescimento econômico sustentável –, não há como ver caminho que não tenha pesquisa e desenvolvimento (P&D) como ponto de partida. Copiar o que se faz lá fora, seja por questões de timing ou de custo, não bastará.

E sem o setor privado se apropriar da P&D como nunca antes (direta e indiretamente, com a integração entre universidades e empresas), é improvável que esses desafios sejam vencidos. O caminho para isso é simples: para transformar ciência em impacto concreto – gerando riqueza, empregos e melhorando a qualidade de vida da população –, é essencial que se torne um bom negócio fazer pesquisa nas empresas.

Vamos à raiz do problema? As empresas brasileiras ainda não enxergam plenamente a ciência como um bom negócio devido a uma combinação de fatores estruturais e culturais. O baixo investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D), somado à desconexão entre academia e mercado, dificulta a aplicação prática do conhecimento científico. Além disso, a visão de curto prazo predominante no setor privado, aliada à percepção de alto risco e incertezas nos projetos baseados em ciência, desestimula iniciativas inovadoras. Mesmo com políticas de incentivo, como a Lei do Bem, a burocracia e o desconhecimento limitam sua efetividade.

O sistema brasileiro de inovação hoje, estruturalmente desconexo

O sistema brasileiro de ciência e tecnologia possui bases sólidas em suas universidades e institutos de pesquisa, mas enfrenta lacunas estruturais que limitam sua eficácia. Entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil está entre os que possuem a menor proporção de pesquisadores atuando em empresas – apenas 35% dos pesquisadores brasileiros trabalham no setor privado, o que contrasta muito comos 70%, em média, da OCDE. Essa desconexão entre academia e setor privado cria um gargalo que restringe o potencial de inovação e, consequentemente, o impacto econômico e social da ciência.

Para ilustrar ainda mais essa disparidade, podemos comparar o Brasil com um país como a Coreia do Sul, onde mais de 80% dos pesquisadores estão no setor empresarial, impulsionando a inovação em setores como eletrônicos e tecnologia da informação. As consequências dessa diferença estão medidas: enquanto o Brasil ocupa a 62ª posição no Índice Global de Inovação de 2023, a Coreia do Sul figura entre os dez primeiros colocados.

Que ninguém se apresse a culpar a falta de recursos, no entanto; o Brasil investe cerca de 1,2% do PIB em P&D, valor similar ao da Espanha, mas seus resultados são inferiores. O que existe é uma compreensão equivocada sobre os papéis de cada ator no ecossistema de inovação. A universidade é vista como a origem exclusiva do conhecimento, enquanto as empresas são consideradas apenas como locais de aplicação. Essa simplificação ignora a dinâmica dos países líderes em inovação, onde empresas desempenham papel central na pesquisa de ponta, muitas vezes superando instituições acadêmicas.

O sistema amanhã, sob o paradigma do novo “lugar da pesquisa”

A ideia de que somente doutores podem ser pesquisadores e de que o local legítimo para realizar pesquisa é a universidade precisa ser revisada. Pesquisadores em empresas frequentemente são engenheiros ou profissionais altamente capacitados que utilizam o conhecimento científico para resolver problemas práticos e criar soluções inovadoras. Exemplos internacionais, como os avanços em computação quântica liderados por empresas como Google e IBM, reforçam que o setor privado pode estar na vanguarda do conhecimento. Nos Estados Unidos, por exemplo, empresas como a Apple e a Microsoft investem bilhões de dólares anualmente em P&D, superando o orçamento de muitas universidades de renome.

Entretanto, no Brasil, a estrutura econômica e regulatória não estimula as empresas a investir em pesquisa. A complexidade fiscal, a falta de exposição ao mercado internacional e a baixa inserção nas cadeias globais de valor criam um ambiente em que mobilizar recursos para P&D muitas vezes não é atrativo para as empresas. O Brasil ocupa a 124ª posição no ranking de facilidade para fazer negócios do Banco Mundial, e as dificuldades relativas ao pagamento de impostos e à burocracia para abertura de empresas, que explicam boa parte dessa posição de “lanterninha”, impactam diretamente a capacidade das empresas de investir em inovação.

Enfrentando o desafio de alinhar interesses e incentivos

Para mudar esse cenário, é preciso ir além da oferta de incentivos fiscais. Embora o Brasil já disponha de incentivos, como a Lei do Bem, eles não têm resultado em um aumento proporcional de investimentos privados em pesquisa.

Segundo dados da Anpei [Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras], os investimentos em P&D realizados pelas empresas no Brasil representam cerca de 0,5% do PIB, enquanto em países como a Suécia esse número chega a 2,5%. Isso ocorre porque o verdadeiro motor da inovação é a competitividade. Empresas que aspiram ser líderes globais precisam investir em pesquisa não por imposição ou incentivo, mas como um elemento essencial para sua sobrevivência e crescimento no mercado.

Mexendo na métrica das publicações científicas

Além disso, a estabilidade regulatória é fundamental. Investimentos em pesquisa são, por natureza, de longo prazo, e as empresas precisam confiar que as regras do jogo não mudarão de forma abrupta ao longo de décadas. A incerteza política e econômica no Brasil é um fator que inibe investimentos de longo prazo, como demonstra o Índice de Confiança Empresarial, que apresenta flutuações significativas nos últimos anos. Somado a isso, a simplificação das regras fiscais e trabalhistas poderia liberar recursos para que as empresas redirecionem esforços ao desenvolvimento tecnológico.

Um indicador importante para medir o compromisso das empresas com a pesquisa é o número de publicações científicas com autores ligados ao setor privado. No Brasil, esse número é baixo, o que reflete uma limitação na capacidade de absorver conhecimento científico. Em 2022, apenas 15% dos artigos científicos publicados por brasileiros tiveram a participação de autores vinculados a empresas, enquanto na Alemanha esse índice ultrapassa 40%. Essa “capacidade absortiva” é essencial para que empresas consigam colaborar efetivamente com universidades e utilizar o conhecimento gerado para inovar.

Publicações científicas não são apenas uma questão acadêmica. Elas representam, para as empresas, uma forma de dialogar com a comunidade científica global, atrair talentos e proteger conhecimentos inovadores contra a concorrência, sem a necessidade de custos elevados associados a patentes.

Revisão de estratégia

O Brasil precisa urgentemente rever sua estratégia para ciência e tecnologia, com foco em reorganizar o sistema de inovação de maneira que inclua as empresas como protagonistas na produção de conhecimento. A pergunta central deve mudar de “como transferir conhecimento da universidade para as empresas?” para “como fazer com que as empresas precisem organicamente de pesquisa para prosperar?”

Uma abordagem eficaz incluiria:

  • Inserção nas cadeias de valor globais. Estimular a participação de empresas brasileiras em mercados internacionais, onde a competitividade exige pesquisa e inovação contínuas. Atualmente, a participação do Brasil nas cadeias globais de valor é baixa, concentrando-se em setores com baixo valor agregado, como commodities. Comparativamente, países como a China e a Alemanha possuem uma forte inserção em setores de alta tecnologia, impulsionada por investimentos em P&D.
  • Valorização do conhecimento técnico. Ampliar a visão de pesquisador para além do título de doutor, reconhecendo o valor de profissionais que aplicam ciência para resolver problemas reais. É crucial incentivar a formação de tecnólogos e engenheiros, profissionais essenciais para a pesquisa e desenvolvimento em empresas.
  • Promoção de competitividade global. Apoiar empresas que busquem ser líderes mundiais, incentivando parcerias entre o setor privado, governo e academia. Programas de apoio à internacionalização de empresas, como o StartOut Brasil, podem auxiliar as empresas brasileiras a competir em mercados globais.
  • Definição de prioridades nacionais. Criar um ambiente institucional que envolva pesquisadores, empresas e governo na definição de temas estratégicos de pesquisa, como sustentabilidade, mudanças climáticas e biotecnologia. A criação de redes de pesquisa colaborativa, com a participação de universidades, empresas e institutos de pesquisa, pode potencializar os investimentos em áreas estratégicas para o País.
  • Simplificação e estabilidade regulatória: Um ponto tão óbvio que dá vontade de não incluir na lista é o de reduzir a burocracia e garantir previsibilidade nas regras econômicas, permitindo que as empresas façam investimentos de longo prazo.

Então… potência em ciência e tecnologia?

O Brasil tem possibilidade de se tornar uma potência em ciência e tecnologia? SIM, um sim em letras maiúsculas. Seja pelo tamanho da nossa economia, pelos nossos talentos científicos (se não houvesse o êxodo…), pelos nossos recursos naturais, pela diversidade de população… É preciso não esquecer que, com condições limitadas, já fizemos muito.

Porém isso nunca vai acontecer sem uma mudança de mentalidade na esfera pública e talvez principalmente na esfera privada. Ciência e tecnologia tem de parar de ser visto nas empresas como um custo – ou, pior, um luxo –, e ser enxergado pelo que realmente é: uma necessidade para quem quiser competir e prosperar em um mundo cada vez mais baseado no conhecimento. Transformar esse ideal em realidade começa pela ambição das empresas, mas não depende apenas delas, é claro; são igualmente essenciais políticas públicas inteligentes e universidades que formem profissionais preparados para liderar o futuro. Afinal, a pesquisa só alcança seu maior potencial quando atravessa o fio que conecta a ciência às demandas da sociedade e do mercado.

E, para que a ciência realmente gere impacto e transforme a vida das pessoas, ela precisa se materializar em inovação.  É aqui que entram as startups de base científica, empresas nascidas da pesquisa, com potencial para revolucionar mercados e criar soluções disruptivas. O Brasil precisa incentivar a criação e o crescimento dessas “science-based companies” ou “deep techs”, impulsionando o empreendedorismo inovador e transformando o conhecimento científico em produtos e serviços com alto valor agregado.

Imaginem startups brasileiras desenvolvendo tecnologias de ponta em áreas como biotecnologia, nanotecnologia e inteligência artificial, conquistando mercados globais e gerando riqueza para o País. Aos que querem essa visão se tornando realidade, saibam que o caminho já é conhecido: criar um ambiente favorável à inovação, com acesso a investimento, infraestrutura e talentos qualificados.

Estou convencido, nessa estreia como colunista da MIT SMR Brasil, que acreditar no potencial das startups de base científica é acreditar no futuro do Brasil. É apostar na capacidade dos brasileiros de transformar conhecimento em prosperidade, gerando soluções inovadoras para os desafios do mundo e construindo um país mais competitivo, justo e sustentável. Quem quer acreditar no futuro do Brasil? Eu, que tenho filhos, quero.

Bruno Stefani
Bruno Stefani é fundador da NERD Partners, especializada em conectar inovação e pesquisa a negócios consolidados. Foi diretor global de inovação da Ambev e líder de inovação aberta no Itaú. É conselheiro de empresas em temas de inovação e professor na Fundação Getulio Vargas, Insper e Fundação Dom Cabral. Integra o conselheiro editorial da MIT SMR Brasil.

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