Não, eu não cometi um erro de digitação. O assunto da coluna é coopetição mesmo. Trata-se de um neologismo que descreve a junção de cooperação com competição.
Ela ainda é pouco usual, mas pode fazer diferença em diversos mercados, principalmente em casos de desafios em comum, que podem ser superados com maior facilidade quando há um esforço conjunto. Nesse caso, diferentes atores de um mesmo ramo de atividade podem se apoiar em busca de um benefício maior.
O setor de tecnologia tem adotado essa prática há alguns anos, incluindo entre empresas que costumam ser grandes rivais. Sony e Microsoft, que competem no mercado de videogames com o Playstation e o Xbox, respectivamente, anunciaram em 2019 uma parceria para trabalhar soluções baseadas na nuvem para a experiência de jogos e inteligência artificial.
O setor automotivo também tem alguns exemplos – e aqui no Brasil. É o caso da Autolatina, joint venture criada pela Ford e pela Volkswagen para atuar nos mercados brasileiro e argentino nos anos 1980 e 1990.
Normalmente, o relacionamento entre empresas pode assumir um caráter de competição ou de cooperação. As palavras são bastante claras, mas cabe exemplificar o que está dito para que não se perca a continuidade do raciocínio. A competição, diz a teoria dos jogos, envolve organizações que oferecem produtos ou serviços similares ou alternativos entre si, disputando a atenção dos mesmos clientes e lutando por um espaço restrito no mercado. As equações estabelecidas são de “ganha-perde”: para que alguém lucre, outro deve ter prejuízo, estabelecendo uma soma zero. Em algumas situações, se essa contenda não seguir regras bem estabelecidas ou se estiver à margem de qualquer regulação, o resultado pode ser a ruína dos concorrentes.
O matemático John Nash, vencedor do prêmio Nobel de Economia e inspiração do filme Uma Mente Brilhante (em que ele foi interpretado por Russell Crowe), incluiu na teoria dos jogos a ideia da cooperação. Em vez de um “ganha-perde”, Nash demonstrou que, em diversas situações, é possível (e preferível) definir regras e estratégias de atuação que levem ao equilíbrio.
Ou seja, na prática, empresas convivem no mercado e concorrem entre si. Mas elas não precisam causar perdas ao adversário para prosperar.
Batizado de “Equilíbrio de Nash”, o modelo é considerado mais sustentável a longo prazo para a geração de riqueza e a manutenção de um ambiente de negócios menos hostil. Nesse cenário, as organizações atuam para maximizar seus ganhos, mas o fazem levando em conta as ações dos outros competidores.
O objetivo é estabelecer situações de “ganha-ganha”, em que todos os envolvidos saiam beneficiados. Qualquer mudança que desconsidere essa equação pode causar perdas para o responsável pela manobra.
A coopetição (“coopetition”) é um conceito popularizado pelo britânico Adam Brandenburger e o americano Barry Nalebuff, especialistas em teoria dos jogos. Ela trata de um cenário em que concorrentes não buscam apenas o equilíbrio e o convívio pacífico, mas vão além: estão dispostos a se unir em busca de um benefício maior.
Tal modelo de atuação empresarial pode ser um elemento importante na área da saúde, especialmente no segmento privado. Vejamos.
Operadoras de planos de saúde e seguradoras garantem acesso à saúde para mais de 51 milhões de brasileiros. Mas quem pensa que o cenário para o setor é de tranquilidade se engana.
Mais de 70% do financiamento da saúde suplementar é garantido por empresas de outros setores (indústria, comércio e serviços), que oferecem o benefício a seus funcionários. Muitas delas competem em um ambiente desafiador, de baixo crescimento, então não podem aceitar reajustes no patamar que as operadoras julgam ideal. Pelo contrário: em negociações anuais liberadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, o comum é que as contratantes pressionem para que os valores permaneçam estáveis.
Por outro lado, a demanda e os gastos do setor continuam em alta. Entre 2019 e 2023, o número de beneficiários nos planos de saúde cresceu 8,6% e o volume de procedimentos realizados cresceu 17%.
Ao mesmo tempo, as despesas assistenciais tiveram aumento de 10% em valores reais (descontada a inflação medida pelo IPCA). Em valores nominais, o crescimento foi de 40%.
O quadro é desafiador: as operadoras enxergam a demanda por procedimentos crescer mais do que o volume de beneficiários pagadores. Já os fornecedores de serviços realizam um volume maior de procedimentos, mas a receita em valor real cresce menos do que a demanda. Buscar soluções é essencial para a própria manutenção do sistema.
Podemos aplicar ao setor de saúde um modelo que se tornou popular na área de tecnologia, o de ecossistema econômico, espaço de mercado em que a cooperação entre empresas, instituições de pesquisa, governo e outros entes contribui para o progresso de todos. É uma área em que a coopetição teria tudo para crescer.
Existe muita interligação entre operadoras, hospitais, clínicas, laboratórios, médicos e outros profissionais de saúde. Isso é evidente. Mas faltam medidas que levem ao equilíbrio do setor.
O ecossistema propício para o desenvolvimento de negócios com relação interdependente entre si depende da distribuição da prosperidade. Ou seja: competir em um cenário de “ganha-perde” é cada vez menos viável.
Se não pensarem na sobrevivência e na preservação da capacidade de investimentos dos prestadores de serviços e fornecedores, ao longo do tempo as operadoras de saúde assistirão à derrocada daqueles que garantem a qualidade no atendimento aos seus clientes. Ao mesmo tempo, clínicas, laboratórios e hospitais não devem enxergar as operadoras como adversárias, mas como parceiras. O atendimento em saúde é baseado em uma cadeia de cuidados: quando um elo enfraquece, todos saem prejudicados.
De maneira bastante clara, portanto, há um enorme ganho comum resultante da cooperação entre competidores em um ecossistema de negócios complexo como o da saúde. É uma condição essencial para a coopetição: o interesse mútuo entre diversos atores do setor. Outra condição, mais complexa, requer o estabelecimento de maneiras de atuação em conjunto que convençam os envolvidos a caminharem na mesma direção.
Por fim, é preciso conhecer e registrar a realidade de cada indivíduo. Pensar não apenas no acesso aos cuidados básicos e necessários, mas principalmente na conclusão do tratamento. A tecnologia pode ajudar a combater problemas comuns (como o trânsito do paciente entre especialistas escolhidos aleatoriamente ou a solicitação de exames já feitos) e garantir o adequado desfecho de cada caso.
A tarefa é gigantesca. Se não tivermos disposição e empenho para investir na cooperação entre competidores, o futuro do setor é uma incógnita.
Em contrapartida, pode haver uma oportunidade para desenharmos um novo modelo mais sustentável e que garanta a qualidade no atendimento à população, permitindo um “ganha-ganha” para operadoras de saúde, prestadores de serviço e, principalmente, para os pacientes. A saúde brasileira agradece.
Artigo escrito em parceria com Ademar Paes Júnior, CEO da LifesHub e médico radiologista da Clínica Imagem-Hospital Care.