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Ensaio sobre a desoneração – parte 1

Entenda como o espaço digital desonera a tríade econômica (produzir, distribuir e consumir) e inaugura necessidades bem mais sutis do que as dos humanos da Idade da Pedra: o sentimento de pertencimento, a busca por atenção, a fuga do tédio, ou a expressão de ser o que parece ter ficado fora do nosso alcance…

Cássio Pantaleoni
30 de julho de 2024
Ensaio sobre a desoneração – parte 1
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Produzir, distribuir, consumir: é o que define o que entendemos por economia. A extensão desse conceito para o ambiente digital acontece quando conteúdos ou ativos digitais replicam as características dos bens físicos. Não há novidade. Contudo, para alcançar o significado da economia digital, é preciso recorrer ao passado para entender os horizontes de possibilidade e os valores que por ora estão em jogo.

Em 2011, no Quênia, arqueólogos encontraram 20 artefatos de pedra. Eram bigornas, bastões e lascas de 3,3 milhões de anos antes de nossa época. O achado reforçou a compreensão de como os hominídeos criavam instrumentos que otimizavam a relação com o ambiente. Em vez de gritos ou mordidas, defendiam-se com bastões de pedras; antes de rasgar a carne crua com os dentes, fatiavam com lascas de pedra; para superar a perda dos dentes, maceravam os alimentos.

Ainda hoje consumimos o que otimiza a nossa relação com as circunstâncias cotidianas onerosas. É improvável que haja interesse em consumir um escafandro quando se vive em alguma área desértica de sol escaldante e carente de fontes de água. Mas o mesmo não acontece quando precisamos de um guarda-chuvas em um dia torrencial.

Nossa imaginação sempre duelou com as circunstâncias e, de alguma maneira, na caminhada evolutiva, nos levou a criar artefatos para melhorar a nossa relação com o ambiente. Ao produzir uma ferramenta útil, nossos ancestrais aumentaram seu potencial de sobrevivência e segurança.

Resta apenas resgatarmos como, na caminhada evolutiva, aprendemos o valor da distribuição. É algo facilmente presumível: nem todos sabem fazer, nem todos têm a habilidade de repetir o modo de fabricar, nem todos têm o tempo disponível para aprender ou produzir, nem todos encontram os recursos necessários para a produção.

Nossos ancestrais pré-históricos rapidamente entenderam a possibilidade do escambo, pela troca de um objeto por outro – bastões de pedra por comida ou por pele de animais, por exemplo. Mas como realizar o escambo quando Loki deseja o objeto do Kowan e Kowan não se interessa por nada em posse de Loki? Cria-se um objeto genérico – um disco de cobre, ou prata, ou ouro – uma moeda.

No mundo digital, os produtores de bens não usam pedra, madeira ou metal. Seus produtos são feitos com insumos digitais, que resultam em aplicativos, imagens, música, textos, criptoativos, metaversos, protocolos de comunicação, APIs, mensagens etc. Tudo pode ser colocado ao alcance de um clique e consumido de maneira a otimizar a nossa relação com o mundo físico ou com o virtual.

Trata-se de um espaço que inaugura necessidades bem mais sutis do que as dos humanos da Idade da Pedra: o sentimento de pertencimento, a busca por atenção, a fuga do tédio, ou a expressão de ser o que parece ter ficado fora do nosso alcance. Como escreveu Byung-Chul Han, trata-se de tudo que é “doloroso” e que desejamos subtrair das nossas vivências cotidianas. É uma peculiar necessidade de urgência de cura.

A meta-disrupção da economia digital se concebe, então, como a irrupção da promessa da inovação, que se distancia do familiar entediante para se aproximar de um horizonte mantido como mero horizonte. Aqui está o “pulo do gato”. A economia digital realiza o peso da existência enquanto nos dá as asas e o céu virtuais. Assim, o horizonte do sentido se disfarça de destino.

Não é de surpreender que agora surja uma nova tábua de mandamentos, esculpida com algoritmos que correlacionam nossos anseios de criação e de protagonismo com nossos receios de insignificância e de ostracismo. Nesse sentido, a economia digital é um antídoto para tudo aquilo que nos devolve às armadilhas da realidade física da vida.

Descubro, porém, em mim, uma reflexão bastante distintiva (e por que não dizer um tanto distópica): que haverá de ser da existência desabitada do mundo físico, privada dos estímulos e privações reais? Que caracterização de mercado poderá abrir oportunidades ainda não pensadas?

(Continua em breve…)

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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