A escuridão impõe medo em razão do que vai iluminando a alma. Para líderes e equipes, um momento obscuro, de incertezas, por exemplo, pode servir de resistência estratégica para exercitar a intuição e a criatividade
“No início dos anos 50, o psicólogo Donald Hebb conduziu experimentos associados ao “isolamento sensorial”. Seu interesse estava dirigido ao funcionamento do cérebro diante da ausência de estímulos.
Hebb recrutou voluntários e os colocou em condições de isolamento perceptivo. Em pequenos “casulos”, eles tiveram seus olhos cobertos por óculos que dificultavam o reconhecimento de padrões. As mãos dos participantes foram revestidas com luvas espessas de algodão para reduzir a percepção táctil, e os ouvidos envoltos em peças de espuma para dificultar a percepção auditiva.
Depois de algum tempo, os voluntários relataram desorientação, confusão mental ou – o que mais surpreendeu Hebb – alucinações. Muitos deles viram ou sentiram coisas que não estavam lá. No início, apenas pontos ou padrões geométricos. Depois, imagens mais complexas. Era como se estivessem “sonhando acordado”.
Atualmente, já se sabe que, diante da falta de estímulos comuns e contínuos, o cérebro compõe, pela combinação de sinais do córtex visual com as nossas memórias, imagens bastante vívidas. Ou seja, ele produz seus próprios estímulos: alucinações.
É fácil entender a causa. As concepções atuais da consciência, entre elas a de Stanislas Dahene, pesquisador neurocientista francês, admitem que ela vigora sempre ali onde o foco de nossa atenção está. Em larga medida, a alucinação é um objeto com o qual a consciência se ocupa quando não há estímulos provocando nossos sentidos.
Em situações de escuridão – tanto a escuridão real quanto a metafórica, ou seja, pontos cegos do entendimento – nosso foco de atenção reclama um objeto externo.
Nosso “olhar” perscruta incessantemente os nossos sentidos em busca de algo com o que se ocupar. Qualquer fóton que atinge os fotorreceptores de nossa retina, qualquer ruído, qualquer sensação táctil, imediatamente atrai a nossa atenção. É como se quiséssemos estar “em casa”, quer dizer, perto da condição em que funcionamos melhor: no conforto de um mundo iluminado e reconhecível.
Fenômeno muito semelhante dá-se no âmbito do entendimento. Diante do estranho, nossa atenção sempre se ocupa com o que nos é mais familiar. A mancha disforme no vidro de uma janela é interpretada como o rosto humano, a nuvem de forma indefinida se assemelha à imagem de um elefante, e assim por diante.
De maneira análoga, a obscuridade de um tema ou de um conceito desloca nossa atenção para os conceitos com os quais estamos mais acostumados. Fugimos para a luz dos costumes e nem sequer nos damos ao trabalho de pensar que é ali, na obscuridade, naquele ambiente estranho, que habitam novas possibilidades.
Para evitar o êxodo de nossa atenção para a clareira do familiar, é preciso iluminar as densas sombras do estranho com outro tipo de luz. É a luz que se aninha na sabedoria – a lucidez. Lúcidos, somos transparentes a nós mesmos, e o foco de atenção se ocupa com a consciência de que não devemos temer a escuridão, ou temer o estranho.
A filosofia oriental chama esta lucidez de “a bravura do guerreiro da luz”: bravura, aqui, no sentido de duvidar do familiar.
Ao longo de minha carreira profissional, pude observar como a intrincada relação entre estratégia e execução depende do que vai iluminado na alma de quem as pensa, as exerce e as ajusta. Em grande medida, posso afirmar que poucas são as estratégias que falham por conta de serem mal pensadas; é a execução dessas estratégias que geralmente é conduzida de modo inapropriado.
O ponto chave sobre a execução está apropriadamente determinado no livro “Execution: the discipline of getting things done” (2002), de Larry Bossidy e Ram Charam: “O verdadeiro problema é que a execução simplesmente não parece muito sexy. É o que um líder delega.”
Esta delegação da estratégia – eximir-se da responsabilidade de fazer parte –, de certo modo, se avizinha à fuga da “escuridão” (aludida no início do texto), pois toda a execução de uma nova estratégia nos coloca de frente para o não-familiar, para o estranho, para aquilo com o qual não estamos acostumados.
Em muitos casos, verifiquei que certas lideranças delegam a execução porque de modo inconsciente temem não saber iluminar os obscuros caminhos da construção do novo. Em outras palavras, inconscientemente, temem ser identificados como corresponsáveis pelo fracasso, não tendo a quem culpar.
Creio que a execução demanda um esforço analítico muito grande e as lideranças ainda creem que precisam encontrar alguém que “saiba” o que deve ser feito. Mas a coisa não é bem assim.
Bossidy e Charam são enfáticos, para bem executar uma estratégia: “concentre-se em levantar as questões certas, debatê-las e encontrar soluções realistas. Evite discursos artificiais, politizados, fragmentados e que cobrem o traseiro. A franqueza ajuda a eliminar as mentiras silenciosas e os vetos de bolso, e impede as iniciativas paralisadas e os retrabalhos que drenam energia.”
Observem que o convite destes autores também é dirigido às lideranças. Essencialmente, é um convite à escuridão.
O argumento de Bossidy e Charam é fácil de compreender: ao invés de fugir para o campo daquilo que é familiar e confortável, deveríamos resistir; precisaríamos nos tornar lúcidos dos subterfúgios que invariavelmente nos levam a procurar desvios ou atalhos, as “mentiras silenciosas”, os “discursos politizados”.
Execução, no sentido de suportar uma nova estratégia, é aceitar entrar num quarto desconhecido, sem luz, à prova de som, e resistir às alucinações da consciência, mantendo a lucidez e levantando “as questões certas”.
Ao mencionar anteriormente “a bravura do guerreiro da luz” – núcleo de algumas filosofias orientais – o fiz porque em grande parte da minha vida profissional pude ver duas categorias de indivíduos em atuação, fossem eles líderes ou membros de equipe.
Há o grupo que se ocupa com o pôr do sol, quero dizer, aquele indivíduo que diante da primeira dificuldade – seja uma dificuldade própria ou circunstancial – assume o fim da empreitada antes de alcançar o objetivo. São pessoas que jogam a toalha, que não resistem à dor do obstáculo, que fogem da escuridão em razão de estar o mais cedo possível em casa, no familiar – aquele conforto que reafirma que “não tem jeito, as coisas são assim mesmo”.
Contudo, encontrei também aquele outro grupo, o grupo que está sempre ocupado com o nascer do sol. Pessoas que não temem a crítica ou o obstáculo, que não se abatem diante da intempestiva intervenção de um contrariado. Diante do estranho, do obscuro, mantêm o coração aberto, com diligente ternura, sem resistência, sem constrangimento.
Esta coragem não se dá por total ausência do medo, mas antes pela disposição para ir além dos receios, com a lucidez de que tudo o que se teme não passa de alucinação. Estes “guerreiros” não nutrem temor, pois confiam em si mesmos e na grandeza de suas almas. Eles possuem a “bravura dos guerreiros do sol nascente”. Eles entendem que a estranheza, a obscuridade e as dificuldades são parte do natural processo de se por em obra de um objetivo.
Estratégias falham quando a execução fraqueja. Manter-se na circunstância familiar, ali onde podemos subtrair a nossa responsabilidade, nos escondendo ou indo dormir, é se ocupar com o sol poente.
Para bem executar é preciso franqueza. Protocolos e formalismos não incitam debates produtivos. É preciso abrir espaço para perguntas, promovendo o pensamento intuitivo e crítico.
Muitas organizações, diante da dificuldade em executar suas estratégias, engrossam as hierarquias, dividem áreas, criam scripts. Em suma, acomodam-se no familiar, nos costumes. Querem evitar as áreas escuras. Isto é contraproducente.
O que se faz necessário é encontrar líderes e equipes que não temam a dúvida, a incerteza e o estranho na execução da estratégia. E isto vale para os níveis mais altos da hierarquia, pois eles devem, sim, fazer parte da execução. Não pode ser algo simplesmente delegado. É preciso estar junto, carregando a lanterna da lucidez.
A luz da escuridão mora na nossa bravura para resistir. É o que molda os guerreiros que fazem o que deve ser feito. Gente que crê que no breu do horizonte há um sol por nascer.
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