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O futuro não está apenas em vender, mas oferecer conforto e pertencimento
Tendência não é uma palavra que me cai bem quando falamos de estratégias de marketing e negócios. Vou deixar de lado minhas críticas ao exercício de futurologia das “agências de tendência”, especialmente nestes tempos de mídias sociais, para explicar que, nos dias de hoje, quando ela, a tendência, chega às nossas vistas, na verdade não é mais uma orientação ou disposição. Ela já está se tornando mainstream.
Um exemplo disso, ainda que esteja na base da curva ascendente da tendência, é a obsessão sobre os espaços chamados de “o terceiro lugar”.
Mas, vejam, não estou falando do velho “terceiro lugar” inicialmente idealizado pela Starbucks, que relegava as suas lojas à condição de um lugar físico que pudesse pressupor um local a mais de permanência para além da casa e do trabalho. Essa é uma definição inicial e rasa do que se tornou o terceiro lugar.
No marketing atual, ele representa não um lugar físico, mas acima de tudo um lugar psíquico. É explicitamente um convite das marcas (geralmente as que capturaram o zeitgeist cultural) para que os consumidores façam parte de uma comunidade com afinidades compartilhadas, gerando conexões genuínas em torno de um interesse comum proporcionado por uma marca.
A volatilidade do mundo atual é tanta (e por conta disso o estresse tão elevado) que me ocorre mencionar a máxima trazida pela respeitada consultora de negócios e de tendências Melinda Davis. Ela expressa claramente em seu livro A Nova Cultura do Desejo, a respeito dos segredos sobre o que move o comportamento humano no século 21, que “brands are healers”; mal traduzindo, marcas são curadoras (no sentido de curar mesmo).
Em um paralelo ainda que raso, mas lúdico, estamos em um século cheio de contradições, paradoxos e dicotomias estressantes para os indivíduos, mas que, ainda assim, conseguem ser minimizados por um confortante abraço humano. Fica a pergunta: por que não mimetizar o abraço desses indivíduos por uma marca?
No cenário atual, onde a percepção da realidade é cada vez mais egóico-neurotizante devido à influência das mídias sociais, faz todo o sentido que as marcas explorem a força das comunidades como um antídoto para essa inquietação emocional.
Não se trata apenas de reunir indivíduos com hábitos de consumo semelhantes, mas de compreender suas atitudes em relação à vida e os comportamentos que orbitam uma categoria de marca para além do simples ato de consumir.
Essa abordagem exige um passo atrás, uma vista panorâmica (bird’s eye view, na expressão em inglês), sobre o estilo de vida dos usuários: suas preferências, as conexões que estabelecem entre a categoria de consumo e sua rotina, as recomendações que fazem e recebem e, claro, seus hábitos de compra — além de uma infinidade de outras variáveis que a tecnologia atual permite mapear com precisão.
A diferença essencial entre segmentação atitudinal e a construção de comunidades está justamente na mudança de perspectiva. Em vez de ter o hábito de consumo como ponto de partida, as marcas passam a enxergar o estilo de vida como o verdadeiro ponto de origem da relação e construção de vínculo com seus consumidores.
Quem sempre atuou no marketing de comunidade foram as marcas de luxo que emprestam atributos coletivos à satisfação individual dos seus usuários. Elas trazem para a jornada de consumo elementos alheios aos seus próprios negócios numa espécie de “razão para o usuário acreditar” que a marca conhece em profundidade os seus desejos.
O grande exemplo disso é a adoção, praticamente que total, das marcas de luxo da oferta de serviços de cafés e restaurantes dentro de suas flagship stores (lojas-conceito). Na Ásia, por exemplo, cidades como Bangkok, na Tailândia, e várias da China, como Shenzhen, Pequim e Shangai, inauguraram nos últimos três anos, no pós-pandemia, flagship stores com restaurantes três estrelas Michelin ou cafés temáticos assinados por profissionais do setor gastronômico.
A Louis Vuitton exemplifica o conceito de terceiro lugar com o LV The Place em Bangkok, onde o renomado chef Gaggan Anand oferece uma experiência gastronômica única dentro da loja. Inaugurado na primavera de 2024, esse restaurante combina a sofisticação da marca com a culinária inovadora de Anand, criando um espaço que celebra a arte de viajar, refletindo as origens da Louis Vuitton como fabricante de malas de luxo.
Aqui no Ocidente, a Tiffany & Co. apresenta o The Blue Box Café em sua recém-inaugurada e já icônica loja da Quinta Avenida, em Nova York. Esse café, concebido pelo chef Daniel Boulud, oferece uma experiência culinária que homenageia o legado da marca, permitindo que os clientes desfrutem de refeições em um ambiente que remete ao clássico filme “Breakfast at Tiffany’s” (“Bonequinha de Luxo”).
Esses exemplos ilustram como marcas de luxo estão criando espaços que vão além da simples venda de produtos, proporcionando experiências imersivas que fortalecem os laços emocionais com seus clientes.
Comunidade primeiro, comércio depois
Essa é uma frase que, para o Brasil, pode parecer um contrassenso gigantesco, já que vivemos em um mercado baseado em preço — com o agravante de que, no Brasil, preço é definidor de qualidade —, descontos, promoções e pagamentos parcelados.
Mas, não para o hemisfério norte ou para as mecas de consumo das grandes capitais do mundo. Estamos presenciando cada vez mais o lançamento de lojas-conceito em grandes cidades do mundo como Nova York, Berlim, Paris, Londres, Boston e São Francisco.
Já visitou nas suas viagens internacionais uma loja-conceito que também funciona como um espaço comunitário? Aposto que sim — e que saiu gastando mais do que planejava.
A nova geração de marcas está transformando esses espaços em extensões do cotidiano de seus consumidores — locais que parecem “vividos”, onde o engajamento e a experiência são a prioridade, enquanto as compras se tornam consequência.
Vamos combinar que a gente já viu embriões disso no Brasil, como é o caso da loja de artigos masculinos Reserva, que oferece uma experiência de compra mais descontraída para os homens, reconhecidos por não gastarem mais de cinco minutos numa loja; mas, aqui, sem o nível de imersão em estilo de vida de suas contrapartes americanas e europeias.
A Livraria Cultura flertou com o conceito por anos. Com absoluta certeza falhou no negócio porque talvez não tenha reconhecido que o negócio de livros no Brasil poderia se transformar em um modelo mais comportamental de negócios, englobando serviços, tecnologia e especificamente cultura como ofertas de valor até acima de seu core business.
O segmento fitness está dando um show de contemporaneidade.
O segmento mais próximo de uma visão panorâmica de comportamento de usuário é o de fitness. O ano de 2024 marcou o auge dos clubes de corrida, encontros fitness e coletivos esportivos — e isso não é por acaso. Marcas como a Bandit Running estão levando essa tendência a um novo patamar com as lojas-conceito.
A Bandit Running está redefinindo o conceito de lojas de artigos esportivos ao criar espaços que funcionam como verdadeiros centros comunitários. Sua flagship store, localizada no West Village de Nova York, exemplifica essa abordagem.
Além de oferecer produtos exclusivos, a loja promove eventos regulares, como corridas em grupo e encontros sociais, fortalecendo os laços entre os corredores locais e a marca. E tudo praticamente feito em collabs com outras marcas. Esses eventos são frequentemente anunciados em plataformas como o Eventbrite, facilitando a participação da comunidade.
Na Europa, a tendência é similar. A Distance, uma loja de artigos para corrida com sede em Paris, transformou a experiência de compra tradicional ao focar no marketing experiencial e na construção de uma comunidade sólida de corredores. Além de vender marcas exclusivas, a Distance organiza eventos e projetos de caridade internacionais, criando um espaço onde os clientes podem se conectar e compartilhar suas paixões.
Outra iniciativa notável é a da John Reed Fitness, uma cadeia internacional de academias que combina arte, música e fitness para criar uma experiência única. Cada unidade apresenta um design distinto, com obras de arte locais e DJs ao vivo, transformando o que seria um local para exercícios em um verdadeiro hub cultural e comunitário.
Esses exemplos demonstram como marcas nos Estados Unidos e na Europa estão integrando comunidade e comércio de maneira orgânica, oferecendo espaços onde as pessoas podem se reunir, socializar e, simultaneamente, se engajar com a marca de forma autêntica.
Se a lógica do terceiro lugar e do marketing de comunidade já é uma realidade consolidada nos mercados mais avançados, no Brasil a história ainda é um pouco mais complexa.
O varejo e os serviços locais, historicamente focados em preço e acessibilidade, enfrentam desafios estruturais que dificultam a adoção plena desse modelo. O consumo aqui ainda está fortemente ligado à busca pelo melhor custo-benefício. Isso explica a dificuldade de construir experiências em que a compra seja apenas uma consequência da imersão no universo da marca.
A explosão do fitness e o crescimento de comunidades ligadas ao bem-estar, assim como o fortalecimento de iniciativas culturais e gastronômicas dentro do varejo, são indícios de que o conceito de comunidade antes do comércio pode ganhar espaço mesmo em um mercado tão orientado por preço como o nosso.
O futuro do marketing não está apenas em vender, mas em oferecer pertencimento.
As marcas que entenderem que seu papel vai além do produto e conseguirem criar um abraço simbólico em seus consumidores, mimetizando a máxima de Melinda Davis — “brands as healers” —, terão uma vantagem competitiva inestimável.
Em um mundo hiperconectado e saturado de ofertas, a relação emocional e o envolvimento comunitário podem ser o diferencial definitivo para capturar e manter a atenção dos consumidores.
A pergunta que as marcas devem se fazer não é “como vender mais?”, mas sim “como me tornar um espaço significativo na vida do meu consumidor?”. As que conseguirem responder a essa questão estarão um passo à frente na construção do futuro do consumo.