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Nasce um ecossistema para inovar em saúde

Conheça a parceria que instituições de pesquisa brasileiras estão formando com o Medical Valley alemão e Harvard para fazer inovação aberta

Lizandra Magon de Almeida
11 de julho de 2024
Nasce um ecossistema para inovar em saúde
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Lentamente, a maca se movimenta para dentro de um túnel iluminado. Quando a pessoa está na posição certa, as luzes se apagam e o equipamento começa a funcionar, emitindo um ruído metálico. Depois de um tempo, silêncio. Mediu-se a rotação dos elétrons das moléculas de água do corpo, diferenciaram-se os tecidos e agora os algoritmos constroem imagens em duas e três dimensões dessa pessoa por dentro. 

Esse relato que remete à ficção científica é o modo como funciona hoje um aparelho de ressonância magnética, criando imagens ao comparar os magnetismos gerados em cada órgão pelo spin das moléculas de hidrogênio da água. O futuro de fato está chegando com os equipamentos mais modernos – usados sobretudo em pesquisas acadêmicas –, que conseguem “enxergar” o nível molecular dos órgãos, podendo substituir os exames feitos em microscópio, e que possibilitam o diagnóstico precoce de doenças e novas perspectivas de tratamento – com apoio da inteligência artificial e do big data. 

Para países como o Brasil, esse tipo de hardware, a ressonância magnética 7 Tesla, está fazendo mais: ele cria a oportunidade de organizações brasileiras ingressarem em um ecossistema de inovação em healthcare que está na vanguarda mundial – o que é crucial, uma vez que o segmento de healthcare por si já é a vanguarda mundial da inovação. Com um workshop de pesquisadores realizado em março, o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo iniciou oficialmente a parceria com o Medical Valley, um “Vale do Silício” alemão especializado em saúde, que já conta com um posto avançado de pesquisas de saúde e tecnologia em Porto Alegre (RS). Esse programa de inovação aberta, que inclui o hospital-escola ligado a Harvard Medical School, é capitaneado pela fabricante da ressonância, a Siemens Healthnieers.

“Bem-estar, prevenção e predição são os pilares da tecnologia em saúde atualmente. Cada vez mais, o setor tem de trabalhar na gestão de saúde e não de doença”, afirma Armando C. Lopes Jr., CEO da Siemens Healthineers, divisão da empresa voltada a soluções médicas. Além de produzir equipamentos de diagnóstico por imagem e infraestrutura de processamento, a divisão conta com uma área de inovação isolada da atividade comercial, que promove parcerias com instituições de pesquisa mundo afora. 

ERA UMA VEZ UM HUB

O Medical Valley é um hub de 500 instituições, entre universidades (como a Friedrich-Alexander Universität), empresas de tecnologia (como a Siemens), centros de pesquisa e hospitais no centro-sul da Alemanha, e totalmente dedicado à tecnologia voltada para a saúde. Em um raio de 100 quilômetros, vivem 3,5 milhões de habitantes, centenas dos quais são cabeças pensando soluções tecnológicas para antecipar o diagnóstico e assim reduzir cada vez mais a mortalidade por doenças curáveis. Nuremberg é a maior cidade da região, conhecida historicamente por ter sediado o julgamento dos nazistas após a Segunda Guerra Mundial. 

O hub, reconhecido pelo governo alemão como principal cluster tecnológico voltado para a saúde, foi criado em 2003, como conta o diretor-executivo do Medical Valley, Tobias Zobel. Tanto em termos de capital como em gestão, ele tem caráter público-privado. Não tem fins lucrativos e não participa acionariamente dos projetos ali desenvolvidos, nem das startups incubadas – há duas incubadoras. “Nosso trabalho é oferecer a infraestrutura e promover as conexões, inclusive com instituições internacionais, além de contar com comissões técnicas neutras, com participação mista”, explica Zobel. Até 2014, o Medical Valley se limitava à Alemanha. Decidiu então iniciar um processo de internacionalização. 

A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA

Em busca de um volume de dados que não encontraria em casa nem em um vizinho europeu, o Medical Valley escolheu três países como alvo das parcerias iniciais: Estados Unidos, China e Brasil.

“Pelo Brasil, nós nos decidimos antes do início da crise local. Como vieram as dificuldades econômicas, não tivemos ainda o resultado que imaginávamos. Os investimentos esperados – tanto do lado brasileiro, como das empresas alemãs – não se concretizaram. Mas conseguimos estabelecer uma boa estrutura e as parcerias e discussões estão aumentando”, afirma o executivo alemão. 

O que o Brasil tem a oferecer para esse ecossistema internacional? Os dados, de fato, são um tesouro. A quantidade de big data que o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP gera, por exemplo, faz inveja à maioria dos países: diariamente, o HC atende mais de 35 mil pacientes em todas as áreas de especialidades da medicina. E o Instituto de Radiologia (InRad) do HC possui um dos 60 equipamentos de 7 Tesla do mundo, sendo o único na América Latina. 

Porém, na comparação com os Estados Unidos e a China, nossos dados não são o único argumento. Também as facilidades oferecidas pela legislação brasileira atraíram a atenção dos alemães. Segundo Manuel Coelho, head de inovação para a América Latina da divisão Healthineers, a formação do ecos­sistema se beneficia do fato de as leis locais para pesquisas com equipamentos experimentais ser mais permissiva do que a dos países europeus e dos Estados Unidos. Mesmo que o aparelho ainda não tenha sido aprovado para comercialização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ele pode receber autorização para ser usado em pesquisas acadêmicas com a indicação de comissões de ética das instituições e tem um trâmite mais fácil pela Anvisa.

Sabe-se que a mesma facilidade não ocorre, porém, com os estudos clínicos de medicamentos. Enquanto na maioria dos países desenvolvidos o estudo dos efeitos de remédios em humanos é mais simples depois que todas as etapas anteriores laboratoriais foram realizadas, no Brasil a aprovação de um estudo clínico muitas vezes chega a comprometer a continuidade da pesquisa. 

A base do Medical Valley no Brasil foi montada primeiro em Porto Alegre, onde também há um polo importante de pesquisa em saúde e tecnologia, que inclui os hospitais Moinhos de Vento e Mãe de Deus e universidades como a pública Federal do Rio Grande do Sul e a privada Unisinos, em São Leopoldo. Só depois, a colaboração se ampliou para a Faculdade de Medicina da USP e ao hospital Sírio-Libanês em São Paulo, além de instituições em Londrina (PR) e no Rio de Janeiro (RJ).

Na relação com o HC, o workshop colaborativo de estreia foi batizado “digi-NERAN” e sediado pelo InRad, reunindo os pesquisadores da casa com 12 especialistas alemães da Friedrich-Alexander Universität, presencialmente, e com pesquisadores do Brigham and Women’s Hospital, hospital-escola ligado a Harvard Medical School, por teleconferência. 

Durante três dias, médicos, físicos e engenheiros da área de diagnóstico por imagem do InRad apresentaram a suas contrapartes as linhas de pesquisa desenvolvidas por aqui, em discussões em grupo e pitches. Assim, estabeleceram-se as sinergias para as três equipes desenvolverem juntas estudos que utilizem as imagens e os dados da ressonância magnética de 7 Tesla existentes em São Paulo para inovar.

DESAFIOS DE UM ECOSSISTEMA

O mundo dos ecossistemas de inovação em saúde, especialmente dos que unem o público e o privado, é farto em desafios e este não foge à regra. 

O primeiro desafio são as diferenças de compliance entre instituições e países. Por exemplo, os pesquisadores de Harvard não participaram presencialmente do workshop realizado em São Paulo por uma questão de compliance: aquela universidade não permite que aceitem o apoio financeiro de empresas privadas para deslocamentos. Os pesquisadores alemães já puderam aceitar o apoio da Siemens para a viagem.

Um desafio cultural também está em curso. “Um dos nossos maiores desafios é desenvolver aqui a mentalidade de colaboração para a inovação”, admite Zobel. Mas o alemão celebra que eventos como o do InRad já estejam permitindo uma aproximação maior entre empresas e centros de pesquisa no Brasil. 

O desafio de governança, sempre temido em programas de inovação aberta, principalmente transfronteiras, parece bem equacionado. Os grupos têm moderadores e a comissão organizadora do evento – formada por ele, Zobel, Claudia Costa Leite (do InRad) e Srini Pillay (de Harvard) – vai se reunir a cada dois meses com eles para saber dos trabalhos. 

Já o desafio de estabelecer objetivos foi superado. Segundo Costa Leite, que é professora associada da Faculdade de Medicina da USP e chefe de ensino e pesquisa do InRad, foram definidos os seguintes focos iniciais: 

• inteligência artificial aplicada ao diagnóstico do câncer de próstata por meio das imagens de ressonância magnética; 

• análise da doença de Parkinson procurando definir biomarcadores de imagem para a doença, cujo diagnóstico hoje é totalmente clínico; 

• automação em anestesia; 

• controle da dor com monitoramento;

• troca de protocolos entre físicos e engenheiros das várias instituições.

BIG DATA após a morte

Os mortos guardam informações que podem ajudar os vivos a recuperarem a saúde. E o equipamento de ressonância magnética Magnetom, de 7 Tesla, está conseguindo extraí-las no projeto de pesquisa Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia(Pisa). O Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), mantido pela USP, realiza cerca de 14 mil autópsias por ano, gerando dados que auxiliam a elaboração de políticas públicas de saúde. 

A intenção do projeto Pisa, que funciona numa construção subterrânea de 500 m2, ao lado do SVOC, é identificar a causa da morte de forma menos invasiva do que uma autópsia convencional e facilitar a produção de dados com o equipamento. Cruzados com os exames convencionais e os dados de prontuário do paciente, esses dados formam o big data que será intercambiado com as instituições internacionais no projeto mediado pela Siemens. Um dos estudos possíveis é o dos efeitos da quimioterapia sobre os pacientes com câncer, para reduzir sua toxicidade.

A expectativa é que as pesquisas sigam em ritmo acelerado. “A colaboração é cada vez mais importante neste mundo em transformação. Felizmente as pessoas vivem cada vez mais, mas o sistema está cada vez mais pressionado por custos. Precisamos mudar o sistema para nos adequar a essa realidade, e muitas respostas surgem a quatro mãos com clientes”, afirma o CEO da Siemens Healthineers, Lopes Jr.

E o que a Siemens ganha ao costurar essas parcerias, já que a interferência comercial está descartada? Claro, ela retribui ao Medical Valley 

a cortesia de lhe facilitar a pesquisa e o desen­volvimento com equipamentos. Mas, como diz Coelho, a melhoria das máquinas, o impacto positivo na marca e o relacionamento mais próximo com equipes técnicas são ganhos palpáveis. “Com base nas pesquisas, poderemos nos responsabilizar mais por resultados e até mudar nosso modelo de negócio: em vez de vendermos máquinas, seremos remunerados por exames.”

Lizandra Magon de Almeida
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