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Nem só de estratégias objetivas vive hoje o varejo

A crescente subjetividade da relação dos usuários com as marcas de varejo requer atitudes e posicionamentos contemporâneos. A Nudi Jeans e a Houdini, que abraçaram a economia circular e o second engine growth, são exemplos do varejo internacional que exemplificam o novo jeito de se fazer negócios e dialogar com o público-alvo

Ulisses Zamboni
12 de julho de 2024
Nem só de estratégias objetivas vive hoje o varejo
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Nomeie aqui quantas estratégias objetivas de negócio você quiser – second growth engine (do inglês, segundo motor de crescimento), CRM (gestão de relacionamento com os clientes, na sigla em inglês), programas de fidelidade, etc. Se não forem acompanhadas de atitudes contemporâneas de marca – ou pelo que chamo de “”mudanças subjetivas”” do negócio –, o destino de sucesso pode estar comprometido.

O negócio do varejo hoje constitui uma malha de alta complexidade de gestão, não só pelas dezenas de engrenagens operacionais concretas que o negócio demanda como também pelo trato subjetivo com o usuário.

Minha experiência com alguns gestores mais “”da velha guarda”” do varejo mostra que este está longe de ser um assunto confortável. Entrar na subjetividade das relações humanas nunca esteve no escopo dos negócios de varejo e, por isso, o assunto se coloca como um fantasma a ser capturado e domesticado.

Mas a verdade é que as relações mais subjetivas entre marcas e usuários não são fantasmagóricas. Ao contrário, estamos falando de um assunto (uma especialização) em que o Brasil nada de braçada. A área de comunicação ou da gestão de marcas é tarefa da cadeira de comunicação de marketing, que, há dezenas de anos, os profissionais brasileiros dominam – haja vista a galeria de prêmios internacionais, que reunimos pelos cases e projetos executados.

A diferença é que, agora, essa não é mais uma oferta marginal para um negócio de varejo. E, sim, uma oferta central, que caminha lado a lado com as entregas mais tangíveis.

No NRF Retail Big Show National Retail de 2024, maior evento mundial do setor e sobre o qual escrevi em um recente artigo desta coluna, dois assuntos emergiram como fatores de sucesso no recorte do varejo. Obviamente, um deles é a IA, com todos osseus usos e desdobramentos exponenciais ao longo da cadeia de valor. E o outro, o posicionamento de marketing (marca e negócio), que concentra em si não só as relações comerciais entre usuário e marca, mas também – e principalmente – as relações contemporâneas mais sutis e subjetivas entre as partes.

No momento atual, posicionar-se enquanto marca não é mais consolidar os valores da organização num documento de estratégia, com regras de conduta, ou elencar sua missão e visão, tampouco entregar um slide com palavras bonitas e modernas para, depois, os gestores dos negócios colocarem em suas gavetas.

Marketing centrado no cliente

Convencionou-se chamar o deslocamento de importância de uma empresa do produto para seu usuário de “”customer centricity marketing”” (marketing centrado no cliente, em tradução livre), mas não importa o nome. Ouvir as demandas do usuário e reagir positiva e proativamente a elas pode definir os destinos de curto e médio prazos dos negócios. Posicionamento de marca é, portanto, um ato de consultoria contínuo dos gestores que, se bem gerido, pavimenta a estrada para o crescimento sustentável.

Já trouxemos aqui exemplos de empresas totalmente voltadas às demandas dos consumidores no artigo “”NRF 2024: as 5 abordagens contemporâneas do varejo””. Navegar no intrincado cenário do varejo contemporâneo requer um equilíbrio delicado entre o aproveitamento de novas tecnologias com a gestão de relações profundas e significativas com os clientes. Existenciais até.

O papel dos gestores de varejo evolui de meros guardiões de transações comerciais para uma espécie de analistas de relacionamentos e de interações entre marcas e usuários. À medida que avançamos, a capacidade de adaptação, empatia e inovação das marcas não será apenas vantajosa, mas essencial.

Aqueles que tiverem sucesso na gestão de integração eficaz do tangível com o intangível no varejo, não só se beneficiarão da sustentabilidade nos negócios como também prosperarão no dinâmico panorama varejista do futuro.

Expectativa de uma experiência subjetiva

Passando os olhos pelos negócios nacionais e internacionais de varejo, não é um exagero dizer que o sucesso do varejo está amplamente lastreado nas ações estratégicas de marketing e comunicação.

A vilificação de ambos no passado do varejo, numa ideia de que se o produto fosse ruim ele precisava de marketing, deram espaço para seu completo oposto. Se a marca não dialogar, existir, atuar e se posicionar – tal qual uma pessoa –, está fora do jogo.

O posicionamento estratégico de marca, ou melhor, quem ela é, seus valores, o que pensa, suas narrativas e diálogos, seu tom de voz e seus desejos fazem parte da entrega esperada na hora da compra. O elemento psicológico, de projeção imagética, nunca foi tão desejado.

Os saudosistas podem questionar a validade dessa ferramenta como oferta de valor para uma marca de varejo, mas a realidade é inexorável. A expectativa de uma experiência subjetiva entre consumidor e marca se faz presente e, muitas vezes, define conversão.

Converge para essa finalidade, a adoção – em larga escala – de tecnologias transformadoras nos últimos cinco anos no varejo. O que possibilitou, por exemplo, a hiperpersonalização das ofertas – hoje, uma realidade que já é absoluta.

Outra realidade inegável: varejistas nunca estiveram tão à mercê de aparatos tecnológicos para efetivar suas vendas. A transformação digital bate à porta, impulsionada pela necessidade de se comprar softwares e hardwares que seriam inimagináveis há alguns anos.

Da inteligência artificial à realidade virtual, o varejo se vê obrigado a adotar estratégias que abracem a experiência e o total envolvimento do usuário. A tecnologia é hoje uma espécie de rede de pesca que gera leads e recolhe usuários.

Novos motores de crescimento

A transformação do varejo é tal que impacta a própria estrutura dos negócios. A cartilha do passado, ou melhor, o que o trouxe até aqui pode não levá-lo adiante. A dinâmica é tão intensa que pressupõe um olhar afiado e atento dos gestores à necessidade de construir até mesmo um outro (novo) negócio dentro do atual. Ou, quem sabe, modificar o modelo de negócio para garantir a sustentabilidade e a retenção de clientes.

O conceito de ampliar as ofertas do varejo a partir da entrega de serviços e até de produtos marginais está inscrito na teoria “”Second growth engine””, que constitui nos dias atuais uma abordagem vital para empresas de varejo que vislumbram o longo prazo como meta, especialmente em mercados que mudam o tempo todo.

Por que não alugar produtos ou oferecer o conserto de peças da sua marca? E a entrega, tendo em conta que a logística se tornou uma oferta tão desejada atualmente? Outra possibilidade a se considerar é a oferta de vantagens embutidas nos programas de lealdade e hiperpersonalização. Esses “”complementos”” estratégicos para o negócio principal estão se tornando, cada vez mais rápido, parte da própria oferta do negócio e sendo demandados pelos próprios usuários.

Repensar todos esses pontos é aplicar, com mestria, os conceitos do varejo moderno. Escrever sobre pedra os mandamentos do negócio sem a fluidez que a sociedade demanda é, na verdade, um passo para que essa “”pedra”” vire a lápide do varejo. Confira, a seguir, quatro casos do varejo internacional que exemplificam perfeitamente o novo jeitão de se fazer negócios nos dias de hoje.

Nudie Jeans – Esta rede sueca de lojas de venda de jeans premium, presente em mais de 50 países, resolveu abraçar o modelo da economia circular. Conforme escrito em suas paredes, as palavras “”jogar fora”” e “”jeans”” não combinam.Então, se jeans dura uma vida inteira e acompanha a história do dono, por que não consertá-lo ou ajustá-lo para o corpo do dono ao longo do tempo? A rede, que reforma mais de 40 mil peças por ano, contrata artesãos e costureiros que estão fazendo sua formação acadêmica em escolas de moda.

– The Real Real – A loja online, que tem pop up stores espalhadas pelas capitais mais importantes dos Estados Unidos, também está totalmente inserida na economia circular. Imagine um brechó de roupas de alto luxo, com um modelo de certificação de peças originais das grandes grifes para que sejam catalogadas e revendidas. Na prática, é uma roupa certificada como original pela equipe de curadoria da loja e ainda com storytelling. Por exemplo: um tênis Nike exclusivo de colecionador, certificado pela The Real Real, que se torna objeto de decoração na casa do comprador. Ou um casaco de lã da Gucci, também certificado, que traz na etiqueta de venda a história de quando e por quem foi usado. A The Real Real iniciou seu modelo inovador de varejo circular em 2011 e, 12 anos depois, já fatura mais de US$1,5 bilhão só nos Estados Unidos.

– Houdini – A marca, também sueca, vende uma coleção de moda de luxo totalmente produzida com materiais recicláveis ou reutilizados. Não é apenas a produção consciente que merece destaque, mas a arquitetura revolucionária de seu modelo de negócio. A Houdini oferece quatro modalidades distintas de interação com seus produtos: a compra de novos itens, a assinatura da marca, o aluguel e a aquisição de peças usadas. Esse modelo inovador promove uma relação dinâmica entre a marca e seus consumidores, onde que estes assumem um papel ativo não só como compradores, mas também como fornecedores, vendendo de volta itens à loja.Essa abordagem bidirecional não apenas fomenta uma economia circular, mas também engaja os consumidores como participantes integrais no modelo de negócios da empresa. A consultoria Boston Consulting Group (BCG), em seu estudo sobre os países nórdicos, reconhece o modelo de ofertas circulares da Houdini como um benchmark estratégico para o setor.

Tomo – Inaugurada na Holanda em março de 2023, a Tomo é outro exemplo de negócio guardianship. Esse conceito, elaborado pela consultoria inglesa GDR, aborda os novos paradigmas de negócios contemporâneos — circulares, baseados no reuso e socialmente responsáveis — que estão se estabelecendo como fundamentais para o futuro dos negócios. A Tomo é a primeira loja de departamento que vende só produtos da economia circular ou de marcas que têm um propósito claro de ESG. Além disso, ela encoraja os consumidores a revender, alugar, consertar ou reestilizar roupas dentro da própria loja. Já quem compra os produtos novos tem direito a 5 reparos grátis. Sem dúvida, um novo conceito, que nos leva a repensar as relações e as interações entre marca e usuário e que sinaliza muito bem o caminho do futuro do varejo.

Posicionar uma marca é tomar consciência de que a construção da imagem da marca, emulada pelas ações de marketing, é um ato fluido e, muitas vezes, subjetivo. Demanda que os gestores tenham conhecimento inequívoco dos valores centrais da marca e das questões relevantes da sociedade. E aceitar que tudo isso possa ser criticado e revisitado de tempos em tempos, afinal a marca não é imune à velocidade com que a sociedade evolui.”,”A crescente subjetividade da relação dos usuários com as marcas de varejo requer atitudes e posicionamentos contemporâneos. A Nudi Jeans e a Houdini, que abraçaram a economia circular e o second engine growth, são exemplos do varejo internacional que exemplificam o novo jeito de se fazer negócios e dialogar com o público-alvo”

Ulisses Zamboni
Com mais de 40 anos de experiência na área de comunicação, é presidente e sócio da agência Santa Clara, membro do board e do comitê de etica e integridade do Capitalismo Consciente e membro do conselho editorial da MIT Sloan Review Brasil. Também clinica como psicanalista.

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