A pandemia de covid-19 provocou uma queda expressiva no número de transplantes realizados no Brasil e em outros países. No entanto, um conjunto de tecnologias está modificando de maneira positiva este cenário
“Os transplantes de órgãos sólidos são considerados uma inovação dentro da medicina moderna. O primeiro caso bem-sucedido se fez em 1954, quando uma pessoa em vida doou um dos seus órgãos (neste caso, o rim) para salvar a vida do irmão gêmeo, em Boston (EUA). Este foi um grande passo para que nas décadas subsequentes conseguíssemos evoluir e pacientes com lesões graves e irreversíveis em órgãos considerados vitais (rim, fígado, coração, pulmão e pâncreas) pudessem receber novos órgãos e ter melhor qualidade de vida e maior sobrevida.
Atualmente, existem duas fontes de órgãos para transplantes, provenientes de doadores vivos ou falecidos. Apesar do avanço da tecnologia e de procedimentos cirúrgicos, a demanda ainda é superior à oferta, fazendo com que centenas de milhares de pessoas ainda aguardem numa fila pela oportunidade de continuar vivendo.
A pandemia de Covid-19 foi o maior desafio que a atividade de transplante sofreu do ponto de vista sanitário em todo o mundo. Desde o estabelecimento dos transplantes como terapia de escolha bem definida, a pandemia atingiu fortemente a atividade de transplantes no planeta. Têm sido descritas quedas significativas do número de transplantes no Brasil e em diversos países no mundo; nenhuma região tem passado incólume no contexto atual.
A era da tecnologia e da inovação está aí. Vivemos no ciclo da chamada 4ª revolução industrial. Será a partir dela que conseguiremos reduzir o impacto da pandemia na atividade de transplantes e ainda utilizá-la para o renascimento do setor, após passado este grande desafio pandêmico.
Assim, destacamos aqui algumas das principais inovações voltadas ao transplante de órgãos que devem ser aceleradas pela pandemia:
Como pacientes transplantados possuem maior risco de mortalidade pelo vírus Sars-CoV-2 se comparados com a população geral, evitar que estes sejam expostos ao risco de contaminação é fundamental. Por serem pacientes portadores de doenças crônicas e com necessidade de controle ambulatorial frequente, a telemedicina tem sido de grande valia na maioria dos centros de transplantes em todo o mundo. Assim, temos evitado que pacientes fiquem em salas de espera de ambientes hospitalares e ambulatoriais, reduzindo a exposição à contaminação pelo coronavírus.
O Ministério da Saúde do Brasil editou uma portaria permitindo que pacientes, inclusive os transplantados de órgãos sólidos, pudessem ser acompanhados por telemedicina durante o período da pandemia. A estratégia, embora interessante, foi de difícil implementação no Brasil, tendo em vista que o país não utilizava rotineiramente a telemedicina na prática clínica. Neste sentido, muito rapidamente, centros transplantadores conectarem seus pacientes por telefone, chamadas de vídeo e mensagens de WhatsApp, entre outras ferramentas.
Sem treinamento adequado, profissionais da saúde e pacientes tiveram que se organizar para evitar o risco da transição do atendimento presencial para o virtual. Não podemos afirmar que aprendemos a fazer a telemedicina da forma que deve ser feita. Podemos apenas dizer que foi feita a duras penas.
Atualmente, grande parte dos centros de transplante no Brasil incorporaram a telemedicina como ferramenta de uso diário. E está sendo discutido agora um tema muito relevante: a manutenção da liberação do uso da ferramenta após a pandemia, principalmente para um país de dimensões continentais como o Brasil, com grandes vazios assistenciais na área de transplante que poderiam ter as distâncias encurtadas com atendimentos virtuais.
O monitoramento de pacientes crônicos por meio de ferramentas eletrônicas trouxe resultados importantes em desfechos clínicos e econômicos. Existe hoje a possibilidade de pacientes poderem ser monitorados mesmo após a alta hospitalar, por meio de ferramentas como aplicativos de celulares e dispositivos que se conectam por bluetooth diretamente com os centros de saúde, alertando para alterações que demandam uma ação por parte dos profissionais da área, evitando assim desfechos desfavoráveis.
Com a pandemia, ter os dados do paciente em tempo real, mesmo que com este longe do centro de transplante, ajuda a evitar que complicações, como infecções, agravem-se antes do paciente comparecer ao serviço de saúde. O monitoramento de sinais vitais como temperatura, pressão arterial, frequência cardíaca, saturação e glicemia, além de sintomas como dor, falta de ar, perda do apetite, náuseas e vômitos, diarreia e edema podem alertar os profissionais de saúde a tomar medidas anteriores ao agravamento da doença, evitando assim reinternações e desfechos desfavoráveis.
Um trabalho realizado (página 338 do material) na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora com monitoramento remoto de transplantados renais demonstrou redução do tempo de internação dos pacientes e na taxa de reinternação, com consequente redução de custo na jornada de tratamento. A taxa de engajamento do aplicativo foi de 80% em seis meses de utilização e os pacientes arrolados no estudo foram exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), demonstrando a elevada capilaridade da ferramenta numa parcela de nível econômico mais limitado.
Ao observar os avanços da ciência nos últimos anos, é possível encontrar fortes indícios de que a próxima grande fronteira da epidemiologia será a análise de grandes bancos de dados (big data). O crescimento do número de estudos multicêntricos e a pressão pela transparência dos gastos públicos têm aumentado a quantidade de dados disponíveis e criado uma demanda por novas formas de análise de dados complexos e desestruturados – um conjunto de técnicas conhecido como mineração de dados (data mining).
No Brasil, existem três áreas auspiciosas para o uso de big data em saúde: medicina de precisão, prontuários eletrônicos do paciente e internet das coisas. Particularmente na área de transplantes, grandes bases de dados são de suma importância, tendo em vista que as informações estão disponíveis de forma única dentro do ambiente dos centros transplantadores. Tal fato oferece força suficiente para analisar dados e consequentemente utilizá-los para oferecer informações aos pacientes, podendo mudar a evolução clínica dos mesmos. Nesse contexto, vale lembrar quer pacientes que procuram serviços de transplante possuem sempre um ou mais antecedentes de saúde, fazendo com que um número extenso de dados possa ser analisado.
Desde o início da 1ª revolução industrial, sempre se colocou a possibilidade de as máquinas chegarem um dia a ter iniciativa e decisões próprias. Na área da análise de dados, isso significa a elaboração de algoritmos que respondam e se adaptem automaticamente aos dados sem a necessidade de intervenção humana contínua.
Por meio das técnicas de aprendizado de máquina (machine learning), computadores são programados para aprender com experiências passadas. Para isso, empregam um princípio de inferência denominado como indução. Dessa forma, algoritmos computacionais aprendem a induzir uma função ou hipótese capaz de resolver um problema a partir de dados que representam observações do problema a ser resolvido.
As tarefas de computação cognitiva podem ser divididas em duas categorias: preditivas e descritivas. Para as preditivas, a meta é encontrar uma função a partir dos dados de treinamento que possa ser utilizada para prever um rótulo ou valor que caracterize um novo exemplo, com base nos valores de seus atributos de entrada. Os algoritmos utilizados nessa tarefa seguem o paradigma de aprendizado supervisionado. Em tarefas descritivas, a meta consiste na exploração ou descrição de um conjunto de dados. Os algoritmos utilizados nessas tarefas não fazem uso do atributo de saída (variável de interesse). Tais algoritmos seguem o paradigma do aprendizado que não precisa ser supervisionado.
Na área de aprendizado de máquina, estudos recentes têm ajudado os médicos e pacientes a tomar decisões importantes, como a de aceitar determinado órgão para transplante em um momento preciso. Utilizam-se ferramentas com elevado índice de precisão para tomar a conduta mais correta no momento de aceitar um órgão. Contudo, muito ainda está por vir na área dos transplantes em relação às soluções de computação cognitiva.
Por fim, enquanto atravessamos este período nebuloso de pandemia, sem sabermos ao certo quando tudo terá passado, buscamos ao máximo aprender com novas tecnologias e utilizar soluções de inovação. Todavia, qual o principal objetivo contido nesse processo de aprendizado voltado à inovação? Conseguir proporcionar aos pacientes transplantados e àqueles que aguardam por um órgão que possam viver com a mais segurança, melhor qualidade de vida e mais esperança. Tempos melhores certamente virão.
Aproveito para fazer um grande agradecimento ao amigo e colega Dr. Gustavo Fernandes Ferreira, coautor deste artigo, médico nefrologista e atual vice-presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).
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