Eventos como a escolha da Academia Sueca na categoria Física em 2024, um oportunismo político em prol da inteligência artificial, passa uma mensagem perigosa: “tudo é fábula, tudo é narrativa, tudo é nada”
Foi lá pelos idos de 1970, acho eu, que escutei pela primeira vez a música Blowing in the Wind, composta por Bob Dylan. Lembro que o caráter rústico da peça e a voz anasalada de Dylan acolhiam a verdade daquela poesia. Não, não se tratava do que a letra dizia. Eu não entendia inglês. É que havia uma autenticidade imperturbável, que me inspirava e reconciliava.
Quando a Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2016 para Dylan, entretanto, meu sentimento não se reencontrou com aquele que senti no passado. Nesta época, meu engajamento com a literatura era muito forte. Antes, em 2015, eu havia publicado uma das obras ficcionais mais importantes para mim. Inspirado em escritores monumentais, eu entendia do que se tratava a categoria literária, do que se tratava a poesia. Por mais que as letras do cantor americano fossem sensacionais, aquilo era música, não literatura.
Bob Dylan escreveu canções maravilhosas, mas nem de perto alcançavam o estatuto de poesia. Talvez o nosso Chico Buarque estivesse mais perto desta classificação. Como compositor mundial, os recursos metafóricos e o subtexto de Chico sempre foram de um quilate valioso. Mas qualquer comparação entre os dois alcançaria alguma injustiça, senão alguma polêmica. E particularmente também julgaria inapropriado premiar o nosso Chico com o Nobel de Literatura.
Como escreveu o poeta e editor americano Matthew Zapruder: “É absurdo afirmar que as letras de músicas têm inerentemente menos mérito literário do que a poesia, ou são mais fáceis de criar”. Mas isso não significa que devam residir na mesma categoria. A poesia se encorpa no contexto do silêncio, enquanto as letras dependem da música, do ruído de fundo, como explica o próprio Zapruder. E é salutar que cada uma delas esteja colocada em uma categoria distinta.
A distinção das categorias serve ao entendimento de que algo é o que é porque não é outra coisa. Simples assim.
A inteligência artificial ganhou o Nobel de Física em 2024, uma vez que o prêmio foi conferido a dois cientistas da IA, Geoffrey Hinton e John Hopfield. E me deixou desconfiado.
Claro, é interessante que se atribua um Nobel a dois cientistas da inteligência artificial. Mas… na categoria da Física? Porque, vejam, Bob Dylan também poderia ter conquistado o Nobel de Física. Como “ensina” o ChatGPT, versão Strawberry:
A física quântica introduz o conceito de incerteza e mudança constante, especialmente no princípio da incerteza de Heisenberg, que afirma que é impossível conhecer simultaneamente a posição e a velocidade exata de uma partícula. Isso ecoa em muitas canções de Bob Dylan, como “The Times They Are A-Changin'”, que reflete a natureza imprevisível e mutável da vida. Assim como na física quântica, a vida é cheia de incertezas e possibilidades, e Dylan muitas vezes aborda essa instabilidade em suas canções, convidando-nos a aceitar o fluxo e a mudança.
Olhando para IA e a física, bem como Dylan e a física, vemos um alargamento das categorias para que nelas caibam mais do que elas representam, que bem se presta a justificar a expressão “mundo líquido” de Zygmunt Bauman. O que antes, no modo de pensar analítico da modernidade, prezava a fundamentação estreita de um conceito ou de uma disciplina, agora encontra na pós-modernidade esse niilismo hermenêutico que submete tudo à interpretação subjetiva (e muitas vezes oportunistas). Preza-se, desse modo, aquela reinauguração do sentido – com a bandeira da utilidade, com o caráter providencial (que providencia ou bem serve a certo objetivo).
Convém reparar que a inteligência artificial está convenientemente servindo ao propósito de liquidificar as categorias, colocando em xeque, na sua fundação mais essencial, os conceitos de inteligência e raciocínio.
Não canso de reafirmar o quanto me entusiasmo com as capacidades da IA; sou um ativo conselheiro de empresas para encontrar os verdadeiros benefícios da inteligência artificial. Mas temo que esse Nobel de 2024 tenha sido entregue a Hinton e Hopfield cm cunho político, uma agenda de interesses maior do que o interesse efetivamente necessário para se sonhar com um Nobel.
Além disso, Turing, Simon, Newell e Minsky fizeram muito mais pela IA do que Hinton e Hopfield, e nenhum deles ganhou um Nobel.
Ora vivemos em um mundo de fábulas e estamos ensinando nossos filhos que tudo é fábula, tudo é narrativa, tudo é nada. Como elabora o ChatGPT:
A teoria das cordas sugere que tudo no universo pode ser visto como resultado de vibrações de pequenas cordas subatômicas. Embora a teoria esteja em um nível puramente físico, a ideia de interconectividade aparece fortemente na obra de Dylan, que frequentemente sugere que eventos e pessoas estão interligados de maneiras que não podemos entender completamente. Canções como “It’s All Over Now, Baby Blue” transmitem uma sensação de que tudo está conectado em uma rede maior de experiências e destinos.
Quem sabe se o próximo prêmio Nobel de Química não será concedido ao chef espanhol Dabyz Munõz, devido ao seu estilo culinário avant-garde, que frequentemente utiliza técnicas que envolvem reações químicas sofisticadas? Afinal, basta dar corda ao raciocínio do ChatGPT. E ignorar os riscos de falta de bom senso.
Aliás, o bom senso “…is blowing in the wind”.