Entre as várias consequências da covid-19 que sentiremos nos próximos anos, uma é deslocalização – o que levará a um aumento de modelos de negócio D2C, do produtor vendendo direto ao consumidor
“Recife é a minha Paris.”
Cláudio, um amigo de longas datas e várias consultorias, abriu sua fala num debate online com a expressão acima. Sem nenhum ponto de interrogação mesmo. Ele queria resgatar a importância que os lugares têm para ele e para os negócios. Estava fazendo referência à cidade do Recife (PE), que para ele, vindo de Patos (PB), causou tanta admiração e perplexidade. Talvez a mesma perplexidade e admiração que Paris causa a muitos outros… A questão que discutíamos era o pós-corona. Como sairíamos dessa? Qual seriam o risco potencial e as consequências para os negócios de quando a hiper-aceleração do digital parece tornar os lugares irrelevantes? Sairíamos definitivamente de um contexto de serviços nos quais as aglomerações são necessárias para outro de competição digital, sem fronteiras, e amplamente global?
Ouvir Cláudio no começo de maio, mês em que perdemos Ayrton Senna, encheu-me de saudosismo. Há 26 anos ainda não tínhamos internet (ela apareceu um ano depois, em 1995). De lá pra cá, vimos muitas mudanças. Eu, particularmente, percebi várias delas! À época, eu já estava nos 30 anos, tinha maturidade para perceber o mundo girar e quanto a internet seria algo importante para os anos que viriam.
Em pouco tempo, saímos da carta circular para o e-mail, do CD para o iTunes e depois Spotify, da TV para a Netflix. E nada como era naquela época faz falta, ou dá saudades (pelo menos para mim). Imaginem então para quem nunca conheceu como era o mundo antes… Os que ingressam no mercado de trabalho recentemente, ou tornam-se consumidores agora, já haviam saído das ruas. O futebol no asfalto quente foi em parte substituído pelo videogame, a formação de times, socialização e competição, pelos MMOG – massive multiplayer online games (se não souber o que é, peça a alguém com menos de 25 anos para te explicar). Sem falar das consultas à enciclopédias, que morreram com a Wikipedia e o Google.
A covid-19 acelerou esse processo. Agora saímos mesmo da rua (ninguém se arrisca dizer por quanto tempo), mas também dos escritórios e dos shopping centers. Passamos como no virar de uma chave para o Working, Shopping, Studying From Home, pois o ambiente lá fora, o mundo lá fora, agora é certamente mais hostil. Em se perdurando esse isolamento por muito tempo, mesmo que de forma parcial, haverá uma aceleração do desenvolvimento de tecnologias para facilitar nossa conexão. O que hoje para nós é tosco, um acoxambrado, assim como eram vários serviços no começo da internet, serão lugares comuns e talvez adoráveis no futuro. Pense como era um carro há 100 anos, ou mesmo o iPhone no lançamento. A tecnologia sempre avança!
Estar dentro de nossas casas tem suas vantagens. Não corremos o risco da bala perdida, da contaminação, do encontro fortuito que nos causa incômodo. Também não nos sujeitamos às aglomerações, desenhadas tão intencionalmente para rentabilizar o metro quadrado, seja em shoppings ou salas de aula. Sim, o mundo analógico será menos necessário no futuro digital. E não precisamos ter saudades.
O isolamento social não mudou para onde iríamos, apenas nos acelerou para o destino que estávamos construindo. Foi o evento que causou o ponto de inflexão. Aquela força que acelera por 10x a direção para onde caminhamos. O supermercado, a farmácia e vários outros lugares já estavam sendo intermediados/digitalizados pelo Rappi; os restaurantes, pelo Ifood, combinado com o Uber Eats; e a manutenção dos computadores, tão importante hoje, pela FindUp.
Rita G. McGrath, em artigo para a MIT Sloan Management Review, já tinha notado essa classe de negócios. Chamou-os de D2C – _direct to consumer_. São empresas que intermediam a aquisição de produtos e serviços diretamente com o consumidor, onde ele estiver e quando ele quiser, sem possuir os meios ou ativos para a entrega do produto ou serviço. São empresas que põem uma capa digital sobre o analógico e tornam espaço (como local de entrega de serviço) e tempo (horários de funcionamento) irrelevantes. E, ao permitirem uma melhor utilização do estoque de recursos e ativos disponíveis na sociedade, reduzem o nosso ímpeto industrial. Pense nas empresas mais famosas desse tipo, como Uber e AirBnB, será mais fácil refletir sobre essas questões.
Negócios são construídos e operam sobre premissas básicas, infraestruturas tecnológicas e hábitos comportamentais, que não questionamos se estarão por aí amanhã. Mas, quando algumas dessas premissas mudam por uma ordem de grandeza (10 vezes mais), como agora, quando um ponto de inflexão ocorre, o período é de confusão, frustração e muita divergência. E os negócios estabelecidos sempre se basearam em lugares. E nós também! Então, enfrentaremos muitos desafios. A leitura para afrente, e a experiência de quem já passou pelo surgimento da internet, é que o aprendizado rápido e a adaptabilidade abrem muitas novas oportunidades.
Sim, é muito difícil se imaginar isolado por muito tempo! Talvez você não concorde, e certamente eu também não estou certo disso, mas a primeira reação de muitos é sempre a negação. Tenho um filho que nasceu em 1993. Nunca se entendeu por gente num mundo sem internet, nunca queimou a sola do pé no asfalto, mas ao ler este texto imediatamente declarou: “eu não quero viver nesse mundo pós-modernista em que só vivemos nas nossas casas”. E ele é data scientist. Fiquei surpreso com essa declaração, mas senti um tremendo _déjà vu_. Imediatamente veio à minha cabeça um artigo de 1995 de Clifford Stoll, que listou argumentos de negação em relação à internet e à digitalização no início desses movimentos e, para cada ponto, trouxe uma rica descrição do que ambas nos proporcionaram de bom até hoje.”