Apesar da chuva de críticas no mundo todo, e especialmente dos usuários britânicos da marca, a campanha teaser de rebranding da montadora pode ter um “fio de estratégia”
Paira enorme ansiedade no ar. Consumidores de marcas de luxo no mundo e especialmente no mercado inglês têm expressado seu medo (e indignação) de possivelmente perderem mais um ícone tradicional da sociedade (de consumo) inglesa com a mudança de comportamento e de símbolos na mais recente campanha da marca automobilística de luxo Jaguar, “Copy Nothing”. (Não copie nada”, inspirada no fundador sir William Lyons e em sua visão de que a marca deveria ser algo único.)
Após tantas expressões de medo (e indignação), se restasse nos leitores alguma dúvida de que o trabalho de marketing tem o fator emocional como principal vetor de decisão, consideração de marca, conversão em vendas, preferência e engajamento, depois da campanha da Jaguar não resta mais.
Descontentes com a tentativa de ruptura dos valores que moldaram a imagem da Jaguar como símbolo do estilo de vida inglês — muitas vezes associado ao universo estereotipados dos clássicos filmes de James Bond e aos ícones masculinos de poder e dominação do segmento automotivo —, os britânicos mais conservadores e os consumidores globais de marcas de luxo reagiram com desconforto à nova campanha “teaser” da marca.
A proposta, que adota um tom “avant-garde” e mais transgressor, viralizou ao desafiar essas expectativas, gerando controvérsia e polarização. (Confira aqui.)
Não que a quantidade de críticas negativas à campanha de rebranding da marca, que foi ao ar na semana de 18/11, possa ser comparada à da ação promocional de Bud Light, realizada no ano passado com a influenciadora transgênero Dylan Mulvaney e que levou a Ambev a perder por volta de US$ 5 bilhões em valor de mercado.
Porém os signos “woke” estampados – em contraposição ao legado mais nobre e clássico conhecidos da marca –, sem que nenhum carro apareça, provocaram zombaria. A montadora ainda resolveu fazer um giro de 180º no desenho de seu logotipo, representado pela imagem forte da pantera e pela tipografia sóbria e retilínea. Na assinatura do filme da campanha, o animal desaparece e as letras que constroem o nome Jaguar passam a ser minimalistas e arredondadas.
“Campanha de publicidade desastrosa”, “rebranding no mínimo controverso”, “lacônica e
desconexa”, “a marca se esqueceu que vende carros”, “de mau gosto, a campanha só
prejudica a história de uma marca lendária” … Comentários como esses se estendem impiedosamente ao longo do “thread” do X (ex-Twitter), onde o filme teve 38 milhões de visualizações, e também no YouTube que em duas semanas ultrapassou a marca dos 2,8 milhões de visualizações. (Ambos os dados até 02 de dezembro de 2024.) Uma viralização pelo entretenimento, pelo engajamento e também pelas críticas e zombaria.
A comparação imediata feita por consumidores no mesmo período de lançamento da campanha de Jaguar foi com o mais recente filme da Volvo no lançamento do modelo EX90, que apresenta um storytelling com o objetivo claro de reforçar cognitivamente o que a Volvo representa sobre segurança e família.
Será que a situação pode piorar? A resposta é um sonoro “sim”, já que o Rawdon Glover, diretor geral da empresa, saiu em defesa da estratégia da campanha no Reddit, famosa plataforma de mídia social global (embora ainda inexpressiva no Brasil), adjetivando os comentários críticos de “vis e intolerantes”, e sugerindo que “o consumidor está errado”, pecado número um no marketing como conhecemos até agora.
Aparentemente há uma dezena de equívocos nessa estratégia de branding da Jaguar, não há? Ou a síntese suave a respeito feita pelo âncora da GB News, Mark Dolan, não seria a seguinte: “Essa marca excepcional de automóveis, com mais de cem anos de design e excelência na engenharia, viu evaporar seus valores em 30 segundos de um spot sobre diversidade com atores vestidos de Teletubbies”.
Eu consigo destacar pelo menos dois grandes equívocos para o exercício de branding:
1. Mudança arquetípica brusca – Construir valor de marca demora muitos anos. A decisão de chacoalhar os valores da Jaguar, construídos ao longo dos cem anos desta marca, é muito corajosa, ao mesmo tempo que arriscada. E, notoriamente, a campanha começa pelo que é o valor mais concreto para essa marca: seu comportamento nobre e atitude britânica (apesar de pertencer hoje à indiana Tata Motors).
O território arquetípico no qual a Jaguar sempre atuou é o do soberano, com algumas boas pitadas do arquétipo do sedutor. Como uma marca de luxo inglesa, vem há tempos sendo associada à aristocracia britânica e, consequentemente, à elite inglesa, posicionando-se como símbolo de liderança e sucesso. Traz valores de autoridade, confiança e sofisticação (esta última ligada ao legado construído no passado).
A Jaguar vem incorporando elementos do arquétipo do sedutor ao longo dos anos, o que suaviza um pouco a sombra do arquétipo Soberano, de imagem mais dura e pouco flexível. A figura de James Bond é a personificação mais evidente da marca, pois encapsula ambos os arquétipos.
A controvérsia da recente campanha é clara: por que a empresa quer colocar um “pé de elefante” no legado arquetípico consolidado e um dos ativos de marca que a trouxe até aqui?
Sabemos que o branding é uma carta de intenção para o futuro da marca e da organização. No entanto, não é necessário destruir o passado. Ao contrário, usar o passado como alavanca é, no mínimo, natural.
A contrariedade, o desconforto e o conflito com a nova campanha encontram eco exatamente na seara do comportamento da marca. E na escolha de um arquétipo praticamente antagônico ao do soberano, que é o do fora da lei. E, não menos importante, um “fora da lei” que lança mão de símbolos e signos da cultura “woke”. No filme, um homem de cabelos brancos passa um pincel de paredes na câmera em que está escrito “Delete Ordinary” (em livre tradução, delete o comum) e, em outros momentos, faz um chamamento para “break the mold” (em livre tadução, quebrar as formas) por meio de uma imagem que mostra um personagem feminino com um enorme martelo nas mãos.
Seria um salto atitudinal inesperado demais para a Jaguar e, no entanto, tremendamente fora de esquadro para a marca?
2. Branding deve ser feito de dentro da organização para fora, e não o contrário – A estratégia de rebranding de qualquer marca deve partir de seu DNA, especialmente quando há um claro legado construído de marca e necessidade da empresa na recompra de seus produtos — ambos os elementos fundamentais para a sustentabilidade do negócio.
No entanto, essas premissas parecem ter sido ignoradas pela Land Rover Jaguar. Mesmo diante da necessidade de impulsionar vendas, que vêm despencando desde 2018, dá para considerar esse um desvio tão distante da essência da marca que acabou se colocando contra ela. A busca por inclusão, diversidade e comportamentos vanguardistas, guiada pela chamada “cultura Woke”, tem sido frequentemente imposta sobre a genética das marcas, muitas vezes gerando resultados desastrosos.
O movimento em si, embora alicerçado em virtudes, enfrenta desgaste por seus exageros e falta de autenticidade, prejudicando sua conexão com a sociedade, consumidores de mercados mais tradicionais. A máxima “Go woke, go broke” tem sido usada com alguma propriedade.
Durante minha análise do caso, o discurso de Santino Pietrosanti, diretor de marketing da Jaguar, no evento “Attitude”, chamou atenção. Militante LGBTQIA+ assumido, vestindo um paletó de lantejoulas e camiseta transparente, o exótico Pietrosanti declarou: “Estamos comprometidos em promover uma cultura diversa, inclusiva e unificada, que represente não apenas as pessoas que usam nossos produtos, mas também a sociedade em que vivemos. Estamos em nossa própria jornada de transformação.”
Embora legítimo, o discurso parece desconectado da essência da marca, evidenciando um esforço para alinhar-se muito mais à contemporaneidade do que ao próprio DNA dela. Isso fica evidente no novo slogan da Jaguar, “A seismic change is coming” (em livre tradução, um abalo sísmico está chegando”, que anuncia uma mudança radical na estratégia, mas que arrisca alienar a base que sustenta o legado da marca.
Além disso, até um estudante de publicidade sabe que público-alvo ou mesmo os ”moving target groups” (terminologia mais contemporânea) são conceitos-chave para construir pontes
com uma peça publicitária. A execução de “Copy nothing” é claramente disruptiva, mas carrega em si signos e símbolos de minorias sociais que, apesar de merecerem atenção, não fazem parte do perfil de comprador-alvo de um Jaguar no curto prazo (talvez no longo prazo), seja perfil psicográfico ou sociodemográfico.
Não há justificativa de negócios passível de ser coerente nesse movimento da
marca, certo?
Só que… e a estratégia?
Pergunto com frequência aos meus alunos de estratégia se uma campanha, uma ação de marca, um reposicionamento ou até mesmo um lançamento de produto foi bom ou ruim para determinada empresa. Ouço as opiniões das mais variadas. Nenhuma certa. E por quê?Porque só saberemos se uma estratégia funciona (ou não)se soubermos os objetivos do negócio. Sem isso, o máximo que podemos fazer é opinar se gostamos de algo e se isso “parece” off-strategy. Nunca podemos dizer que a estratégia está errada, porque não estamos no intestino da empresa para saber o problema que ela quer resolver e por que tal caminho estratégico.
Vamos lembrar o que é estratégia? Trata-se de criar uma meta e construir caminhos para realizá-la.
Daí eu andar dizendo que pode haver um “ fio de estratégia”, sim, nessa peça publicitária da Jaguar. A estratégia divulgada é a de reposicionamento total da marca de ultra-luxo alicerçada na tecnologia de carros elétricos, que combina com os novos tempos. E é uma intenção digna de uma marca de ultra- luxo.
Jaguar estaria abrançando o “modernismo exuberante” como nova filosofia de design
Esse reposicionamento implicaria:
A Jaguar deve lançar três novos veículos elétricos em 2026, todos com valores que equivalerão a, pelo menos, o dobro dos carros atuais e compatíveis com os carregadores elétricos já estabelecidos no mundo da Tesla.
Avisando os amigos que estão em Miami, EUA, a marca pretende abrir a exposição Miami Art Week, nesta semana, com uma instalação chamada “Copy Nothing”, em referência à filosofia do seu fundador. Além de ser curadora de dois espaços na exposição, a Jaguar vai apresentar artistas emergentes que vão executar obras com a nova personalidade da marca e dar um preview do carro-conceito, dando uma ideia do que será a “nova Jaguar”.
Então: se a carta de intenção da empresa for essa, você diria que a estratégia que embasa a campanha “Copy nothing” está errada? O tempo dirá.
Seja feliz.