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Liderança

4 min de leitura

A arte da possibilidade

Entenda como líderes e empresas lançam perguntas e promovem debates articulando a arte do possível, substituindo assim a lógica do provável

Colunista Augusto Dias Carneiro

Augusto Dias Carneiro

22 de Fevereiro

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Artigo A arte da possibilidade

Em setembro e outubro de 2020, muitos clientes meus estavam ocupadíssimos fazendo o orçamento de 2021 das empresas deles. Foi mais ou menos quando soubemos que os números da pandemia tinham parado de cair e começado a subir de novo: gráficos que pareciam camelos (um corcova) em questão de dias transformaram-se em dromedários (duas corcovas). Pensei em como tentar quantificar o futuro mais provável naquele momento era um desperdício de tempo gerencial. Afinal, em meados de 2019 a epidemia era considerada possível mas pouco provável! (ainda nem se chamava pandemia). Imaginei quantas empresas jogaram no lixo (a partir de março de 2020) os orçamentos que fizeram em outubro de 2019 para 2020.

Orçamentos lidam com o provável. Deveríamos focar no mundo possível.

Nada impede que façamos um ritual do exercício anual do orçamento, desde que a empresa, ao focar no provável, não perca de vista o possível. Nem tome três ou quatro semanas da atenção de seus principais líderes para produzir o orçamento do ano seguinte. Se o objetivo é produzir um relatório detalhando valores projetados doze meses para a frente, já existem softwares que buscam os resultados dos últimos meses e, alimentados com algumas premissas, recalculam tudo para a frente.

Precisamos, isso sim, ter uma discussão anual séria sobre Orçamento de Capital (o tal do Capex). Aqui, precisamos buscar um consenso em nível estratégico sobre que novos ativos adquirir, e quais precisam ser substituídos. O erro clássico aqui é aprovar um investimento porque o retorno promete ser alto, ignorando o risco (volatilidade=risco) destes resultados. Sim, porque maior retorno na maioria das vezes significa maior risco. Uma empresa que conheço chama este exercício de "seleção de projetos", e qualquer colaborador pode ir lá defender um investimento pela empresa em um projeto, comprar outra empresa, ou propor a substituição de uma máquina por outra mais moderna. Para ter sua proposta agraciada com um investimento, essa pessoa precisa provar que (1) reforça o ramo de atuação da empresa, (2) tem relação favorável custo/benefício, e (3) tem uma relação risco/retorno compatível com o folego financeiro da empresa.

Como se pratica a arte da possibilidade?

Os líderes – e eu entendo que líderes em uma empresa são todas as pessoas pagas para tomar decisões a partir de sua visão coerente e compartilhada do futuro da empresa – devem perguntar a todos os colaboradores o que elas enxergam adiante, e garantir que estes respondam com franqueza – ou seja, que não digam o que (acham que) o chefe quer ouvir. Eis algumas possíveis perguntas:

1. Quais são as necessidades de nossos clientes e o que eles não mencionam para nós?

2. Que tendências e disrupções de nosso mercado você sente no seu dia-a-dia de trabalho?

3. Quais são os dogmas mais sagrados do nosso ramo de atuação? Quais deles (na sua opinião) deveriam pertencer ao passado?

4. Que habilidades únicas temos nessa empresa que deveríamos incentivar?

Para lidar com essas perguntas, e com a discussão entusiasmada que elas provocam, algumas empresas escolhem aleatoriamente grupos de 20 colaboradores para uma reunião com dois ou três líderes, até que todos tenham tido a chance de participar. Um cliente meu convida oito pessoas de cada vez, todas do mesmo departamento, em diferentes países, até certificar-se de que conversou com todos pelo menos uma vez por ano. Algumas empresas convidam clientes. Outros também convidam seus principais fornecedores (e que inclui, em um caso que conheço, consultores, advogados, auditores, até a agência de propaganda) para uma discussão (a partir de duas ou três perguntas distribuídas a priori).

Fomos todos educados sob o Método Científico, onde (1) queremos saber a causa-raiz de todo problema, (2) fatiamos aristotelicamente um tema que não entendemos até encontrar uma fatia que entendemos, (3) focalizamos no que não funciona.

É mais ou menos como olhar para um pedaço de queijo suíço e só enxergar os buracos dele!

Desde o final do século 19, a humanidade teve um progresso extraordinário aplicando o Método Científico. Resulta no entanto que temos uma predisposição cultural para enxergar restrição e previsibilidade, quando deveríamos passar mais tempo no mundo da possibilidade.

Para quem quiser entender esse nosso bloqueio coletivo, recomendo o livro com o mesmo título desta coluna.

Dos 37 livros que li para obter minha certificação de coach, esse foi seguramente o que mais me influenciou. Curiosamente, embora tenha sido um grande sucesso de público e crítica, a edição brasileira partiu direto para o anonimato. Como o estoque ia ser incinerado, fui lá na editora e resgatei alguns exemplares para amigos e clientes.

E para quem quiser entender mais como o exercício anual de orçamento pode e deve ser substituído por uma discussão que foque em coisas possíveis, em vez de coisas prováveis, eis um artigo de 2015 (quem se lembra de 2015?) da revista da PwC: “Practicing strategy in an uncertain world”.

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Colunista

Colunista Augusto Dias Carneiro

Augusto Dias Carneiro

Coach, headhunter, autor, mediador e board member, Augusto Dias Carneiro é sócio da Zaitech Consultoria. Autor de Guia de Sobrevivência na Selva Empresarial.

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