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Marketing e vendas

11 min de leitura

A cultura do cancelamento das marcas

O atual desafeto entre usuários e marcas é evidente, e não está fácil para as empresas evitá-lo: há, hoje, um enorme elenco de deveres corporativos que não estava nos ombros da iniciativa privada cinco anos atrás. Mas três providências podem amenizar a situação

Colunista Ulisses Zamboni

Ulisses Zamboni

26 de Janeiro

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Artigo A cultura do cancelamento das marcas

Está na hora de colocar foco num assunto que tem sido mais corriqueiro do que se imagina na prática do marketing do século 21: o desafeto entre usuários e marcas. Além de frequente, tenho percebido que esse assunto tem subido no ranking de prioridades das empresas, pois está intimamente correlacionado ao risco de sustentabilidade do negócio, já que pode comprometer a primeira compra e a recompra de usuários fiéis.

Jogando uma boa pitada de drama na história, eu diria que as corporações se encontram atualmente como “reféns” do escrutínio investigativo e dos olhos de lince de quem as compra, numa espécie de jogo de detetive ou em um julgamento diário no tribunal (inexistente) da perfeição e da lisura nos processos empresariais. Sem querer colocar nenhum juízo de valor no comentário, esse é um fato inexorável do mercado contemporâneo para qualquer marca que pretenda ganhar seu espaço e um lugar ao sol na seara do market share. E é por isso que o assunto é tão importante.

À medida que fui me aprofundando nas pesquisas para escrever esse artigo, fui vendo que o assunto daria um livro, até porque encontrei um vazio de literatura sobre o assunto. Esse fato soou como um sintoma inequívoco de que o assunto mexe com questões delicadas para os gestores das marcas e por isso são preteridos como tema para compartilhamento de aprendizados, afinal, ninguém gere uma marca para ela errar e ser objeto de estudo pelo desastre, não é?

No entanto, cito aqui um dos livros mais impactantes do marketing na minha carreira, chamado “Brand Failures – The Truth About The 100 Biggest Branding Mistakes of All Times”, de Matt Haig, publicado em 2003, onde aprendi e colecionei uma dezena de insights sobre gestão de marca e negócios a partir dos erros. Nele, o autor seleciona cases que vão de erros clássicos como o lançamento de produto (“New Coke”), à extensão de marcas em produtos (como o perfume da Harley-Davidson), até as “falhas das pessoas” que alguns de nós presenciamos nos casos públicos da Enron e da extinta consultoria Arthur Andersen.

Com ajuda de alguns amigos do mercado e acadêmicos da USP (experts em leitura de dados), obtive alguns “papers” científicos sobre o tema, com hipóteses levantadas sobre reputação e credibilidade de marca vis à vis suas falhas em serviços. No entanto, sobre nosso mercado e a comunidade brasileira, tive um verdadeiro fracasso na procura. Por isso, vou ousar colocar aqui uma pequena análise a partir de meu repertório pessoal sobre gerenciamento de crises e a cultura do cancelamento de marcas nos últimos 5 anos.

O cancelamento da marca

Estamos no século 21 e a jornada de compra das marcas está mais complexa do que nunca. Vamos seguir o raciocínio de uma jornada de compra: a marca é procurada e investigada na web para conhecimento de sua qualidade e reputação (sites como Reviews e Reclame Aqui, por exemplo). Depois de o usuário investigar a concorrência e se convencer da credibilidade e eficácia do produto, ou seja, somente quando a marca consegue furar o bloqueio da competição, vem a efetivação da compra que pode se iniciar na web e terminar na loja. Ou vice versa. Ou ainda ser toda analógica (e ser entregue em casa por conveniência) ou totalmente digital (e ser pega numa loja física).

Finalmente, o produto chega às mãos do usuário. Começa uma nova prova de fogo. A marca tem que alcançar a expectativa que gerou no imaginário do consumidor e entregar o que prometeu, além de, é claro, provocar o “customer satisfaction” (para que ao menos, ele não volte à web e fale mal dela). Dias após o recebimento, entra o pós venda para fidelização do usuário na esperança de uma compra futura e, finalmente, a retroalimentação do processo, quiçá com esse usuário gerando um (bom) “boca a boca” sobre a marca, entregando sustentabilidade ao negócio. Ufa! Essa é realmente uma longa jornada.

Com um processo assim tão longo e complexo, as chances de falhas e, por consequência, as de sofrer algum cancelamento moral durante ele são gigantes, correto? Não obrigatoriamente. É nesse território que mora um enorme e surpreendente paradoxo. O que mais tenho presenciado no dia a dia do marketing é a cultura do cancelamento de dezenas de marcas pelas suas narrativas, pelos seus diálogos equivocados e pelas suas atitudes frente às questões da opinião pública nas mídias sociais.

Os atributos emocionais e a ética das marcas têm sido objeto de expiação e cancelamento delas pela sociedade, gerando um verdadeiro caos na gestão e manutenção das suas reputações.

Hoje, para fazer valer a compra realizada, a marca precisa estar em conformidade não só com as expectativas funcionais dos seus usuários, como também alinhada com as questões éticas do mundo contemporâneo como capitalismo consciente, economia circular e sustentabilidade, impacto social, diversidade, educação etc. Sim, um enorme elenco de deveres corporativos, que talvez há apenas cinco anos não estivessem na lista de suas obrigações, nem nos ombros da iniciativa privada, se juntam à já complexa equação da jornada de compra.

Reputação da marca em xeque o tempo todo

Nos últimos dez anos, a exponencialidade de informação disponível (e de graça) na web criou comunidades mais bem preparadas e muito mais opinativas. Se somarmos esse fato à velocidade da disseminação das notícias na rede, teremos como resultante um dos mais representativos fenômenos antropológicos dos últimos 50 anos: o protagonismo do indivíduo.

Pense bem: talvez não se encontre hoje nenhum ser humano minimamente educado – da educação básica à universidade – que não se considere um “protagonista” na vida. Hoje, coadjuvantes são figuras do passado (ou do século 20). E com o protagonismo, a militância ativa em defesa de suas opiniões vem junto. Por isso, as mídias sociais são plataformas perfeitas para a sociedade atual.

É certo que existem abusos e mau uso desses canais por parte de alguns segmentos de usuários, o que exige atenção redobrada das corporações e das marcas para não jogarem fora (e à toa) suas reputações, geralmente construídas a duras penas ao longo dos anos. Como dizia Jack Welch, o lendário CEO da GE, “it takes years to build up reputation, but minutes to destroy it” (“Levam-se anos para construção de reputação, mas minutos para destruí-la”). E hoje essa verdade é ainda mais aguda.

Mark Zuckerberg já autodenominou sua plataforma digital como uma espécie de “praça pública” capaz de dar volume e multiplicar os assuntos que interessam à coletividade. Quem sou eu para ajustar esse conceito, mas eu diria que com a força delas atualmente, elas são mais que isso. São uma espécie de Speakers' Corner do século 21, ou seja, um conceito que abraça não só a multiplicação da informação como também uma militância ativa sobre tudo.

O assunto fica mais grave quando vemos os algoritmos dessas plataformas agruparem segmentos de públicos com alta afinidade de ideias entre si, construindo um bloco hegemônico de pensamento que defendem, quase que à mão armada, as mesmas teorias ignorando ou passando por cima de quem pensa diferente dele. Não é à toa que vivemos uma babel de opiniões polarizadas sobre tudo e sobre todos. E as marcas não passam por isso incólumes.

As empresas atualmente têm uma tarefa relativamente complicada para, ao mesmo tempo manterem sua credibilidade e reputação intactas e se posicionarem funcional, emocional e eticamente nas mídias sociais, já que lá elas são forçadas a emitir pontos de vista sobre questões espinhosas tanto sociais quanto políticas. E quando uma marca se posiciona, ela está fazendo escolhas (que podem desagradar alguma parcela da população).

TRÊS REFLEXÕES IMPORTANTES

Recebo frequentemente solicitação dos meus clientes para apresentar um gabarito de conduta para suas marcas quando ela entra nesse território desconfortável de ser obrigada a ter uma opinião sobre um determinado assunto ou quando ela é cancelada nas mídias sociais por alguma razão que desagrade a uma fatia de público. E invariavelmente compartilho que, na minha experiência, cheguei à conclusão de que cada caso é um caso.

No entanto, existe sim um protocolo mínimo para as atitudes corporativas e de marca que precisa ser revisitado para que o fato que se coloca urgente seja administrado de forma a prejudicar o mínimo possível as relações da marca e a performance de sua corporação.

Seguem três pontos que considero fundamentais para iniciar um gabarito de crise ou de cultura de cancelamento com sua marca.

Garanta que sua marca tenha uma persona

A máxima socrática do “conhece-te a ti mesmo” cabe perfeitamente nos casos de cancelamento de marcas nas redes. Uma marca com identidade clara é uma benção na hora de gerenciar uma crise já que ela acaba fornecendo dicas importantes de como ela deve se comportar diante dos fatos.

Quando digo identidade clara, não estou me referindo à proposta de valor ou aos atributos funcionais que a marca tem, mas aos atributos éticos e arquetípicos. Não vou tornar essa leitura aqui complexa com jargões da comunicação, mas acompanhe meu raciocínio fazendo um paralelo com nossas vidas: se você se depara com uma drama ou uma crise familiar, você reage a partir de seus conceitos éticos e comportamentais que fizeram parte de sua criação. Lança mão de suas crenças enquanto “persona” atuante na sociedade e também de seus valores fundamentais aprendidos com seus pais.

Com as marcas, isso não é diferente. Se você ainda não tem clara, na sua estratégia de comunicação, o atributo ético e arquetípico de sua marca, provavelmente você levará mais tempo para conseguir se desvencilhar de um cancelamento nas redes ou uma crise. A ética e o comportamento arquetípico de uma marca fornecem dicas preciosas no “o que” e no “como” endereçar o problema, como se fosse uma atitude de uma pessoa.

A Nike, por exemplo, tem tanta certeza de sua plataforma ética e de comportamento (arquetípica) que até se aproveita de crises na sociedade para alavancar sua identidade, como quando o “quarterback” Colin Kaepernick se ajoelhou em protesto à violência e brutalidade da polícia nos Estados Unidos durante o hino nacional em um jogo de futebol americano e enfrentou críticas pesadas por desrespeitar a bandeira americana. Faíscas vieram de todos os lados, inclusive do ex-presidente Donald Trump.

O ato do atleta partiu a sociedade americana ao meio. Mesmo assim, a Nike, ciente de seu protocolo identitário e atitudinal (arquétipo do herói), decidiu colocar Kaepernick como garoto propaganda de sua campanha com o texto “Believe in Something. Even if it means sacrificing everything. Just do it” (“Acredite em algo. Mesmo que isso signifique sacrificar tudo. Apenas faça isso”, em tradução livre, lembrando que “Just do it” é a voz de comando da marca há pelo menos 20 anos).

Numa crise, informe rápido seus stakeholders

A experiência mostra que o humor (e a moral) da cadeia de stakeholders como colaboradores, parceiros, clientes, acionistas e especialmente funcionários acaba sempre prejudicando de imediato a performance da empresa e, muitas vezes, deixando sequelas que duram meses ou até anos. Por outro lado, a mesma cadeia de stakeholders, se bem administrada com informação e agilidade na ação (durante ou após um cancelamento), pode reverter o problema quase que de forma instantânea.

Repito aqui a similaridade de uma marca com as relações familiares. Imagine que você está sendo alvo de difamação e a sua família fica sabendo do problema pela imprensa? Provavelmente você terá um duplo problema: o de dissolver a difamação (se você realmente não tem culpa no cartório) e resolver o mal entendido com seus familiares. Se você está realmente sendo difamado, seus parentes irão te defender. O mesmo acontece com as marcas.

A cadeia de stakeholders tem o poder de blindar uma marca (empresa) se ela for historicamente genuína e transparente com seus públicos de interesse. E, claro, se estiver alinhada com sua ética e a da sociedade.

Faça a marca ser sensível aos acontecimentos

Ouvir os usuários e “ligar o radar” no que está agitando a sociedade é fundamental. A mídia social torna isso muito mais fácil. E, melhor que isso, suscita questões que lá na frente podem resultar em um cancelamento cultural da sua marca.

Um dos mais sofisticados serviços de atendimento ao consumidor do mundo é o da Starbucks americana que, só no Twitter, tem mais de 11 milhões de seguidores. Nele, a empresa responde, com agilidade, questões, comentários e reclamações. E usa a tecnologia como forma de otimizar as respostas já que possui um dos mais robustos “bots” de resposta disponíveis no mercado.

Além disso, vale o destaque de que é altamente recomendável ter um serviço especializado em leitura e monitoramento das mídias sociais (social listening). Aqui no Brasil já temos algumas dezenas de empresas nesse serviço.

A VERDADE É UMA SÓ. A cultura do cancelamento é dramática e muito dolorosa para uma marca, e por que não dizer para seus gestores, já que denota rejeição na relação por alguma desaprovação entre as partes. Traz a sensação de ostracismo na comunidade e destrói a construção de sustentabilidade, tão desejada pelos negócios.

Daqui para frente, com a migração das conversas e das relações entre marcas e usuários para as plataformas digitais, os gestores das marcas precisam ficar atentos. Está cada vez mais preocupante encontrar algum equilíbrio para navegar por elas, porque às vezes, a balança pende para o lado do usuário raivoso e às vezes, em favor da marca contemporizadora.

Mas, se você tem uma marca forte e com identidade clara, a experiência mostra que ela é capaz de sair mais forte de um cancelamento desses.

Fontes consultadas neste artigo: Journal of Business Research, Journal of Retailing and Consumer Services, European Journal of Marketing e Blog ResearchWorld.

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Colunista Ulisses Zamboni

Ulisses Zamboni

Com 40 anos de experiência na área de comunicação, é presidente e sócio da agência Santa Clara, membro do conselho do Grupo de Planejamento no Brasil, membro do Conselho Editorial da MIT Sloan Review Brasil e clinica como psicanalista.

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