fb

Filosofia

5 min de leitura

As fendas da razão

O que leva alguém a desistir da lógica por uma crença conveniente que é irracional? Isso não é funcional – serão os demônios sussurrando em nossos ouvidos?

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

17 de Janeiro

Compartilhar:
Artigo As fendas da razão

Foi em março de 2019 que a cientista de computação japonesa, Emma Haruka Iwao, então com 33 anos, apresentou o cálculo que, até agora, é o mais preciso para o valor de Π (Pi). Iwao, que também é engenheira de desenvolvimento da plataforma em nuvem do Google, ocupou 121 dias de processamento em mais de 25 máquinas para representar Π com 31,4 trilhões de dígitos.

Para ter uma ideia do feito de Iwao, seu cálculo inclui quase 3 vezes mais dígitos do que o cálculo realizado em 2013 por Shigeru Kondo, um engenheiro de sistemas japonês.

Para os esquecidos, vale lembrar que o número Π não é apenas uma referência ao nome do protagonista do premiado filme, dirigido por Ang Lee, A vida de Pi. O número representa a proporção definida pela relação entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro. É uma constante matemática que permite, por exemplo, calcular a área de um círculo.

É interessante assumir que, no campo de uma ciência exata como a matemática, existam números cuja “precisão” é, ainda, trabalho em andamento. Porém, como provou o matemático suíço Johann Heinrich Lambert, trata-se de um número irracional, ou seja, um número que não pode ser expresso como fração de dois números inteiros, como a/b (sendo b um inteiro não nulo).

Neta pandemia do Covid-19, com grande estarrecimento, assistimos a diversas manifestações de irracionalidade, tanto de figuras públicas quanto de grupos sociais. As reflexões, muito cabíveis, tornaram-se debates de posições radicais, com questionável sustentação lógica.

Escutou-se e leu-se muita opinião que tratou dos temas associados à pandemia como miragens coletivas de cientistas e filósofos. Isto sem falar nas teorias conspiratórias, argumento naturalmente oferecido pelo pensamento raso e descomprometido com a ciência.

Para se ter uma dimensão destas irracionalidades, um periódico digital brasileiro publicou, recentemente, sete boatos (irracionais) que se tornaram populares no nosso país. Entre eles, há menções questionáveis à inserção de microchips no corpo de quem tomar a vacina e, ainda, que os termômetros infravermelhos causam doença cerebral. Estas ideias causam espanto para gente mais esclarecida. No caso da irracionalidade de Π, os matemáticos o enquadram na categoria de constantes, um valor fixo (Particularmente, gosto de pensar em constante como algo que consta assim como é e não pode ser de outro modo). E como faz referência a um valor fixo, quase a totalidade daquilo que interage com este valor torna-se variável.

O exemplo mais fácil de entender é a função da constante C, que refere a velocidade da luz, na famosa equação de Einstein, e=m.c2; onde uma vez assumida a constante C, tanto e quanto m estão sujeitas a variações de valor. Mas cuidado: a velocidade da luz não é um número irracional como o Π; apenas quis exemplificar o conceito de constante.

Assim que Π é uma constante irracional e, portanto, incomensurável (como Deus?)

Ao usarmos a razão para conceber a matemática tal qual a conhecemos, encontramos a irracionalidade pela impossibilidade de representar um número pela razão de dois números inteiros.

É como se houvesse uma prova cabal da existência de algo para o qual não é possível encontrar um conjunto de proposições que confirme sua existência (seria algo como a fé?). Ou seja, é algo que simplesmente é do modo que é.

A irracionalidade diante da pandemia não coincide com o conceito de irracionalidade dos números na matemática. Há certa semelhança, mas não coincidência. No primeiro caso, o termo popularmente faz referência à ausência de sustentabilidade lógica; no segundo, por se tratar de números que em sua forma decimal são infinitos, a referência é a incomensurabilidade.

Devemos notar, entretanto, que o instrumento que conclui pela irracionalidade lógica ou pela irracionalidade dada pela incomensurabilidade de um número, é o mesmo: a razão. É ali, onde ela vigora, que eventualmente as lógicas são deixadas de lado ou a lógica, levada às últimas consequências, rende-se diante do incomensurável.

É preciso demorar-se sobre esse fenômeno: o que esta irracionalidade representa? Para mim, a resposta é simples: trata-se de uma fenda da razão, um vazio que falseia (ou desabona) a razão, nos levando a desistir de seguir em frente, seja por cansaço ou por nos colocar diante do inefável (o que não pode ser determinado por palavras humanas).

Mas a questão que nos interessa ainda não está respondida: o que leva alguém a desistir da sustentação lógica para expressar a sua “crença” de maneira tão desarticulada?

Seja lá o que for, é algo que determina limites para a razão, algo que denuncia que toda a lógica está sujeita a encontrar alguma fenda que nos coloca, como diria Aristóteles em sua Metafísica, diante de uma aporia (situação insolúvel).

Em muitas das discussões instauradas em nossa sociedade o que se encontra é uma espécie de acareação entre a lógica fundamental e a crença irracional. Mas no fundo, tanto uma quanto a outra arrogam o uso da razão. Nós explicamos nossas crenças através de razões particulares.

No caso dos debates oriundos da circunstância pandêmica, muitos argumentos que adotam a roupagem da lógica, na verdade, são crenças assentadas sobre irracionalidades. É difícil aceitar, mas é preciso ter cuidado com a lógica. É preciso usá-la com sabedoria. Desistir dela não é funcional. E encontrar com ela o inefável não pode ser considerado uma derrota.

Seja como for, vez que outra, nossa razão se depara com o vazio, aquela sensação de que perdemos algo pelo caminho. Ao revisitar o processo que nos levou até esta situação, descobrimos uma continuidade que não leva a lugar nenhum senão a ela mesma. É uma grande fenda do qual nenhum de nós, cedo ou tarde, escapa.

O aspecto positivo destas fendas a é que elas nos oferecem portas para sentir a proporção humana diante do Universo. É o que nos inspira a continuar investigando, mesmo quando a lógica fraqueja, ou a substituí-la por alguma crença conveniente. São frestas por onde Deus ou os nossos demônios sussurram. Escolher a quem escutar é tão importante quanto acatar o valor aproximado de Π.

Sem querer aludir à metafísica, mas como metáfora, se escutarmos os deuses, nosso mundo funciona, mesmo com o Π incomensurável. De outra sorte, se continuarmos a dar ouvidos aos sussurros dos demônios, não chegaremos a lugar algum.

Compartilhar:

Colunista

Colunista Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano.

Artigos relacionados