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Inovação científica

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Engenharia genética: manipulando o código da vida

Em agosto de 2020, a Anvisa aprovou os dois primeiros medicamentos de terapia gênica no Brasil. Temos de acompanhar os desdobramentos

Colunista Sagres Brasil

Sagres Brasil

20 de Dezembro

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Artigo Engenharia genética: manipulando o código da vida

Em 1953, James D. Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins foram os autores do modelo da “dupla hélice” para descrever a estrutura da molécula de DNA, que por sua vez armazena as informações genéticas dos seres vivos. Por esse trabalho, receberam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1962.

Com os avanços no estudo da genética, cientistas começaram a especular sobre a possibilidade de transferência de genes entre organismos. Finalmente, em 1973, Herbert Boyer and Stanley Cohen realizaram a primeira manipulação bem sucedida de um organismo geneticamente modificado, a partir de experimentos em bactérias. Nascia, então, a engenharia genética. Três anos depois, nascia também a empresa de biotecnologia Genentech, fundada por Boyer e pelo investidor Robert Swanson.

A partir daí, as possibilidades de aplicação da engenharia genética se ampliaram. Bactérias foram geneticamente modificadas para produzir hormônios e insulina. Plantas foram geneticamente modificadas para resistir às pragas e ao clima, ou para serem mais nutritivas. Vacinas sintéticas foram desenvolvidas contra a pneumonia, meningite e hepatite B. Diversas outras aplicações foram exploradas ao longo das últimas quatro décadas.

Mais recentemente, cientistas têm buscado soluções da engenharia genética para fazer diagnóstico, tratamento precoce ou mesmo cura de determinadas doenças de base genética. Adicionalmente, o estudo sobre o genoma, que é a soma de toda a informação genética de um ser vivo e conhecido popularmente como o “código da vida”, também pode nos ajudar na identificação de genes relacionados à propensão de doenças. Isso já permite, em alguns casos, que o conhecimento antecipado sobre o risco de alguém desenvolver determinada doença seja crucial para de fato evitá-la.

Terapias gênicas em ação

Uma das técnicas mais recentes e promissoras da engenharia genética é a terapia gênica. Pacientes com doenças genéticas raras podem ser os principais beneficiados A terapia gênica consiste em introduzir genes saudáveis no paciente para fins terapêuticos, visando a corrigir a mutação genética causadora de doença presente no DNA do paciente. De forma grosseira, a técnica poderia ser entendida como um “transplante de DNA”.

Em agosto de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou os dois primeiros medicamentos de terapia gênica no Brasil, ambos desenvolvidos pela multinacional farmacêutica Novartis Biociências S.A. O primeiro medicamento, chamado de Luxturna® (voretigene neparvoveque), é indicado para pessoas com distrofia hereditária da retina (DHR). A DHR é uma doença de base genética que rompe as células da retina e leva a perda gradual da visão, podendo progredir para a cegueira.

O segundo, identificado como Zolgensma® (onasemnogeno abeparvoveque), é direcionado para tratar crianças de até 2 anos de idade com atrofia muscular espinhal (AME). A AME é uma doença neuromuscular rara e grave, também de base genética, que acomete 1 em cada 10.000 bebês nascidos vivos. A doença se caracteriza pela degeneração e perda de neurônios ligados ao movimento dos músculos, resultando em fraqueza muscular progressiva e atrofia. Em Curitiba, o centenário Hospital Pequeno Príncipe - maior hospital pediátrico do Brasil, referência em doenças raras - foi a primeira instituição do Brasil a usar o medicamento Zolgensma em um paciente.

Apesar do Luxturna ter sido o primeiro medicamento de terapia gênica aprovado na América Latina, é o Zolgensma que está gerando mais debate por conta do seu preço. Considerado o medicamento mais caro do mundo, uma única dose custa cerca de US$2,1 milhões (aproximadamente R$12 milhões por paciente).

O futuro da edição genética

Sob o ponto de vista tecnológico, ainda temos muito a aprender e explorar. O Prêmio Nobel de Química de 2020, por exemplo, foi para as pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna por desenvolverem o método Crispr, uma nova tecnologia de edição genética. O Crispr funciona como uma “tesoura genética”, que permite “cortar” e “recortar” partes específicas do DNA com bastante precisão.

O mercado também promete movimentar grandes cifras, vide os preços das primeiras terapias gênicas disponíveis e aprovadas. A Genentech, mencionada no início deste texto, foi vendida em 2009 para a empresa multinacional Roche por aproximadamente US$ 46,8 bilhões. E a tendência é de vermos cada vez mais novas empresas de biotecnologia sendo fundadas. Ao mesmo tempo, o quão acessível essas tecnologias serão para aqueles que mais precisam delas?

Movimentos sociais a favor e contra as tecnologias de edição genética também estão se posicionando. Muitos biohackers acreditam ser possível – e desejável – melhorar a espécie humana através do uso de tecnologias e advogam para que as informações e tecnologias de edição genética sejam abertas e democráticas. Por outro lado, ativistas ambientais temem que o uso indiscriminado dessas tecnologias possa gerar desequilíbrios ecológicos e sistêmicos ainda não compreendidos, com potencial de causar desastres ambientais que fogem ao controle humano.

A expectativa é que as tecnologias de edição genética possam eliminar doenças e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Mas poderemos também usar tecnologias de edição genética para melhorar o desempenho dos atletas, alterar características físicas dos bebês, ou mesmo potencializar a capacidade intelectual de indivíduos? Nesse sentido, os limites éticos e bioéticos quanto ao uso dessas tecnologias precisam ser estabelecidos, levando em conta as diversas dimensões dessa questão.

Para continuar a discussão sobre edição genética e seus impactos, os autores desta coluna recomendam os quatro episódios da minissérie da Netflix “Seleção Artificial” (Unnatural Selection, em inglês). É um bom programa para o recesso das festas.

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Autoria

Colunista Sagres Brasil

Sagres Brasil

“Sagres Brasil” é o pseudônimo coletivo adotado por Guilherme Ary Plonski, Daniel Pimentel, Lucas Delgado e Guilherme Rosso. Plonski é coordenador científico do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica e diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Pimentel e Delgado trabalham na Emerge Brasil, organização focada em integrar inovações de base científica e mercado. Rosso é responsável pelo Escritório de Inovação do Complexo Pequeno Príncipe, que abrange hospital, faculdades e instituto de pesquisa em Curitiba. Sagres é uma homenagem ao inovador projeto acadêmico português que, ao estender a fronteira do conhecimento da época, criou o movimento de navegação internacional de Portugal, um marco mundial do empreendedorismo inovador.

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