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Diversidade e inclusão

8 min de leitura

Na Copa e na carreira: a melhor vitória é a coletiva

Do futebol ao mundo dos negócios, é vital a criação de novos padrões sociais, culturais e econômicos. Quem ocupa os cargos mais altos das organizações e conselhos, está em dívida com as mudanças organizacionais e com a abertura de oportunidades para mulheres na liderança

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

30 de Agosto

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Artigo Na Copa e na carreira: a melhor vitória é a coletiva

“Eu não tinha uma ídola no futebol feminino. A imprensa não mostrava o futebol feminino. Como eu ia entender que poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência?”

A frase acima foi dita na coletiva de imprensa que marcou a despedida da jogadora de futebol Marta das copas, após a eliminação na fase de grupos.

Eu não era uma grande seguidora do futebol feminino. Não acompanhei as copas passadas, mas acompanhei essa. Muito. Torci pelo Brasil, sofri com sua eliminação e segui até a final, me entretendo com o esporte e também celebrando a merecida visibilidade que a competição ganhou. Recorde de público e de audiência na televisão, no País e no mundo.

Para além da saída do Brasil, só a despedida da Marta me fez ficar um pouco triste. No entanto, a forma como ela encerrou sua brilhante passagem pelo time do Brasil, fez a momentânea tristeza tornar-se permanente orgulho e inspiração.

Vencedora de seis edições da Bola de Ouro da Fifa, a atacante da seleção brasileira deixou o campo como a principal artilheira da história da competição. Considerada por muitos como a maior jogadora de todos os tempos, Marta não é o Pelé (e muito menos o Neymar) “de saias”. Estamos falando de uma atleta que precisou superar todo o tipo de preconceito e estereótipo de gênero para conquistar um lugar até então inexistente entre os grandes nomes do esporte mundial — em um País que proibiu o futebol feminino profissional até o final da década de 1970, por decreto de lei.

A história de Marta nas copas termina como muitos movimentos de avanço social: sem coroação individual, mas com uma enorme contribuição para as próximas gerações. É muito mais fácil sonhar com o que se pode ver. E, a partir de agora, milhares de jogadoras brasileiras ganham um espelho para refletir todo o seu talento e potencial. A jornada da heroína inspira. Entretanto é hora de começar a ir além da narrativa da meritocracia individual e batalhar por estruturas mais abrangentes de identidade coletiva. Quem entra pelas frestas de um sistema desigual tem a responsabilidade de abrir a porta da frente para quem ainda está do lado de fora. O verdadeiro troféu não é ser a primeira pessoa a ter sucesso em alguma coisa. Se você chegar primeiro, certifique-se de não ser a única ou a última. A maior conquista de uma pioneira é abrir caminhos. E isso vai muito além dos campos de futebol.

Para construir novos imaginários, precisamos valorizar o legado dos que vieram antes de nós e tiveram a coragem de sonhar com futuros que não contemplavam sua existência. O apagamento sistemático das trajetórias de mulheres e pessoas negras é um dos principais desafios nesse sentido. De Chico Rei à Carolina de Jesus, não faltam exemplos de craques da cultura e da sociedade brasileira que foram simplesmente eliminados dos nossos livros de história. Falamos muito sobre a relação entre diversidade e inovação. Os empreendedores dos filmes, séries e biografias, no entanto, são sempre os mesmos. No mercado de tecnologia, por exemplo, quantas pessoas lembram de Ada Lovelace como a mãe dos algoritmos — e quantos lembram de Steve Jobs como o pai do iPhone? (Veja ao final do texto uma lista com outras pioneiras da indústria que você talvez nunca tenha ouvido falar).

Como já comentei no meu artigo anterior, ignorar a existência desses vieses é no mínimo um desperdício descomunal de talentos. Limita a nossa subjetividade e a amplitude de nossos sonhos. As sementes de mudança estão plantadas. Mas a transformação do mercado e da sociedade não acontecerá de forma orgânica. A construção desse cenário também depende da nossa capacidade de ação, articulação e indignação. Recentemente, participei como painelista do evento de lançamento do novo filme da Pequena Sereia, que pela primeira vez contou com uma protagonista negra. A Ariel não acordou de cabelos crespos e cacheados da noite para o dia. Para que ela existisse, gerações de mulheres negras precisaram lutar pela formação de uma nova consciência sobre diferentes padrões de beleza. Um movimento de décadas, pensado coletivamente, que resultou em mudanças profundas e permanentes na indústria de cosméticos, na mídia e no mercado de entretenimento.

Eu aplaudo o talento da Marta com os pés. Mas agora, o que mais me encanta é sua capacidade de estender as mãos. Como quem aponta, abre espaço e acolhe as mulheres que seguem os caminhos abertos por suas chuteiras. Não basta olhar para as mulheres que já alcançaram os postos de liderança. É preciso cuidar do mapa de sucessão, para que a chegada de mais mulheres seja planejada e intencional. Como executiva e conselheira reflito e me preocupo muito sobre isso. Afinal, de acordo com uma pesquisa realizada pela Bain & Company com o LinkedIn, apenas 3% das pessoas em cargo de presidência e 5% das presidentes de conselho eram do gênero feminino entre as 250 maiores empresas brasileiras em 2022.

Quem tem responsabilidade direta sobre esses números desiguais? Os 97% ou 95% que sempre ocuparam e continuam ocupando esses cargos mais altos das organizações e conselhos. Eles, no masculino mesmo, nos devem essas mudanças e abertura. Foram eles que nos proibiram de jogar futebol. Foram eles que criaram estruturas de poder que não só impediam nosso acesso no passado, mas que continuam nos atrapalhando no presente. Da forma como está hoje, é um trabalho árduo para nós mulheres alcançarmos as posições que historicamente foram desenhadas por eles e para eles.

Por isso, uma vez lá, é mais que justo que cada uma de nós celebre uma conquista individual tão importante. Entretanto, junto com a conquista podemos abraçar uma nova responsabilidade. Eu sei, é pesado para gente, com todas as batalhas que já temos, enfrentar mais uma. É como se em campo tivéssemos que jogar em mais de uma posição. Do ataque à defesa. Para além de cobrarmos ação e avanço de quem sempre esteve nesses lugares, é fundamental nos comprometermos com a retaguarda, como uma responsabilidade geracional. Fazendo isso, para além de pensarmos nas que virão, de certa forma, também estaremos cuidando de nós mesmas. Colocar mais jogadoras em campo, diminui a dificuldade de continuar e aumenta muito as chances de cada uma de nós continuar a vencer.

Infelizmente, nesse jogo, não estamos indo bem. Hoje no mundo, 32,4% dos cargos de alta gerência são ocupados por mulheres, um aumento de apenas 0,5 ponto percentual em relação a 2022 e apenas 13 pontos percentuais desde a primeira vez que a pesquisa foi realizada em 2004, de acordo com relatório Women In Business 2023, da consultoria Grant Thornton International. E esse não é o maior ponto de atenção. Porque, nos mapas sucessórios, a realidade é mais preocupante. São poucas ou nenhuma mulher em cargos de liderança sênior, preparadas para ascender.

De acordo com o relatório, se continuarmos nesse ritmo, apenas 34% dos cargos de liderança serão ocupados por mulheres em 2025. Um dado bem coerente com a estimativa de 131 anos para alcançarmos a equidade de gênero, segundo o Fórum Econômico Mundial. Nesse quesito, o futebol pode nos servir como inspiração novamente. Em 1991, primeira edição da copa do mundo feminina, havia apenas uma treinadora na competição, oito edições depois, em 2023, tivemos 12 treinadoras.

Voltando ao mundo dos negócios também temos uma vitória a comemorar. No agronegócio, um ambiente tradicionalmente masculino, como o futebol, as mulheres representam 34% dos cargos de liderança em fazendas, conforme dados da Fundação Getúlio Vargas. Este número supera o do cenário geral da economia, que tem 27% de mulheres na alta gestão. Um dos motivos para esse desempenho superior pode ser encontrado na pesquisa Governança e Gestão do Patrimônio das Famílias do Agronegócio, realizada pela Fundação Dom Cabral, em 2022. O estudo revela que 83% das mulheres das novas gerações afirmam encontrar uma cultura de abertura para assumir posições de chefia.

Uma jogadora sozinha pode ganhar um ou até seis prêmios de melhor do mundo. Mas são necessárias outras dez em campo para fazer uma seleção. E são necessárias outras centenas ou milhares acreditando, treinando e sonhando todos os dias para que essa seleção continue a atuar em mais e mais copas.

Por isso, é vital a criação de novos padrões sociais, culturais e econômicos com fortalecimento de mecanismos institucionais nas esferas públicas e privadas. A importância desse aspecto vem sendo defendida por autores como Renato Nogueira, que aponta a combinação entre representação (defesa de pautas e agendas de um grupo constituído) e representatividade (convívio e incorporação de novas referências e padrões na sociedade) como um fator crucial para sair do poço de estereótipos e preconceitos em que nos metemos nas últimas décadas. Uma tarefa contínua, que nos convoca a ir além das nossas conquistas individuais e ajudar a criar novos futuros, possibilidades e referências. Se a liberdade é uma luta constante, não podemos deixar essa batalha para amanhã. O que está em jogo é nossa própria história.

E agora quem encerra o texto é quem o abriu e foi sua grande inspiração, nossa vitoriosa Marta.

“Eu termino aqui, mas elas continuam. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido isso sem superar os obstáculos. É uma persistência contínua".

Para saber mais

Representação e representatividade, por Renato Nogueira



Pionerismo feminino
Uma lista para relembrar as mulheres que formaram as bases da indústria global de inovação e tecnologia

Ada Lovelace

Matemática e escritora inglesa, escreveu o primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina.

Hedy Lamar

Atriz e engenheira de telecomunicações, inventou a tecnologia que deu origem ao Wi-Fi.

Adele Goldstine, Betty Snyder, Fran Bilas, Kay Mcnulty, Marylin Wescoff e Ruth Lichterman

Criadoras do ENIAC, primeiro computador digital eletrônico do mundo.

Evelyn Berezin

Engenheira da Underwood Company, desenvolveu o primeiro computador com processador de textos.

Grace Hopper

Analista de Sistemas da Marinha, foi a criadora da linguagem Flow-Matic, que deu origem ao COBOL.



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Colunista

Colunista Grazi Mendes

Grazi Mendes

Grazi Mendes está como head of diversity, equity & inclusion na ThoughtWorks Brasil, consultoria global de tecnologia, é professora em programas de desenvolvimento de lideranças e cofundadora da Ponte, hub de diversidade e inclusão. Acumula cerca de 20 anos de experiência em gestão estratégica, branding, design estratégico, liderança e cultura, com atuação em empresas nacionais e multinacionais de segmentos diversos.

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