Por conta das fake news, estão sendo retomadas propostas de regulação das mídias sociais enterradas em 2014. Isso é um sinal de alerta
O processo de evolução tecnológica indiscutivelmente teve uma aceleração incrível a partir do final da década de 1990 com o surgimento da internet comercial e, consequentemente, de toda a sorte de soluções nela baseadas. As relações humanas foram igualmente afetadas e modificadas. Mas é essa mesma (r)evolução que nos permite, atualmente, desempenharmos nossas funções profissionais a partir de nossas casas ou refúgios, sem que nos demos conta de que tudo mudou! Tudo mesmo? Recentemente, em uma entrevista para falar sobre carreira, me vi sendo levado a refletir sobre o que ainda me motivava e me desafiava após 25 anos de história em um mesmo escritório. Por mais paradoxal que possa parecer, minha resposta foi a liberdade de inovar e de empreender. Par e passo com essa liberdade, foi a manutenção da cultura, dos valores e dos princípios que sempre nortearam a gestão da firma desde a sua fundação. Mas o que mudou, então? Esses elementos de alicerce do desenvolvimento e atuação do escritório não mudaram, mas, antes, foram reinterpretados de maneira a dar contemporaneidade aos ensinamentos do seu fundador, J. M. Pinheiro Neto, tornando-o condizente com as necessidades atuais da sociedade e de sua clientela.
Transpondo de maneira analógica a discussões atuais sobre o uso da tecnologia, percebemos que várias inciativas legislativas buscam regular, muitas vezes, a tecnologia em si mesma, desprezando o comportamento humano, ou melhor dizendo, o uso que fazemos das novas descobertas.
Vale, desde já, lembrar aos nossos leitores, que a construção de determinada lei ou de seu conjunto leva é permeada pelos valores sociais, culturais, éticos, políticos e mesmo antropológicos reinantes à época de sua discussão e promulgação pelo Poder Legislativo.
Como exemplo dessa constatação, todos ainda se lembram das discussões sobre o uso das mídias sociais, especialmente de aplicativos de comunicação instantânea, para a realização da propaganda eleitoral nas eleições de 2018, desde a legalidade da utilização dessas ferramentas de comunicação para fins de propaganda eleitoral, até a licitude das bases de dados pessoais que serviram de estopim para os chamados “disparos em massa”.
Nesse meio tempo, foi promulgada a lei 13709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que, dentre outras disposições, regula a utilização dos dados pessoais, firmando princípios importantes para o tratamento dos dados pessoais e, em especial, fixando definições legais (sobre o que é tratamento de dados pessoais, as hipóteses de responsabilidade civil em caso de uso não autorizado), bem como as bases legais para o tratamento dos dados pessoais (dentre elas o consentimento).
Pois, em 2019, surgiu o projeto de lei 3.843/2019, que visa alterar a Lei Eleitoral, dispondo sobre o uso de bases de dados pessoais para fins eleitorais. Dentre outras disposições, inclui os custos relativos à contratação de organizações ou agentes de tratamento de base de dados como despesas da campanha e, por conseguinte, a obrigação dos candidatos, partidos e coligações prestarem contas sobre esses valores.
Além disso, também prevê, no proposto artigo 32-A, que os candidatos deverão prestar contas “sobre a base de dados utilizadas para cadastro de endereços eletrônicos, bem como sobre o conteúdo disseminado para estes canais, conforme disciplinado do Art. 57-A ao Art. 57-J desta lei”.
Nesse rumo de ideias, o projeto de lei ainda autoriza a utilização de base de dados de cadastro de endereços eletrônicos cadastradas gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação, sob a condição de que tenha havido consentimento expresso e inequívoco pelo titular dos dados pessoais.
Em outras palavras, pretende-se restringir o uso de dados pessoais para fins eleitorais para uma única hipótese legal: o consentimento. Mas sem qualquer menção ou referência para a utilização da LGPD como fonte na interpretação da validade da autorização dada pelo titular dos dados pessoais.
Embora louvável a iniciativa – mesmo com as deficiências apontadas acima –, o texto do projeto de lei flerta proximamente com um indesejável controle sobre o conteúdo da propaganda eleitoral.
A visão do copo meio cheio, nesse contexto, é de que se busca um ambiente transparente, de igualdade e de equilíbrio nos pleitos eleitorais, com a necessária fiscalização do cumprimento das regras eleitorais, em especial na propaganda eleitoral na Internet, com o reconhecimento de que o destinatário da obrigação de prestação de contas deve ser sempre o candidato, partido ou coligação.
Outra iniciativa que pretende regular o comportamento da sociedade – e diretamente relacionado aos valores atuais – é o projeto de lei 2630/2020, de inciativa do Senador Alessandro Vieira, que visa criar a Lei Brasileira de Transparência, Liberdade e Responsabilidade na Internet, que trará regras para vedar determinadas práticas no âmbito das mídias sociais, como forma de extermínio da desinformação no Brasil.
Esse projeto de lei, recentemente aprovado no Senado Federal e atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, criava, em seu texto original, a obrigação, para as plataformas, de monitoramento ininterrupto da conduta e do conteúdo divulgado por seus usuários, assim como a sua responsabilização caso determinado conteúdo fosse denunciado e nada fizesse.
O texto que se encontra, neste momento, em debate visa coibir determinadas condutas, como a criação de contas inautênticas, a disseminação artificial de conteúdo e a veiculação de conteúdo não espontâneo sem a devida rotulagem, ou seja, sem a devida identificação de se tratar de conteúdo publicitário ou impulsionado.
Não nos esqueçamos que não há qualquer cidadão de bem que seja favorável à prática nociva da desinformação, independentemente de crença religiosa, partido político ou classe social ou econômica.
O que assombra, mais do que as próprias consequências danosas da desinformação, é a retomada de propostas de regulação das mídias sociais que foram, após intenso debate público e participativo, enterradas quando da discussão do Marco Civil da Internet, promulgado em 2014.
São propostas que objetivam impor aos provedores de redes sociais ou de serviços de mensageria privada a obrigação de fiscalizar a disseminação de fake news por seus usuários. O argumento? Se foram capazes de criar e oferecer soluções tecnológicas tão maravilhosas, devem também encontrar alternativas para a filtragem do conteúdo.
Ora, mas a ardilosidade estaria na criação e disponibilização de tecnologias que possibilitaram a ampliação do debate, a participação da sociedade e a livre manifestação do pensamento? Ou no comportamento humano, cujos valores sociais, éticos e morais permanecem os mesmos? O que mudou, de maneira muito simples, foi apenas o meio, a ferramenta pela qual os mesmos valores – ou a sua ausência – se manifestam na sociedade.
Se é verdade que precisamos regular a utilização das ferramentas tecnológicas, criando um ecossistema confiável e que, de fato, entregue ao cidadão informação útil, também deve ser verdadeira a rejeição a qualquer proposta que possa, ainda que de forma indireta, permitir o controle do conteúdo que não a posteriori, e com a mínima interferência, pelo Poder Judiciário.”