O nível de maturidade das organizações brasileiras quanto ao uso de dados não passa de 52% e, por isso, ficamos focados em indicadores do passado e sujeitos a sustos do tipo pandêmico; precisamos adotar “leading indicators”
Estávamos no começo de fevereiro de 2020 em Recife. Sem muitas variações, as conversas giravam em torno das preparações para o carnaval. Vai pro Galo? Já viu como ficou? E Olinda? Não perco os bonecos… Do outro lado do planeta, os chineses iniciavam um esforço hercúleo para construir hospitais, pois uma nova doença respiratória havia surgido: um vírus da família Corona, batizado de Sars-Cov-2, extremamente contagioso (assim como o carnaval), mas de suposta baixa letalidade (alguns diziam que proveniente das feiras livre, onde animais silvestres são comercializados para alimentação).
Como engenheiro de formação (fiz eletrônica), estava admirado – mais uma vez – com a capacidade de coordenação e realização daquele povo. No entanto, alguma coisa não parecia certa, não encaixava. Já leu “Blink”, de Gladwell? O pensar sem pensar… O que acontecia não coincidia com algum padrão mental meu… Até parecia incorreto. Por que tanto esforço para uma gripe cuja “letalidade é baixíssima”?! Temos tantas outras… Carnaval começou. A covid-19 se espalhou pela Europa. Provocava mortes e sofrimento na Itália, França, Espanha e Inglaterra. Chegou nos EUA. E em NYC contabilizou outros milhares de mortes… Vocês conhecem a história. Após dois meses, desembarcou no Brasil. Mas a despeito de todos os sinais e tempo que tivemos, nós também estávamos despreparados!
O que esta história conta não é exclusividade da gestão pública. Situações como essa são corriqueiras na vida dos negócios privados. Nem sempre em decisões que mudem o curso da vida ou causem a morte de pessoas, é claro, mas frequentemente em decisões que mudam o curso de vida ou causam a morte de empresas. Os casos recentes são incontáveis e vou repeti-los por mais que você já tenha lido a respeito. Será que a Kodak não viu as câmeras digitais aparecerem? Que a Blockbuster não viu a Netflix surgir? Ou que Motorola, Nokia e Blackberry ignoraram o iPhone? Que os taxistas não viram o Uber chegando? Certamente não!
Tomadas de decisão de alto risco fazem parte do nosso dia-a-dia. Mas, se retrocedermos no tempo para projetar o futuro, será que conseguiríamos tomar melhores decisões? Ou, melhor, existem sinais no presente que podem apontar o futuro? Tendo a dizer que quase sempre!
Os gestores, porém, estão mais bem preparados para olhar para o passado em busca de provas do que procurar indicações no presente para fazer previsões e decidir por ações que mudam o curso do futuro. Fica pior ainda se as ações que precisamos empreender, na incerteza, causam desconforto no presente, para evitar talvez um mal maior depois. Imagine o governador do seu Estado fechando os portos e aeroportos em fevereiro. O prefeito suspendendo o carnaval, fechando o comércio, obrigando o uso de máscaras e o isolamento social. Nada teria acontecido! (Ou as consequências seriam bem menos graves.)
E o que aconteceria com esses gestores? Eles provavelmente não seriam lembrados por nos ter salvado da pandemia, que não iríamos conhecer. Seriam lembrados por ter causado um prejuízo gigante ao Estado e à cidade. Tanto no setor público quanto no privado, os gestores estão acostumados a tomar decisões baseadas em dados históricos, dados sobre o que já aconteceu. Nunca sobre os que apontam o que pode acontecer. (Não que eu ache que os gestores tenha tomado suas decisões conscientemente, escolhendo entre as consequências possíveis.)
Em situações como a da pandemia, ou ante um risco de ruptura do negócio, a melhor decisão é tomada quando ainda não há certeza absoluta sobre o que está acontecendo. Dados passados não ajudam ou são inconclusivos e a janela de tempo para a ação é estreita. O tomador de decisões precisa avaliar possíveis cenários e as consequências de uma ação ou inação e agir.
Eis as quatro principais, sugeridas no livro The Art of High Stakes Decision Making: Tough Calls in a Speed Driven World, de J. Keith Murnighan e John C. Mowen:
1- Agir como se não existisse nenhum problema. Só que o problema existe: Perda de oportunidade, com consequências para uma ação tardia. Foco do trabalho é normalmente na redução de danos.
2- Agir como se nenhum problema existisse. E nenhum problema existe: Decisão acertada.
3- Agir como se um problema existisse. E o problema existe: Decisão acertada, atuação antecipada pode minimizar as consequências do problema.
4- Agir como se um problema existisse. Mas o problema não existe: Desperdício de recursos (e provável perda de reputação).
Assim como na administração pública, nos negócios privados os gestores também foram educados e são cobrados, na maioria das vezes, pelo resultado passado, pelo que já aconteceu. Na linguagem mais técnica, são medidos pelo que chamamos de _lagging indicators_, ou indicadores de prestação de conta. Os clássicos são receita, overhead, ebitda, turnover etc. São números que falam sobre o passado e que têm alguma utilidade futura apenas quando olhamos para séries históricas e sazonalidades.
Os _lagging indicators_ funcionam para ter um cheiro do futuro em mercados pouco dinâmicos. Mas são de quase nenhum valor na antecipação de rupturas ou de tendências que poderão impactar o negócio e que ensejem ações preventivas. Por exemplo, acompanhar o turnover não vai trazer os colaboradores que saíram de volta. Pior com o número de mortos pela covid-19, que infelizmente não vai ajudar a trazer ninguém de volta.
Já a satisfação dos colaboradores, e o número de infectados são _leading indicators_, e poderiam ajudar na escolha do cenário decisório, segundo uma matriz de Munighan e Mowen) e de uma ação apropriada (e antecipada) para causar o efeito ou resultado desejado.
Temos hoje muito mais dados (sobre qualquer coisa) do que tivemos em qualquer época da nossa história. Nossa vida digital permitiu-nos coletá-los praticamente sem custo e em abundância. Em maio de 2017, a revista inglesa The Economist estampava na capa uma imagem de plataformas de petróleo com a matéria “_The world’s most valuable resource is no longer oil, but data…_” Um reconhecimento à contribuição que os dados e de ferramentas para trabalhá-los deu a construção de verdadeiros impérios tecnológicos (Google, Microsoft, Apple, Facebook, IBM e Amazon). No entanto, apesar do enorme sucesso dessas empresas e do potencial que os dados podem trazer para a tomada de decisões futuras, assim como na pandemia, a maioria dos negócios ainda precisa aprender a extrair valor do novo óleo.
Segundo pesquisa realizada em 2019 pelo CESAR, Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife, com mais de 1.000 empresas sobre a transformação digital no Brasil, o nível de maturidade dos pesquisados quanto ao uso de dados nas organizações não passou de 52% quanto a geração de valor, predição e aderência a legislação.
Tem chão ainda! _Lagging_ ou _leading,_ as oportunidades são muitas! Fico com a fala de um executivo do iFood que conheci recentemente: “Dados libertam!”. E complemento, sim, os bons dados, os dados certos!
www.transformacao.cesar.org.br
Este texto contou com a contribuição de Anderson Santos, Beto Macedo, Gui Peixoto, Matheus Rangel e Paula Melo.