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Inovação

20 min de leitura

Repensando inovação e crescimento

Ao perseguirem desesperadamente ideias que promovam a ruptura dos mercados atuais, as empresas deixam de prestar atenção a iniciativas que podem levar a um crescimento mais alinhado com a sociedade da indústria 4.0

W. Chan Kim e Renée Mauborgne

29 de Maio

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Artigo Repensando inovação e crescimento

O anglicismo “disrupção” se tornou palavra de ordem no mundo dos negócios. Refere-se à inovação que cria um novo mercado ou modelo de negócio e, assim, tira do jogo os competidores já estabelecidos. Por exemplo: as fotos digitais, que todo mundo adora compartilhar, foram uma disrupção que derrubou a Kodak. Milhões de pessoas também se beneficiam da comodidade do Uber, mesmo que isso tenha “disruptado” os taxistas. 

Não surpreende, portanto, que muita gente acabe vendo a disrupção como sinônimo de inovação. Diversos artigos mostram como ter sucesso sendo um inovador disruptivo, e líderes são alertados para o risco de a disrupção estar à espreita na próxima esquina e aconselhados a ser disruptivos como única forma de sobreviverem e crescerem em seu setor de atividade e em sua empresa. 

Mas será que a disrupção é a única forma de inovar e crescer? Ou, mesmo, será que é a melhor forma? Nossas pesquisas e análises ao longo de três décadas indicam que a resposta a essas perguntas é não.

O fato é que o foco na disrupção leva as empresas a ignorar outro elemento de inovação e crescimento até mais importante. É o que chamamos de criação não disruptiva, que oferece novas perspectivas e evidencia o imenso potencial de abertura de novos mercados – sem destruição.

Como a destruição criativa virou praticamente um sinônimo de inovação

Tendo em conta que existe criação sem destruição, e que este tipo tem muito mais benefícios, por que a ideia custosa da inovação que destrói viralizou? Para responder a essa questão, precisamos revisitar a teoria do economista austríaco Joseph Schumpeter, responsável por colocar a destruição criativa no mapa. Na definição de Schumpeter, destruição criativa ocorre quando uma inovação cria um novo mercado que tira o lugar de uma tecnologia, produto ou serviço existentes. Isso, argumentou Schumpeter, é o que está na essência do crescimento econômico. Vários estudos sobre “disrupção” ecoam esse insight de Schumpeter e o mais conhecido deles é sobre a tecnologia disruptiva – que se desdobrou em inovação disruptiva.

A destruição criativa ocorre quando um produto (ou serviço ou tecnologia) superior destrói um produto-padrão. Já a inovação disruptiva sempre começa com a chegada de um produto inferior diferente numa ponta de um mercado –  como não ameaça o mainstream, os players tendem a ignorá-la. A disrupção mesmo ocorre quando esse produto cruza a fronteira do inferior para o superior e, ao fazê-lo, atrai clientes tradicionais, tirando o lugar das empresas até então líderes e criando novos mercados. 

O insight fundamental da inovação disruptiva é que, diferentemente do que sugere Schumpeter, o produto não precisa ser superior; ele atua como um cavalo de Troia, disfarçado em sua inferioridade inicial, não ameaçadora. Assim, as empresas estabelecidas ignoram novos entrantes até que seja tarde. 

Destruição criativa e inovação disruptiva são conceitos distintos, portanto. O que há de comum aos dois é seu foco no eventual deslocamento de players existentes por novos players, e a ideia de que a disrupção é uma fonte-chave de crescimento. Tais semelhanças acabaram gerando a confusão entre inovação e destruição.

ENTENDENDO A CRIAÇÃO NÃO DISRUPTIVA

Embora a definição seja nova, criações não disruptivas sempre fizeram parte do mundo dos negócios. Por exemplo: antes dos raios X, o que havia? Nenhum mercado preexistente, apenas cirurgiões que operavam sem saber o que encontrariam. E antes da aspirina? Fitoterápicos, na maioria feitos em casa a partir de receitas das avós. O Viagra, o post-it e o serviço de consultoria ambiental também são ótimos exemplos de criação não disruptiva, assim como, mais recentemente, os serviços online de encontros, o crowdfunding e os acessórios para smartphone. Em todos esses casos, o “bolo” a ser dividido aumentou sem que negócios ou mercados existentes precisassem ser destruídos. 

Como esses exemplos ilustram, quando observamos as coisas pela lente da criação não disruptiva, rapidamente percebemos que esse conceito está em tudo ao nosso redor. Basta ver a evolução histórica do North American Industry Classi­fi­cation Standard, lista de produtos industriais publicada pelo U.S. Census Bureau. Desde 1997, tem sido revisado várias vezes, para se manter no ritmo de criações, recriações e expansão da atividade industrial. Nas versões mais recentes do documento, embora a disrupção desempenhe um papel importante, categorias inteiramente novas também foram criadas por conta do surgimento de atividades e mercados totalmente novos e não disruptivos.  

ONDE ESTÃO OS PROBLEMAS

Em apenas nove anos, cerca de 75 milhões de pessoas passaram a usar os serviços da Uber. O sucesso da empresa, no entanto, deu-se às custas dos motoristas de táxi. Em Nova York, por exemplo, uma licença de táxi custava caro, mas era vista como sinônimo de aposentadoria tranquila. Depois da Uber, seu valor despencou de mais de US$ 1 milhão para algo perto de US$ 175 mil. Seis motoristas de táxi se suicidaram e os ganhos com a atividade caíram mais de 20%. 

A disrupção da fotografia digital teve um impacto profundo na cidade de Rochester, no estado de Nova York, onde ficava a sede da Kodak. Foram perdidos 55 mil empregos na cidade e isso acarretou perdas também para vendedores, varejistas, prestadores de serviços e até mesmo organizações sem fins lucrativos. 

A disrupção impulsiona o crescimento e cria valor significativo para o usuário final, mas impõe dores à sociedade. Traz necessariamente um trade-off. Sempre que a criação e a destruição de um mercado estão diretamente ligadas, o fechamento de empresas e a perda de empregos são subprodutos do processo. Já a criação não disruptiva quebra esse trade-off. Ela expande o “bolo” da economia e é uma abordagem de inovação com saldo positivo, em contraste com a característica de soma zero da disrupção.

A ascensão da quarta revolução industrial, com máquinas inteligentes ocupando muitas posições de trabalho destinadas aos seres humanos, torna ainda mais imperativo ir além do trade-off da disrupção, entre criação e destruição de mercados.  

Um estudo da University of Oxford, da Ingla­terra, prevê que, em 20 anos, metades dos empregos nos Estados Unidos correrão o risco de serem eliminados pela automação. Para absorver todo esse capital humano, novas posições precisarão ser criadas – e não o poderão ser às custas de outros empregos. A criação não disruptiva, porém, pode desempenhar um papel-chave nessa evolução. Diferentemente do que acontece com a disrupção, ela permite que as empresas busquem o crescimento sem impor custos às comunidades.  

VANTAGENS DO NOVO OLHAR

Atualmente, muitas empresas concentram esforços no que pode levá-las a romper com os mercados existentes. Isso estreita sua visão e as cega para o potencial das inovações não disruptivas capazes de criar novos mercados. Tanto para as companhias estabelecidas como para as startups, a abordagem não disruptiva traz duas vantagens:

Faz com que a execução seja emocional e politicamente mais fácil. Todas as empresas querem inovar. Mas as companhias tradicionais enfrentam grandes obstáculos quando pegam o caminho da disrupção, porque, muitas vezes, isso significa destruir seu próprio negócio. O medo de perder o emprego ou status dentro da organização pode fazer os gestores sabotarem os projetos disruptivos, por exemplo. 

Muitos esquecem que foi a Kodak que criou a primeira câmera digital. E que, como essa inovação prejudicaria seus negócios de filmes fotográficos, a empresa se viu diante de conflitos emocionais e políticos intransponíveis, o que evitou que a mudança se concretizasse. 

A criação não disruptiva abre uma rota menos ameaçadora até a inovação. Ela não ameaça diretamente a ordem vigente ou pessoas que ganham a vida com base no negócio existente. Ao basear seus esforços em um contexto mais amplo, que envolve tanto a inovação disruptiva como a criação não disruptiva, as empresas tradicionais podem fazer uma gestão mais efetiva da política organizacional e da ansiedade das pessoas. 

Contrapõe-se à disrupção. A criação não disruptiva pode ser uma forma eficiente de responder à disrupção que surge no mercado. Quando as viagens de navio foram desbancadas pelos aviões, por exemplo, a companhia de transporte marítimo Cunard Line não conseguiu enxergar como competir com a velocidade e a conveniência das viagens aéreas. Depois de duas tentativas malsucedidas de entrar no novo setor, a Cunard deu uma guinada não disruptiva de mercado: lançou um serviço de férias de luxo no mar. 

Ao converter a viagem marítima, até então um simples meio de transporte, em uma experiência de férias, a Cunard abriu caminho para o surgimento do setor de cruzeiros de turismo, 40 anos atrás. Assim, deu origem a um setor de US$ 120 bilhões de faturamento anual, que emprega mais de um milhão de pessoas no mundo. 

NOVOS MODELOS PARA CRESCER

Cada abordagem de inovação envolve um equilíbrio diferente entre inovação disruptiva e criação não disruptiva para se alcançar o crescimento desejado. Listamos algumas a seguir:

Evitar o conflito com os grandes. Quando as empresas, especialmente as startups, preparam-se para uma ação disruptiva em relação a um mercado existente, geralmente precisam enfrentar as companhias líderes do setor e contar com mais recursos financeiros de marketing. 

Embora a imprensa sempre faça parecer que Davi vence Golias, a verdade é que o gigante se sai vitorioso com frequência muito maior. Você realmente quer ficar cara a cara com líderes bem-preparados? Talvez. Essa é uma forma de fazer as coisas. Mas você não precisa necessariamente optar por esse caminho. Oportunidades de criação não disruptivas emergem de modo tão significativo quanto, e todas as empresas – estabelecidas e startups – seriam pouco sábias se as ignorassem.

Evitar conflitos com grupos sociais e agências governamentais. Quando os custos sociais acarretados pela disrupção se tornam muito grandes, grupos sociais e agências governamentais frequentemente passam a exercer pressão contra a inovação – por exemplo, impondo-lhe tributos. Lembre como em diversas cidades há tentativas de impor regulamentações e penalidades à Uber. 

Uma vez que a criação não disruptiva não elimina negócios existentes e nem afeta negativamente a vida das pessoas, acarreta custos mínimos para a sociedade e possibilita que as empresas também não precisem lidar com essas questões.

VISÃO EXPANDIDA

Vivemos o momento certo para ter uma visão mais ampla sobre inovação. Precisamos ter um modelo que contemple tanto a disrupção como a criação não disruptiva, uma vez que são mecanismos complementares de crescimento.

Que estratégias de inovação nos orientam para a disrupção e quais indicam a criação não disruptiva? Nossos estudos sugerem que a resposta depende do tipo de questão que a empresas querem enfrentar quando lançam suas estratégias de inovação.

Há três formas básicas de buscar a inovação. 

As empresas podem: 

• Oferecer uma solução não pensada antes, que represente uma ruptura, para um problema já existente no setor.

• Identificar e resolver um problema novo ou explorar uma nova oportunidade.

• Redefinir um problema já existente no setor e resolvê-lo. 

Agora, vamos avaliar como cada uma dessas abordagens leva a um equilíbrio diferente entre a inovação disruptiva e não disruptiva: 

Oferecer uma solução não pensada antes, que represente uma ruptura, para um problema já existente no setor. Essa abordagem atinge diretamente as empresas já estabelecidas. No caso da indústria fonográfica, por exemplo, o CD foi uma solução disruptiva em relação aos LPs e às fitas cassete. O problema era como melhor armazenar e reproduzir gravações de músicas. 

Na comparação com o que havia antes, o CD oferecia o “som perfeito para sempre” e a comodidade de passar de uma faixa para outra sem ruídos ou interrupções. O CD era uma solução tão boa que rapidamente substituiu as demais mídias.

Mas, então, a Apple lançou seu MP3 player, 

o iPod, oferecendo uma nova solução disruptiva para o problema de como armazenar e reproduzir música. Novamente as pessoas correram para substituir a antiga tecnologia pela nova. Mais recentemente, o mesmo papel passou a ser desempenhado pelos smartphones. 

Em cada um desses casos, o produto existente – e geralmente o respectivo negócio – tem sido substituído por meio da disrupção. Portanto, o principal efeito do desenvolvimento de uma solução de ruptura para um problema já existente de determinado segmento de atividade é a disrupção e a substituição das opções antigas pela novas. Dessa maneira, os mercados existentes são recriados a partir do que é fundamental, gerando novas demandas e novo crescimento.

Identificar e resolver um problema novo ou explorar uma nova oportunidade. Na outra extremidade, encontramos a criação não disruptiva. Empresas que identificam e resolvem novos problemas, ou exploram novas oportunidades, criam mercados novos para além das fronteiras de seu segmento, em vez de se “alimentarem” das bordas e até mesmo do centro dos mercados existentes.

O Viagra identificou e resolveu um problema que não havia sido enfrentado antes, capturando toda uma nova demanda. O programa de TV Vila Sésamo, muito antes, criou uma nova oportunidade e abriu caminho para programas que combinam educação e entretenimento para crianças, sem substituir as escolas infantis ou as bibliotecas. 

Em vez de buscar respostas melhores para problemas conhecidos, essa abordagem leva as empresas a fazer perguntas: há problemas novinhos em folha que possamos solucionar? Há novas oportunidades a desbravar? 

Quando mudam as questões, também mudam os caminhos vislumbrados para criar novos mercados e crescimento. 

Vejamos o caso de uma criação não disruptiva recente, de duas empresas fundadas por profissionais graduados no Insead. Mais e mais estudantes de todo o mundo estudam fora de seus países. Porém, na maioria dos países que visitam, eles têm dificuldade em obter financiamento para seus estudos sem um fiador local com um sólido histórico de crédito. Muitos, então, desistem do sonho de estudar fora.

A Prodigy Finance, no Reino Unido, e a MPower Financing, nos Estados Unidos, resolveram enfrentar esse problema, que já durava muito tempo e nunca tinha sido abordado. Criaram um novo modelo em que os estudantes não precisariam mais de um fiador local para conseguir financiamento, pois passavam a ser avaliados por seu próprio mérito – o desempenho acadêmico e o potencial de ganhos futuros, quando concluíssem os estudos. 

Ao solucionar um problema que nunca tinha sido atacado, a Prodigy e a MPower passa­ram a oferecer a muitos estudantes os recursos para alcançar seus sonhos e, ao mesmo tempo, criaram um novo mercado. A Prodigy já concedeu empréstimos num total de US$ 690 milhões para estudantes de 130 países, e recentemente levantou US$ 1 bilhão em investimentos.

Redefinir uma problema já existente no setor e resolvê-lo. As estratégias de inovação que adotam essa abordagem levam tanto à inovação disruptiva como à criação não disruptiva. A redefinição do problema possibilita a uma organização questionar pressupostos antigos e mudar as fronteiras do setor de atividade de maneiras criativas.

Vejamos o caso do Wii da Nintendo. Ele redefiniu um problema antigo do setor de consoles, relacionado à qualidade gráfica dos vídeos. Foi de como ter o vídeo mais rápido e de maior resolução para como disponibilizar um console fácil de usar que combinasse o movimento físico dos esportes com jogos voltados para toda a família. 

Os games do Wii eram fáceis de entender e de jogar, e eram operados por movimento, não só pelo apertar de botões. Desse modo, o Wii atraiu uma fatia da demanda pelos consoles de videogames existentes, criando um elemento de disrupção, mas também expandiu o setor de modo não disruptivo, alcançando um contingente de pessoas – de crianças a idosos – que nunca havia jogado videogames. 

O Cirque du Soleil fez algo semelhante ao combinar o melhor do circo com o melhor do teatro e da dança. Criou assim um novo mercado no espaço entre essas duas formas de entretenimento, atraindo parte da demanda de cada uma delas, mas também aumentando o mercado circense com um novo público – incluindo adultos sem filhos que provavelmente não frequentariam um circo tradicional.  

Fica evidente, portanto, que oferecer uma solução disruptiva impulsiona a criação disruptiva, enquanto explorar um problema novo leva à criação não disruptiva. Redefinir e resolver uma questão preexistente envolve elementos de criação disruptiva e não disruptiva.

No Brasil, Não gostamos de destruir

Por Valter Pieracciani

Enquanto estudiosos concentram-se inutilmente na discussão sobre onde se situa a fronteira entre a inovação incremental e a radical, discorrendo na areia movediça da conceituação da inovação, W. Chan Kim e R. Mauborgne rompem a abordagem biunívoca e descortinam a ideia de que a inovação radical não obrigatoriamente tem de destruir empregos e negócios. Fazem isso com a mesma objetividade e brilhantismo com que criaram o conceito de oceano azul – ou seja, dão forma a algo que sabíamos, mas não explorávamos o bastante. 

Tomar consciência dessa outra perspectiva no campo da inovação é especialmente importante para os inovadores brasileiros e para o Brasil. Vivemos um momento paradoxal: ao mesmo tempo em que ocorre uma suposta aceleração do movimento da inovação, a atitude inovadora é vista às vezes como o bicho-papão que ameaça de modo concreto o emprego, liquida estabelecimentos e destrói negócios. No caso do varejo, por exemplo, entre os anos de 2015 e 2017 cerca de 223 mil pontos de venda fecharam as portas, segundo estudo da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Muitos atribuíram os três anos de resultados ruins ao comércio eletrônico e passaram a ver as inovações tecnológicas como a encarnação do mal, não dando a importância necessária às profundas mudanças socioculturais que vivemos e à própria recessão brasileira. A embasar essa tese de que a tecnologia pode ser perturbadora, inclusive há a história de um dos maiores inovadores de toda a história da humanidade, o brasileiro Alberto Santos Dumont, que, conforme se crê, suicidou-se após ver sua criação usada como arma para destruição.

O Brasil está à frente de muitos países do mundo no que se refere a novos problemas a resolver e oportunidades a aproveitar, em especial na base da pirâmide. A PagSeguro, bilionária empresa brasileira, mudou a realidade dos pequenos comerciantes que sonhavam com o dinheiro de plástico, mas não tinham como arcar com o aluguel das máquinas, sem com isso destruir o mercado dos meios de pagamentos. A criação do tanquinho no Brasil não canibalizou os negócios da linha branca, e sim deu a muitos a possibilidade de lavar roupas com mais conforto do que apenas utilizando o tanque tradicional. A minimáquina Brastemp para roupas íntimas contemplou um hábito da 

mulher brasileira sem roubar mercados das máquinas grandes.

O conceito de criação não disruptiva é especialmente caro a consultores com preocupação social e propósito, que não apreciam o sabor amargo da destruição. Também é valioso para governos conscientes da necessidade de prover políticas públicas e incentivos para a inovação, porém igualmente preocupados em assegurar o emprego e o desenvolvimento social. Pode-se, ao inovar, ter foco nos efeitos que a inovação acabará causando na sociedade e no mundo dos negócios. Em seu artigo, Kim e Mauborgne chamam a atenção para o fato de que há espaço para fomentar e realizar uma inovação radical não disruptiva – sim, essas palavras podem ser usadas juntas – que gere prosperidade e aproveite as mudanças socioculturais para produzir riqueza e empregos, e ocupar novos espaços sem destruir os atuais.

É possível que o economista Joseph Schumpeter (1883-1950), consi­derado talvez o pai da inovação, se decepcionasse ao ver cair por terra sua verdade absoluta de destruição criativa. Pablo Picasso também, pois afirmava que cada uma de suas obras destruía as anteriores, mas a verdade boa é que podemos produzir inovação em um contexto de abundância no qual ter uma maior fatia de um bolo não significa necessariamente que sobrará menos para os demais. Afinal, risco, destruição e incertezas nunca fizeram parte do DNA do brasileiro e, quem sabe, olhando sob esse ângulo, consigamos promover a inovação no Brasil de maneira menos controversa e mais rápida. Precisamos realmente disso.

*Valter Pieracciani é fundador e CEO da Pieracciani Consultoria em Inovação, que fez o case Moderninha, da PagSeguro, entre outros.

IDENTIFICANDO OPORTUNIDADES PARA INOVAR

O que faz alguns líderes serem eficientes na identificação de novos problemas a resolver ou de novas oportunidades a explorar? Nossas pesquisas indicam que eles enxergam a inovação de um modo distinto dos demais. E seguem fundamentalmente três passos:

1. Eles tendem a analisar profundamente questões urgentes, mas negligenciadas, em pauta no mundo, em seu setor de atividade ou mesmo relacionadas com sua vocação.

Essa preocupação intensa é um indicador relevante de que a questão tem importância central, e o fato de as pessoas e as organizações estarem incomodadas sugere uma porta de entrada para um problema ainda não enfrentado ou para uma nova oportunidade. 

Muhammad Yunus, fundador do Grameen Bank, desejava, de maneira apaixonada, reduzir a pobreza em seu país, Bangladesh. Ele observou como as pessoas mais pobres realmente aspiravam melhorar de vida, mas não tinham o mínimo para fazer coisas que pudessem vender, por exemplo. De modo semelhante, os fundadores da Prodigy e da MPower, das quais já falamos, enxergaram como obstáculos desnecessários ao financiamento estavam impedindo que estudantes completassem seus cursos no exterior. 

Faça-se esta pergunta simples, mas profunda: com que questão urgente, mas negligenciada, você se preocupa profundamente, e é enfrentada pelas pessoas e organizações em seu setor de atividade ou em sua área de vocação?

2. Eles pensam em quais organizações, ou segmentos, normalmente lidariam com o problema ou aproveitariam a oportunidade, e descobrem  por que não fizeram isso.

Entender a razão de uma questão ser negligenciada oferece pistas sobre o que sua inovação deve “atacar” para abrir um mercado não disruptivo. 

À medida que buscou entender porque as pessoas pobres de áreas rurais não conseguiam empreender, Yunus observou que o desafio central não era a preguiça ou o desperdício de esforço, mas a falta de acesso a capital. Isso se configurou um problema que pertenceria aos bancos, que tratavam as populações pobres das áreas carentes como “não consumidores”, uma vez que elas não possuíam renda estável. 

Por um caminho semelhante, os fundadores da Prodigy e da MPower descobriram que os bancos não viam os estudantes estrangeiros como potenciais clientes. Tradicionalmente, o crédito tem sido algo local, que não cruza fronteiras. 

3. Eles buscam novas tecnologias, plataformas e/ou metodologias que possibilitem resolver o problema identificado ou explorar a nova oportunidade com alto valor e baixo custo.

A Prodigy e a MPower, descobriram, por exemplo, que tecnologias de análises de dados recentes poderiam levar a formas inéditas de avaliar crédito. Com essas tecnologias, ficou mais fácil medir a demanda pelo futuro campo de trabalho do estudante, conferir valor a diferentes graduações acadêmicas e avaliar o potencial de um recém-formado.

Yunus também criou um novo método para determinar quando o crédito vale a pena, baseando os microempréstimos concedidos pelo Grameen Bank nos estreitos vínculos sociais das comunidades pobres de áreas rurais. Entre esses vínculos, destacam-se o parentesco e o poder de pressão do grupo. 

A mensagem é: pense em como pode utilizar sua criatividade e os avanços tecnológicos mais recentes para solucionar problemas ou explorar oportunidades que antes eram vistas como algo fora do alcance, quando considerados os meios e métodos convencionais. 

ÁREAS PROPENSAS À CRIAÇÃO NÃO DISRUPTIVA

Nossas pesquisas revelaram numerosas áreas que já se encontram maduras para a criação não disruptiva, com base nos três espaços de oportunidades descritos aqui. Muitas se encaixam no que chamamos de economia social e humana. Incluem bem-estar mental e emocional, cibersegurança, proteção da privacidade, capacitação de pessoas em risco de serem substituídas por máquinas inteligentes e atendimento às necessidades daqueles que se encontram na base da pirâmide financeira.

À medida que a população mundial continua a crescer, em um ambiente cada vez mais industrializado, a demanda energética, as emissões de dióxido de carbono (CO2) e a geração de lixo propõem vários tipos de novos problemas. Essas questões também oferecem oportunidades não disruptivas de criar um mundo mais sustentável no presente e para nossos filhos. As mudanças demográficas, como o envelhecimento da população mundial e a crescente urbanização, igualmente trazem desafios e oportunidades. Como gerar engajamento intelectual e social com aqueles que estão fora de nosso círculo de relaciona­mentos? Que tipo de cuidados podem ajudar as pessoas a viver mais, com saúde e energia? 

À medida que as inovações continuam a se traduzir em novos hábitos, preferências e conhecimentos, é esperado que novas necessidades, novos problemas e novas oportunidades surjam – continuamente. 

As empresas, os governos e todas as organizações vêm contando demais com a disrupção para chegar às inovações de que precisam a fim de impulsionar os avanços da sociedade. Agora é hora de construir políticas e oferecer incentivos ao desenvolvimento de criações não disruptivas, capazes de beneficiar todos os stakeholders que compõem a sociedade. 

Quando nos voltamos aos muitos desafios que nosso planeta e as pessoas enfrentam, fica claro que são necessárias novas soluções estratégicas. Um modelo que coloque no mesmo plano as iniciativas não disruptivas e a disrupção possibilitará desencadear uma nova onda de crescimento e um alinhamento mais adequado entre os objetivos das empresas e da sociedade. Essa visão expandida nos dá a chance de realmente melhorar o mundo. Precisamos aproveitar.

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Autoria

W. Chan Kim e Renée Mauborgne

São professores de estratégia do Insead e codiretores do Blue Ocean Strategy Institute. São autores dos best-sellers Estratégia do Oceano Azul e Blue Ocean Shift: beyond competing.

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