Como a definição de propriedade e o controle efetivo do paciente sobre os seus dados vão mudar a dinâmica e transformar o ecossistema da saúde
Quem nunca passou pela experiência de ter que ir ao médico e levar uma pilha de exames em filmes e papéis? Ou mesmo ter que acessar diversas plataformas para conseguir obter seu histórico médico, ainda que incompleto ou de difícil interpretação?
A realidade dos pacientes quando se trata de dados de saúde é de uma grande descentralização da informação. Isso causa assimetria entre os diversos atores do ecossistema, aumenta a ineficiência, eleva os custos e comprime as margens nas pontas mais fracas da cadeia.
Mais do que isso, o paciente não tem verdadeiro controle sobre os seus dados – nem quanto à gestão do seu uso, nem do ponto de vista do seu valor. Sim, dados de saúde têm grande valor. Mas a dificuldade de acessar, combinar e disponibilizá-los faz com que hoje os pacientes não consigam obter vantagens para os seus atendimentos de saúde.
Nesse contexto, começamos a vislumbrar o surgimento do “open health” como um modelo aberto, cujo conjunto de regras e padrões tem como objetivo principal aumentar a segurança, eficiência e agilidade no compartilhamento e nas transações de dados entre instituições de saúde, profissionais do setor e demais empresas que participam do ciclo de cuidados de um paciente. O “open health” não é necessariamente o início dessa revolução, muito menos o fim. Trata-se de um catalisador do processo de transformação e da mudança de paradigma pela qual o mundo está passando.
De acordo com o Código Civil, a propriedade é o direito que confere ao seu titular os poderes de usar, gozar e dispor da coisa, assim como de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Quando se pensa em propriedade no contexto dos dados de saúde, existem obstáculos para que o titular – no caso, o paciente – consiga de fato usar e dispor os seus dados e especialmente reavê-los. São eles:
Os dados dos pacientes estão espalhados entre os diversos médicos, laboratórios, hospitais, farmácias e até mesmo entre os operadores e planos de saúde que fazem parte da sua rede de cuidados.
Ainda existem atores e procedimentos que atuam de forma analógica, sendo necessária uma migração para o digital. Essa migração, que muitos chamam de “transformação digital”, leva tempo e requer não só investimentos em tecnologia como também uma adaptação cultural e processual por parte dos profissionais de saúde envolvidos.
Trata-se principalmente da capacidade técnica de combinação. Os esquemas de registro, o significado dos atributos, as nomenclaturas, os modelos e as métricas variam de acordo com os sistemas, processos e equipamentos. Para uma efetiva utilização, é preciso que haja uma padronização por meio de uma ontologia própria da rede de atenção à saúde. No Brasil, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) é um programa do governo federal criado para tratar dessa interoperabilidade.
Uma vez superados esses e outros obstáculos, é possível se falar na possibilidade de devolução efetiva da propriedade dos dados ao paciente. O que faltaria, então? Um ambiente e uma aplicação na qual o titular pudesse receber, acessar, analisar, utilizar e compartilhar seus dados com quem fosse do interesse dele, tendo assim total controle. Isso já está sendo viabilizado a partir da combinação de novas tecnologias que entregam ao paciente uma carteira de dados.
O interesse do paciente em ter a propriedade dos seus dados vai da comodidade de ter todo o seu histórico em suas mãos. Ele também passa pelo aumento da confiança no diagnóstico médico, pela possibilidade de prevenção de doenças e condições adversas e vai até a chance de geração de renda.
Dentre todas as dimensões humanas que geram dados (identidade, comportamento, finanças, crédito, consumo), a saúde é uma das que têm mais valor. Esse alto potencial vem do grande volume de dados gerados nesse segmento, do enorme potencial de combinação e da geração de informação para atender a casos de usos diversos, além do contexto envolvendo a sensibilidade e do quanto cada conjunto de dados é único.
Há interesse e potencial de remuneração do paciente pelo seu histórico médico, pelo consumo de medicamentos, pela presença de doenças crônicas ou até mesmo pelos seus dados genéticos. As possibilidades são muitas e tendem a crescer quando as entidades do ecossistema entenderem que será possível acessar esse tipo de informação respeitando completamente os direitos do titular.
Um aspecto relevante com relação ao valor dos dados de saúde é que existe uma tendência compensatória. Quanto mais grave e rara for a condição do paciente, mais os seus dados valem. Há registros médicos de pacientes com doenças raras sendo comercializados por mais de US$ 10 mil, com o objetivo de pesquisas e desenvolvimento de drogas e medicamentos.
A discussão sobre a abertura dos dados de saúde e sua respectiva implantação vem ganhando corpo em diversos lugares do mundo. No Brasil, o tema ganhou maior relevância em 2022, com a implementação do “open banking” e do “open finance”.
Quando se coloca o indivíduo no centro das atenções, percebe-se o quanto essa abertura trará impactos positivos, uma vez que a transparência, a acessibilidade e a interoperabilidade têm como objetivo principal reduzir as assimetrias de informação. E não restam dúvidas de que é o paciente quem mais sofre com elas.
Ainda há incertezas sobre o formato específico de funcionamento do “open health” no Brasil, mas suas premissas constituem passo fundamental para que a revolução da propriedade e da geração de renda com dados aconteça. Torçamos para que ocorra em breve, para beneficiar não só os pacientes, mas todos os envolvidos no ecossistema da saúde.
Artigo escrito em parceria com Bruno Aracaty, diretor de operações da DrumWave, empresa focada em propriedade e monetização de dados.“