Poucas figuras mitológicas exercem maior influência no inconsciente empreendedor do que o sujeito brilhante que fundou sua empresa bilionária na garagem de casa. Convenhamos, é uma narrativa perfeita para a capa da Forbes: o gênio incompreendido, munido apenas de um computador velho e doses cavalares de cafeína, desafiando gigantes e, anos depois, tornando-se ele próprio um. Steve Jobs, Walt Disney, Jeff Bezos – todos supostamente vindos do nada para construir impérios.
Embora o mito da garagem seja menos romântico na prática do que é na propaganda, o interesse das pessoas por histórias desse tipo revela muito sobre aquilo em que queremos acreditar. Afinal, essas histórias materializam a globalização do sonho americano, reforçam conceitos meritocráticos cada vez mais valorizados na cultura do desempenho e alimentam a jornada do herói que, depois, vira livro de superação.
Como toda fábula, o mito da garagem cumpre uma função cultural. No entanto, como algumas fábulas fazem, ele poderia ter contado sua história principal e aproveitado para iluminar outro fato útil, porém menos evidente ao fundo. No “estágio de garagem”, muitas das futuras grandes empresas estavam resolvendo problemas incrivelmente específicos – e, muitas vezes, banais. Prestar atenção nisso, eu acredito, nos faria criar empresas mais sustentáveis no mundo real.A Netflix, antes de mudar para sempre o entretenimento e conseguir a proeza de levar Emilia Perez a ter 13 indicações ao Oscar (como isso ocorreu, precisamos admitir, é um mistério maior do que a própria trama do filme), uma locadora que queria evitar multas por atraso. O YouTube foi criado porque um grupo de amigos queria um lugar na internet para divulgar vídeos amadores que pudessem ser assistidos com facilidade. A Amazon, antes de se tornar o colosso que vende de filmes a botes infláveis, era apenas uma livraria online. Curiosamente, nenhuma das grandes empresas do nosso imaginário iniciou suas atividades tentando ser o próximo grande império digital, ou pelo menos não era isso que norteava as decisões imediatas de negócio nos primeiros momentos. Todos esses grandes players eram negócios modestos que souberam enxergar oportunidades reais – e, acima de tudo, evoluir com essas oportunidades.
Jeff Bezos no primeiro escritório da Amazon em 1994 – um começo modesto que chama mais atenção que a própria história (Fonte: Oficial Chay)
Atualmente, muitos empreendedores que imaginam novos produtos digitais não conseguem ter o mesmo poder de foco das grandes empresas que eles próprios têm como modelo, e isso ocorre por uma série de motivos.
Um dos motivos é a falsa impressão de simplicidade que a tecnologia digital transmite aos seus usuários. Quanto mais integrados estamos à tecnologia, menos percebemos o quão complexa ela é e quanta transpiração é necessária para que ela se construa em camadas ao longo do tempo. Criar um perfil no Facebook ou um canal no YouTube leva apenas alguns minutos, o que faz parecer que qualquer iniciativa digital pode ser construída no mesmo ritmo – e isso ignora o fato de que tanto o Facebook quanto o YouTube, enquanto plataformas, foram construídos ao longo de muitos anos de trabalho. O que ocorre na prática é que os projetos são iniciados com muito entusiasmo e vão perdendo o fôlego à medida que tudo se revela mais complexo do que se previa no calor da emoção. Se com motivação já é difícil, com desânimo fazer a roda girar se torna praticamente impossível.
Outro motivo que trava novos negócios com DNA digital é que muitos empreendedores sonham em ser “disruptivos”, mas a presença dos grandes gurus da inovação na mídia não cansa de oferecer receitas prontas sobre como inovar e se dar bem, o que é um contrassenso, já que dificilmente alguém vai romper com algo seguindo a receita de alguém já estabelecido no mercado.
Fora isso, a presença das tecnologias atuais no cotidiano também coloniza o pensamento. Quando percebemos, as soluções tecnológicas que queriam “romper com as lógicas do mercado” se tornaram apenas réplicas do que já existia: pequenos Facebooks, YouTubes, Netflixes e WhatsApps operando com menos recursos e menor penetração de mercado. A criação de novas ideias parece cada vez mais depender da capacidade de aprender a pensar de novo, ignorando o barulho que nos obriga a ganhar um milhão de dólares amanhã, pois ele sonega os processos necessários para crescer com solidez.
Como gerente de um time de tecnologia, costumeiramente sou contatado por pessoas bem intencionadas que querem colocar um produto digital de pé. Escutando a explicação de como funcionaria esse produto, normalmente vejo valor e utilidade no que é descrito. Logo em seguida, a pessoa bem intencionada cerca a ideia principal por outros 75 recursos que fazem sumir a função que parecia excelente.
Em meio ao chat em tempo real copiado do YouTube, o recurso de interação copiado do Facebook, a função de colecionar copiada do Pinterest e o botão de follow copiado do Twitter, o que poderia ser um projeto promissor rapidamente se torna apenas mais um sistema cheio de funções quase legais que levará anos para ficar pronto e consumirá os recursos escassos de alguém sem nunca conquistar usuários suficientes para pagar a conta.
Quando estava realizando a pesquisa que resultaria em minha dissertação de mestrado, em 2018, conheci o site Justia Patents, um diretório online que cataloga patentes de empresas diversas. Na época, o site já mostrava 120 registros em nome de “Spotify AB”, a corporação por trás do aplicativo de música mais usado do planeta. Muitas das patentes ali registradas correspondiam a diferentes recursos que o Spotify foi incorporando ao longo do tempo, tomando recursos “emprestados” de outros softwares, oficializando gambiarras, propondo novas funções que nunca caíram no gosto popular e testando ferramentas que depois dariam origem a coisas bem interessantes.
Não por acaso, a primeira das patentes registradas pela administradora do aplicativo, em julho de 2007 (“streaming de conteúdo multimídia peer-to-peer”), dava suporte àquela que até hoje consiste na atividade principal do Spotify: a reprodução básica de fonogramas. Todas as outras patentes e recursos seguintes foram criados e posicionados ao redor dessa função inicial, numa tentativa de oferecer tal atividade principal apoiada por recursos auxiliares. Um dos aplicativos que mais cresceu na era do streaming não via na miscelânea de recursos um fator decisivo na conquista de usuários; ele apostava em um recurso principal firme e bem testado, equipado ao longo do tempo por inovações.
Quase todas as ideias hoje tidas como geniais um dia foram pedregulhos que precisaram ser lapidados ao longo do tempo com oportunismo e capacidade de adaptação. As empresas fundadas por essas ideias, por sua vez, começaram pequenas ou incubadas em departamentos de outras empresas maiores, resolveram um problema específico e, depois disso, ficaram atentas aos sinais de mudança.
Quando percebeu que a internet estava se tornando um espaço propício para vendas de tudo, a Amazon ampliou seu catálogo. Quando a Netflix notou que o streaming poderia substituir os DVDs, mudou seu modelo de negócios, utilizando a expertise que tinha, e então viu sua base de usuários crescer exponencialmente muito antes de a companhia lançar sua primeira produção audiovisual original.
É claro que olhar para pequenos problemas do cotidiano é menos empolgante do que trabalhar para criar o “novo TikTok”. Mas parece inevitável notar que, para “mudar o mundo” (leia-se: faturar milhões e comprar uma casa em Noronha), é necessário antes resolver algum problema simples. E a realidade está repleta de problemas a serem resolvidos, assim como esteve no passado, quando o mercado parecia saturado, e alguma nova ideia mostrou o contrário.
Quanto mais ideias grandiosas surgem no mercado, mais necessário se torna pensar de forma simples. Em vez de buscar a ideia genial, por que não apostar em uma ideia eficiente, com espaço para evoluir? E, depois, por que não aplicar testes, observação, ajustes e lidar com tudo isso com pouca (ou quase nenhuma) vaidade? E, indo além, por que não tentar iniciar ou articular uma boa rede de contatos, se isso estiver ao alcance? Talvez essa rede leve ao estabelecimento de parcerias importantes no futuro. Ao fim, se isso gerar um bilhão, ótimo. Se resultar em um faturamento decente e uma vida confortável, ótimo também. Entender que o bilionismo é uma condição exclusiva e que não há como muitos serem bilionários ao mesmo tempo – por uma questão matemática – é parte do jogo de trazer mais realismo ao mercado da inovação.
E, sobre o mito da garagem e suas problemáticas historiográficas, deixemos para um próximo papo. Talvez o mito não precise deixar de existir como lenda, desde que, como toda boa lenda, possa ser ouvida com atenção, resultando em ensinamentos que vão além do óbvio.
O artigo foi produzido por Carlos Viegas, mestre em comunicação e designer de software no Meeg, estúdio de tecnologia por trás de algumas soluções digitais de empresas como Nestlé, Tickets For Fun e Santander.