Todos nós gostaríamos de responder “sim” à pergunta acima. A realidade é que implantar uma cultura de meritocracia em uma empresa é um processo de aprimoramento contínuo cheio de obstáculos
Meritocracia surgiu com Platão, em A República (aprox. 370 a.C.). Ele imaginou uma “elite intelectual” eleita (isto é, não hereditária) no comando político. A China, no século 5 d.C., já recrutava funcionários públicos por concurso. Nos séculos 12 e 13, Veneza, comandada por um líder eleito assessorado por um conselho de anciãos, transformou um pântano fedorento numa cidade que comandou o (então) mundo.
No início dos anos 1980, a dupla Reagan/Thatcher, ao promulgar a fé no poder dos mercados de trazer para a sociedade as melhores soluções, reinventaram a meritocracia, agora com um sotaque de mercado: se você é rico, é porque merece; e se é pobre, é porque também merece. O bordão de Reagan “você merece!” foi posteriormente incorporado por Blair, Clinton e Obama. De lá para cá, essa meritocracia perdeu a aura de solução milagrosa: Wooldridge (citado abaixo) situa o auge desse descontentamento na crise dos mercados financeiros de 2008-2009, e os salvamentos bilionários de empresas e bancos (“too big to fail” tem forte vínculo de DNA com esta meritocracia).
A meritocracia do modelo Reagan/Thatcher — que pela sua crença de que as forças de mercado tudo resolverão soa estranha para nós brasileiros — só serve para eternizar a arrogância de quem teve formação privilegiada e a humilhação de quem foi excluído. E a empresa que aderir a este tipo de meritocracia muito provavelmente acabará sendo uma empresa onde:
– Não se consegue implantar programas eficazes de diversidade e inclusão.- Se privilegia o resultado individual sobre o trabalho em equipe.- Pessoas se apropriam de conquistas de pares e subordinados na hora de receber crédito.- Não sabe o que é aprender com seus erros.- Algumas pessoas fazem um trabalho honestíssimo, mas morrem na praia devido a fatores conjunturais fora de seu controle, e não recebem crédito parcial pelo que fizeram.
Nós aqui, na terra das jabuticabas, temos um longo — e não muito bem-sucedido — envolvimento com o tema. Nossa primeira Constituição (1824) tem um artigo inteiro (o 179) sobre — imagine! — meritocracia no acesso a cargos públicos. E todos nós temos histórias para contar de know who prevalecendo sobre know how.
Vicente Falconi (citado por Neuza Chaves, na referência abaixo) acerta em cheio quando define meritocracia como: “A prática da ética no trabalho, que privilegia e promove os melhores, independentemente de raça, credo, ideologia, relacionamento familiar ou amizade. A organização precisa ser coerente e dar a todos a mesma oportunidade”.
Uma empresa precisa praticar a meritocracia nos seus processos de:- Recrutamento.- Treinamento, desenvolvimento e retenção.- Avaliação de desempenho.- Reconhecimento e recompensa.- Promoção, mobilização temporária e movimentos laterais.- Desligamento.
E hoje em dia toda avaliação precisa incluir colegas, acionistas, stakeholders, e meio ambiente.
Nessa altura do artigo, você já se deu conta de que (1) meritocracia significa coisas diferentes para pessoas diferentes, e (2) migrar uma empresa para a meritocracia, conforme a definição Falconi, é um processo incremental de aprimoramento contínuo. Como fazer isso? A título de agenda mínima inicial:
– Examine suas estatísticas de turnover, em particular sobre o motivo da saída e para aonde vai quem está saindo.- Examine seus registros de entrevistas de desligamento, sabendo do forte viés a favor de falsear as verdadeiras razões pelas quais a pessoa decidiu ir embora.- Reúna grupos de colaboradores (tamanho ideal 8-20 pessoas), exponha a intenção da empresa em aprimorar seu viés meritocrático, e pergunte onde já funciona assim e onde ainda não funciona assim.- Em paralelo, crie um surveymonkey (ou assemelhado) cujo questionário as pessoas possam responder anonimamente. Mantenha o questionário ativo por alguns meses, sempre melhorando as perguntas.- Em todos os processos descritos acima, observe quais traços da cultura da sua empresa funcionamcomo “freios de mão” meritocráticos (“know-who” no lugar de “know-how”).
Neuza Chaves escreveu o livro fino Meritocracia: Influência da Cultura Brasileira no Desempenho e no Mérito (Falconi Editora, 2017). Tenho muito respeito por livros finos, principalmente por (1) elencar algumas das peculiaridades culturais brasileiras que influenciam o tratamento da meritocracia pelas empresas, e (2) fazer uma análise estatística rigorosa das avaliações de desempenho de uma empresa específica. Senti falta, nestas avaliações, de quesitos referentes ao coletivo, por exemplo, a “influência positiva na equipe” e “desenvolve os Outros”. Recomendo, em particular como primeira leitura para quem quer disciplinar esse tema dentro de uma empresa no Brasil.
E, se você gosta ler sobre ambos os lados da questão:
– Adrian Wooldridge, editor de política do The Economist, sob o pseudônimo de Bagehot, inclui uma história caprichada da meritocracia, mas infelizmente também certo contorcionismo conceitual que desagradou alguns leitores: The Aristocracy of Talent: How Meritocracy Made the Modern World.- E, pela visão equilibrada, e também por defender contribuições para o bem comum como quesito de avaliação de mérito, recomendo Michael Sandel em A Tirania do Mérito: O que aconteceu com o bem comum?.
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