“A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão. A coragem, a mudá-las” (Santo Agostinho)
Em algum ponto de um futuro bem próximo, precisaremos estabelecer um novo pacto coletivo sobre a incorporação de soluções de inteligência artificial na economia e na sociedade. Diferentemente de outros ciclos de inovação, estamos diante de uma onda de transformação sistêmica e que se forma muito mais rápido do que nossa capacidade de absorver os seus impactos. A IA oferece vantagens óbvias de aumento de produtividade, redução de custos e expansão de habilidades.
Como ponto de partida, podemos estabelecer que esse é um caminho sem volta. Os incentivos para explorar esses benefícios são simplesmente irresistíveis para a maioria das pessoas e organizações. O que ainda está em jogo é a criação de um sistema de contrapesos que permita distribuir essas oportunidades de maneira gradual e igualitária.
Os desafios mais evidentes incluem a eliminação de empregos em massa, o aumento da concentração de renda, as rupturas nas instituições democráticas e as crises generalizadas de desinformação. Os menos discutidos trazem riscos como a limitação de nossa criatividade e subjetividade.
A promessa da inteligência artificial como aceleradora do potencial humano será cumprida apenas se conseguirmos olhar além dessa primeira camada de automação e redução de custos — e o que temos visto é um panorama que aponta cada vez mais para a padronização de ideias e de nossa capacidade cognitiva. Entre as incontáveis plataformas, ferramentas e funcionalidades que surgem todos os dias, fica a impressão de que todos os prompts nos levam ao mesmo destino final.
Devemos lembrar que vivemos em um mundo no qual 1% da população mais rica detém aproximadamente dois terços da renda acumulada nos últimos dois anos, segundo o último relatório divulgado pela Oxfam. Quais seriam os efeitos de um tsunami global de automação e upskilling sobre esse cenário? Quem seriam os mais afetados?
Um levantamento recente do Fórum Econômico Mundial, por exemplo, destaca que a participação de mulheres brasileiras na economia do conhecimento intensivo é de somente 27%. Seria ingenuidade pensar que podemos acelerar ou frear a evolução da IA conforme os nossos desejos, vontades e necessidades. Mas certamente podemos pensar em futuros que combinem seu potencial de transformação com a redução de gaps sociais, culturais e econômicos.
Infelizmente, os esforços das lideranças corporativas não parecem apontar para essa direção. De acordo com o relatório “The State of Responsible Technology”, produzido pela MIT Technology Review e pela Thoughtworks, apenas 30% das organizações globais enxergam as iniciativas de “responsible tech” como uma disciplina de negócios fundamental para lidar com os desafios dos próximos anos.
O mesmo estudo mostra que a mitigação de impactos tecnológicos não-intencionais está nas prioridades de gestão de riscos de meramente 18% dessas empresas. As preocupações com falhas operacionais, ameaças de obsolescência, brechas de cibersegurança e, claro, gargalos financeiros estão no topo da lista.
Como já citei em uma coluna anterior, a eliminação sistemática dos núcleos de diversidade e inclusão em grandes empresas é outro sintoma da falta de comprometimento da alta liderança com estratégias de inovação orientadas pela equalização de oportunidades e pela visão de longo prazo. Em artigo publicado no início do mês, Rana Foroohar, editora do Financial Times, chama a atenção para a crescente mudança de foco das métricas de D&I por objetivos voltados exclusivamente ao retorno financeiro imediato.
O retrocesso dos programas de diversidade — porque, quando não avançamos, terminamos andando para trás — é particularmente crítico em um período no qual precisamos repensar a inovação a partir de um território completamente novo. E insistimos em tentar fazer isso com as mesmas pessoas de sempre, fazendo as mesmas perguntas de sempre, nos mesmos lugares de sempre.
O medo da mudança pode ser tão paralisante quanto a crença na tecnologia como a solução de todos os nossos problemas. Por isso, prefiro acreditar no poder do que Ariano Suassuna chama de “realismo esperançoso”. Um tipo de otimismo que nos lembra que a esperança é muito mais do que sonhar com dias melhores. Ela surge da nossa coragem e capacidade de acreditar que podemos transformar uma realidade que se impõe ao nosso redor. As escolhas que faremos daqui para frente serão decisivas para os próximos séculos da humanidade. Por isso, precisamos nos olhar no espelho com mais profundidade para descobrir para quais horizontes estamos acenando — e fazer as devidas correções de rota, antes que seja tarde demais.
Imagem: estátua da Ariano Suassuna em Recife com intervenção | Shutterstock”,É preocupante que só 30% das organizações globais enxerguem as iniciativas de “responsible tech” como uma disciplina de negócios fundamental para lidar com os desafios dos próximos anos