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Uma visão estruturada da ambidestria organizacional

Saiba como a abordagem da separação estrutural ajudou empresas como Ambev e Alphabet a impulsionar a ambidestria como estratégia para explorar novas oportunidades sem comprometer a eficiência dos negócios existentes

Maximiliano Carlomagno
19 de julho de 2024
Uma visão estruturada da ambidestria organizacional
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Há alguns anos, eu chegava em casa tarde da noite quando passei em frente a uma casa de dois andares na Rua João Lourenço, em São Paulo, quase na esquina com a Rua Jaques Felix. Luz acesa. Uma galera entrando e saindo. Eu não sabia, mas naquele lugar crescia o Zé Delivery, plataforma de direct-to-consumer da Ambev.

O Zé é uma dessas startups corporativas que ilustra a rara capacidade de criação de novos negócios em empresas incumbentes. Segundo dados de 2021, seu volume de vendas representava 7% dos pedidos da Ambev no Brasil. Nada mal para quem sempre foi vista como uma organização mais focada em eficiência do que em inovação.
Falando em inovação, nos últimos anos uma nova expressão tomou conta do vocabulário do top management brasileiro: ambidestria organizacional.

O senso comum entende como ambidestro aquele que usa a mão ou pé direito e esquerdo de maneira similar. Ambidestria, nesse caso, é a qualidade de ser igualmente habilidoso com os membros dos dois lados do corpo. Pelé, o atleta do século, marcou mais de mil gols – 500 estão registrados em vídeos –, entre os quais mais de 100 foram feitos com a perna esquerda, que não era a sua favorita.

Já no ambiente de negócios, a ambidestria tem outro significado, embora reforce também a ideia de equilíbrio. Por exemplo: um estudo recente sobre o papel dos CIOs revelou que para 75% deles é desafiador equilibrar eficiência e inovação.

O insight e a visão

O conceito de ambidestria nas organizações foi introduzido em 1976 por Robert B. Duncan, professor da Kellogg School of Management, que usou a metáfora da ambidestria para destacar a incompatibilidade nas abordagens de gestão entre as fases de ideação e execução de projetos de inovação, devido a condições distintas de complexidade, formalização e centralização em cada uma dessas etapas.

Duncan defendeu a necessidade de adotar duas abordagens gerenciais distintas e a transição entre elas dentro ou entre estruturas organizacionais para compatibilizar esses processos. Seu insight fundamental foi a percepção de que contextos diferentes (ideação versus execução) apresentam incompatibilidades e, portanto, requerem arranjos organizacionais diferentes.

Em 1991, o professor de Stanford James March abordou o tema, mesmo que sem chamar de ambidestria, ao apresentar a visão de exploration (exploração) e exploitation (extração) como modelos de adaptação organizacional. Ele diferenciou os dois movimentos em termos de perfis de risco e de retorno.

Enquanto exploration inclui questões como variabilidade, tomada de risco, experimentação, flexibilidade, descoberta e inovação, exploitation envolve refinamento, escolha, eficiência, seleção, implementação e execução.

March destacou, ainda, a importância dos dois movimentos para a sobrevivência e alta performance de uma empresa e a lógica contraditória de estratégias, estruturas, processos e culturas entre ambos.

Separação e integração

Cinco anos mais tarde, os renomados professores e pesquisadores na área de administração e estratégia organizacional Michael L. Tushman e Charles A. O’Reilly detalharam o conceito de organizações ambidestras, diferenciaram os requisitos para “extrair” e “explorar” e prescreveram uma proposta estruturante.

Nela, destacaram que, em função das diferentes estratégias, estruturas, processos e culturas para exploration e exploitation, as empresas deveriam adotar um modelo de separação estrutural em que simultaneamente extrairiam do hoje e explorariam o amanhã por meio de duas estruturas totalmente separadas.

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Fonte: Tushman e O’Reilly

No entanto, há uma segunda parte dessa equação, por vezes, esquecida. Trazer pessoas de fora, alocá-las num prédio em separado, eventualmente até constituir um novo CNPJ. A separação estrutural não é suficiente.

Para evitar o isolamento comum em estruturas dedicadas a novos negócios, como labs de inovação, aceleradoras corporativas e fundos de corporate venturing, a separação precisa ser complementada por um conjunto de mecanismos de integração das estruturas de explore e exploit na alta gestão, de forma que permita ao negócio existente alavancar o novo sem contaminá-lo.

Cases Alphabet e Ambev

A Alphabet, controladora do Google, tem diversas iniciativas de fomento à inovação. A empresa ficou reconhecida por permitir que seus engenheiros dediquem 20% do tempo a projetos pessoais de inovação. A partir dessa abordagem, surgiram produtos como o Gmail.

No entanto, para explorar novas oportunidades mais distantes do negócio existente, a empresa descobriu que precisava de uma estrutura dedicada. Nesse contexto, a Google X foi estruturada para incubar e desenvolver projetos moonshots, que exploram territórios totalmente novos.

Já a Ambev criou, alguns anos atrás, a ZX Ventures e a ZTech para desenvolver novos produtos e negócios digitais. Uma série de iniciativas cresceram com o apoio dessa estrutura separada, como o Zé Delivery e o BEES.

Existem pesquisas consistentes que relacionam ambidestria com crescimento, lucro e sobrevivência das empresas. Para garantir sucesso de curto prazo, as empresas precisam extrair competências do presente. E, para ter prosperidade de longo prazo, devem explorar o futuro. No entanto, a incompatibilidade de arranjo organizacional para esses dois movimentos requer uma estratégia específica. A separação estrutural é um desses caminhos.

A ambidestria organizacional é, segundo a visão da Innoscience, “a capacidade das empresas de administrar, de maneira dinâmica, a ênfase em extrair eficiência do negócio atual a partir de competências existentes e explorar novos negócios por meio do desenvolvimento de novas capacidades “.

O Rei Pelé não se transformou num jogador ambidestro da noite para o dia. Foi o pai de Pelé, Dondinho, que implicava com sua falta de precisão com a perna esquerda. “Ele me mandava ficar batendo a bola contra o muro de casa só com a canhota. Durante anos, eu fiz esse tipo de coisa, mesmo nos treinos profissionais, e a musculatura da esquerda ficou maior que a da direita… eu ganhei uma precisão incrível, igual à da perna boa.”

A ambidestria organizacional é uma estratégia para explorar novas oportunidades, como o Zé Delivery, sem perder a eficiência do negócio existente. A separação estrutural é uma das abordagens para fazer a ambidestria funcionar.

Maximiliano Carlomagno
É sócio-fundador da Innoscience, consultoria de inovação corporativa que trabalha com empresas como Roche, Coca-Cola, Duratex, Hypera Pharma. SLC Agrícola, Sicredi, M. Dias Branco, Braskem, Nestle, Ipiranga e Avon. É autor do livro “Gestão da Inovação na Prática”.

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