Liderados pela OMS, precisamos garantir a distribuição justa das vacinas para todos os continentes e países. Contudo, quebrar patentes de laboratórios e farmacêuticas poderá resultar num desestímulo do investimento privado e em P&D
“Até o presente momento, segundo o painel da Johns Hopkins University, a covid-19 afetou mais de 122 milhões de pessoas, com praticamente 2,7 milhões de óbitos, 290.000 destes no Brasil. Conforme demonstramos em publicações anteriores, em se tratando de uma doença para qual não existe tratamento específico efetivo, as melhores medidas continuam sendo isolamento social, uso de máscaras e, mais recentemente, imunização da população.
Infelizmente, o percentual da população global que recebeu ao menos uma dose de uma das vacinas contra a covid-19 ainda é muito baixo, da ordem de 3,5% até a presente data. Alguns países têm sido mais ágeis na imunização da sua população, como Israel, onde praticamente 60% das pessoas já receberam ao menos uma dose da vacina, seguido pelo Reino Unido (41%), Chile (30%) e Estados Unidos (25%). No Brasil, apenas 6,1% da população foi imunizada com ao menos uma dose, embora mais de 17 milhões de aplicações já tenham sido administradas até o momento.
Em países mais pobres ou com dificuldade de acesso a serviços de saúde, como Quênia, Costa do Marfim, Nigéria e Venezuela, menos de 0,1% da população recebeu uma dose da vacina, deixando bem evidente a desigualdade de distribuição do imunizante entre países e continentes, sendo o africano o mais prejudicado.
A alta demanda pela vacina contra a covid-19, seu suprimento limitado, dificuldades logísticas e desigualdade de ofertas para os países aumentam a solicitação de fornecimento mais justo dos imunizantes para a população de diferentes países. Com o surgimento de mutações ou variantes do novo coronavírus (SARS-CoV-2), como a P.1 de Manaus, potencialmente mais transmissíveis e letais, a pressão para uma distribuição mais justa das vacinas fica ainda maior, pois o risco de disseminação do vírus aumenta, assim como novas possibilidades de mutação.
O maior questionamento é executar esta tarefa em um momento de grande dificuldade de suprimento de matéria-prima, limitações logísticas e políticas e altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento já realizados pelas grandes empresas farmacêuticas.
Por todos estes motivos descritos acima, algumas ações e iniciativas têm sido propostas. Uma das maiores, denominada de Covax, tem à frente a Organização Mundial de Saúde (OMS) em conjunto com a CEPI, parceria global de inovação que reúne entidades privadas, públicas e filantrópicas para o desenvolvimento de vacinas, e a GAVI, aliança mundial que tem como objetivo fornecer acesso a imunizantes a crianças de países em desenvolvimento.
Outra iniciativa, a C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool), patrocinada pela OMS em parceria com mais de 40 países-membros, busca facilitar o compartilhamento de vacinas, transferência de tecnologia e licenciamento voluntário.
Contudo, em um momento de pandemia e necessidade imediata de imunizações em todo o planeta, essas e outras iniciativas não são suficientes para o enfrentamento do problema. Por tal motivo, diversos países têm solicitado à Organização Mundial de Saúde (OMS) o licenciamento compulsório das patentes de vacinas contra a covid-19 em posse das empresas farmacêuticas.
Uma licença compulsória interrompe o efeito de monopólio de um detentor de patente para produzir e fornecer o produto. Em outras palavras, ocorre a suspensão da propriedade intelectual do detentor da patente e possibilidade de produção por outras empresas enquanto o licenciamento compulsório estiver vigente.
A partir desses fatos, algumas perguntas vêm à mente. Seria isto um fato inédito, sem precedentes e descabido? Algo semelhante já ocorreu na história do desenvolvimento de vacinas ou medicamentos? Os fabricantes das imunizações aceitariam de bom grado a quebra da propriedade intelectual? Por fim, qual seria o impacto na lei de patentes e de propriedade intelectual dessa medida?
Buscando responder a algumas das perguntas, vale lembrar que o licenciamento compulsório é previsto e amparado por lei em diversos países, sendo um mecanismo útil para melhorar o acesso às tecnologias de saúde em doenças crônicas e em casos emergenciais, como a atual situação pandêmica.
Na década de 1960, o médico e pesquisador polonês Albert Sabin renunciou aos direitos de patente da vacina que desenvolveu contra a poliomielite, possibilitando sua disseminação e utilização mundial e permitindo que milhões de crianças fossem imunizadas contra a doença. Situação semelhante ocorreu em nosso país em 2001, quando o governo brasileiro decidiu quebrar a patente de um antiviral contra a AIDS, depois de diversas negociações frustradas com a empresa farmacêutica que havia desenvolvido a medicação.
No entanto, tal prática não deve se tornar a estratégia padrão de adoção, pois poderia desestimular o investimento privado em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias. No caso específico da covid-19, doença causada por um vírus com incrível capacidade em se adaptar a condições climáticas diversas e capaz de gerar diferentes mutações, o receio de ações semelhantes é impactar o desenvolvimento de novos imunizantes, muitos deles ainda em fase de testes ou no início dos ensaios clínicos.
Em resumo, em um momento de estado de emergência sanitária global é preciso avaliar cuidadosamente os riscos e benefícios de ações nessa linha, buscando equilibrar as necessidades das diversas populações com os recursos investidos por empresas privadas em pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Em um mundo ideal, a produção dos imunizantes seria capaz de suprir a demanda global, tornando qualquer ação nesta linha desnecessária e descabida.
No entanto, no momento em que vivemos, o direito à vida torna-se muito maior que qualquer interesse financeiro, desde que haja um esforço de um consórcio de países, preferencialmente liderado pela OMS, para garantir o pagamento do direito sobre a propriedade intelectual para as empresas que lideram a elaboração de novas vacinas ou outras iniciativas como compartilhamento de doses, transferência tecnológica ou produções locais dos imunizantes.
Essa lógica garante o investimento contínuo em pesquisas e desenvolvimento de novas vacinas que sejam capazes de debelar não só a pandemia atual, mas muitas outras que possam vir a surgir. Há luz e esperança no fim do túnel, mas precisamos estar coesos e cumprindo as medidas de prevenção para alcançá-la.
Por fim, faço um agradecimento especial ao Dr. Marcos Nascimento, coautor deste artigo, médico pneumologista e gerente médico da Boehringer-Ingelheim do Brasil.
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