Como reverter essa tendência e usar a tecnologia a favor de uma vida com mais cultura, equilíbrio e bem-estar
Estudos indicam que os brasileiros passam mais de um terço do dia conectados aos celulares, principalmente em redes sociais. Acumulamos surpreendentes 3 horas e 37 minutos em aplicativos como WhatsApp, Instagram e TikTok. Esse tempo, em apenas três dias, poderia ser usado para ler um clássico da literatura nacional, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Em contraste, os japoneses passam apenas 53 minutos diários em redes sociais, uma média semelhante à de sul-coreanos e holandeses.
Além do tempo excessivo nas redes, o que muitas vezes começa como uma breve consulta ao celular se transforma em longas sessões de rolamento infinito de vídeos e textos. Quanto desse conteúdo recordamos mais tarde?
Cada notificação nos traz pequenas doses de satisfação momentânea por meios de curtidas e comentários, mas nos afasta da vivência do presente e da construção de relações mais autênticas.
Situações cotidianas, como conversas com amigos, reuniões profissionais ou até momentos de descanso, são frequentemente interrompidas por olhares furtivos para as telas, nos afastando da
realidade ao nosso redor.
Algumas dessas distrações vêm de fontes externas, como mensagens ou chamadas, mas muitas são impulsos internos, um reflexo de nosso desejo de ativar o sistema de recompensa do cérebro. Essa busca constante por dopamina, embora gratificante em curto prazo, é viciante e frequentemente ligada ao “Fomo” (medo de perder algo importante, na sigla em inglês).
Esse comportamento afeta três aspectos essenciais para nossa qualidade de vida: enfraquece a interação social, reduz a comunicação verbal e diminui a capacidade de concentração. Como observou o filósofo inglês Alan Watts em 1951, “ansiamos por distração – uma torrente de imagens, sons e excitações que tentamos consumir o máximo possível no menor tempo.”
A busca insaciável por estímulos se reflete até em comportamentos de risco, como usar o celular ao volante. Pesquisas indicam que 80% dos pais admitem usar o celular enquanto dirigem, mesmo quando estão acompanhados pelos filhos.
Assim como na indústria alimentícia e do tabaco, as grandes empresas de tecnologia empregam cientistas e especialistas para tornar suas plataformas cada vez mais viciantes, a fim de aumentar o
tempo que passamos conectados. Redes sociais são desenhadas para nos manter constantemente envolvidos, oferecendo a promessa de uma recompensa iminente em cada novo post ou vídeo.
Essa manipulação, cuidadosamente planejada por equipes de especialistas, visa maximizar o lucro por meio da venda de publicidade. Ao longo do processo, ela vai nos alienando e enfraquecendo nossa capacidade crítica.
Além do tempo consumido, os impactos emocionais também são profundos. Muitas vezes, as postagens nas redes sociais apresentam versões exageradamente positivas da vida das pessoas. No Instagram, alguém compartilha fotos de uma casa recém-comprada, mas esconde as dificuldades financeiras por trás dessa conquista.
No TikTok, vídeos de rotinas produtivas e “perfeitas” mascaram a exaustão mental por trás dos bastidores. Até mesmo as conquistas profissionais celebradas no LinkedIn podem ser descontextualizadas, ignorando os sacrifícios pessoais feitos ao longo do caminho. Essa constante comparação com versões idealizadas da vida alheia alimenta uma sensação de inadequação, solidão e frustração.
Os números de depressão e ansiedade continuam crescendo de forma intensa, inclusive em crianças e adolescentes, mais e mais expostos a telas e plataformas digitais. Segundo o pesquisador francês Michel Desmurget, autor do livro A Fábrica de Cretinos Digitais: Os Perigos das Telas para Nossas Crianças, televisões, videogames e redes sociais estão afetando seriamente o desenvolvimento neural dos mais jovens.
Quanto mais cedo uma criança se habitua aos dispositivos digitais, mais chances tem de se tornar usuária assídua. Dados recentes demonstram que crianças de menos de dois anos já passam quase uma hora por dia em frente a telas, em uma fase da vida em que tais dispositivos não têm importância educativa. Pior ainda, elas tomam um tempo relevante do dia dessas crianças, que precisam de momentos para se entediar, imaginar, criar e explorar o mundo.
Na adolescência, o consumo digital chega a superar sete horas diárias. Em um único ano, o tempo gasto em frente a telas nessa fase é semelhante ao número total de horas acumuladas do ensino de português, matemática e biologia durante o período que vai da 5ª série do Ensino Fundamental até o fim do Ensino Médio.
Um dado preocupante diz respeito aos extratos sociais, já que o uso intenso de dispositivos digitais predomina nos meios socioculturais menos privilegiados. Adolescentes de famílias mais pobres chegam a dedicar às telas quase duas horas diárias a mais em comparação com aqueles de famílias mais abastadas.
Uma forma de lidar com esse problema é limitar o acesso às telas, começando por tirá-las dos espaços de descanso, como o quarto das crianças, e adiando ao máximo o uso de dispositivos como celulares. Os pais têm um papel crucial nesse processo: estudos indicam que o uso excessivo de telas entre crianças aumenta de acordo com o tempo que os próprios pais passam conectados.
Educar as crianças e adolescentes sobre o uso consciente da tecnologia é fundamental. Uma pesquisa comparou três estilos de criação: pais permissivos (não estabelecem regras claras para o uso de dispositivos), autoritários (impõem restrições rígidas sem discussão) e participativos (colocam limites, mas explicam o motivo por trás das regras).
O estudo mostrou que, nas famílias permissivas, 20% das crianças usavam telas por mais de quatro horas diárias. Esse número caiu para 13% no grupo autoritário e para apenas 7% nas famílias participativas. Isso evidencia a eficácia de uma abordagem mais educativa.
Embora as ferramentas digitais possam ser úteis em ambientes escolares, elas devem ser adaptadas às necessidades pedagógicas, e não o contrário. Pesquisas indicam que crianças que começam a aprender a escrever utilizando teclados enfrentam mais desafios para desenvolver habilidades motoras e cognitivas, como ler e memorizar, em comparação com aquelas que utilizam métodos tradicionais, como lápis e papel.
A tecnologia deve ser uma ferramenta complementar, não um substituto para o ensino convencional. Até o momento, a única estratégia que traz resultados positivos é o investimento na capacitação e no desenvolvimento de professores qualificados e comprometidos, que são a verdadeira chave para uma educação de qualidade.
As advertências presentes em alimentos, como excesso de gordura e açúcar, e nos maços de cigarro, alertando para risco de desenvolvimento de câncer e outras doenças, poderiam ser aplicadas também
às redes sociais. Os usuários deveriam ser informados a respeito do seu tempo de uso, potencial de gerar vício e ansiedade e sobre o excesso de dopamina liberada.
Mais que isso, devemos aproveitar os benefícios da tecnologia e a atração que as redes sociais exercem sobre os usuários para promover saúde, bem-estar e educação. Aplicativos como o Headspace, de meditação, MyDose, de promoção de bem-estar, e Strava, de atividades esportivas, estão trilhando esse caminho, com sucesso.
A discussão sobre como reverter essa dinâmica e transformar a tecnologia em um aliado para a saúde e o bem-estar, em vez de fonte de ansiedade, tristeza e frustração, está apenas começando. No entanto, é fundamental aumentar a conscientização sobre os riscos envolvidos e desenvolver estratégias eficazes para evitar o vício e a insatisfação. Essa abordagem proativa é essencial para garantir que a tecnologia contribua positivamente para nossas vidas, promovendo um equilíbrio saudável entre a conectividade digital e o bem-estar emocional.
Ouça também o episódio “Conectado às telas: e desconectados”, do podcast ExpertCast
* Artigo escrito em parceria com José Eduardo Venson, especialista em transformação digital e
tecnologia em saúde e fundador do MyDose.