Com o exemplo da agência espacial dos EUA, entenda como funcionários rebeldes realmente podem revitalizar seu negócio
Nos negócios, muitas vezes rotulamos renegados e rebeldes como causadores de problemas. No mínimo, dizemos que esses indivíduos precisam aprender a “seguir as regras”, para alinhar a organização interna e externamente. Nossa pesquisa na Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, sugere, no entanto que nós precisamos desses renegados mais do que pensamos. Longe de serem obstáculos às tarefas diárias, podem fornecer maneiras poderosas de revitalizar as organizações e prepará-las para o futuro.
Ao longo do tempo, as organizações estabelecem culturas que buscam atingir objetivos e formas de operar muitas vezes não condizentes com mudanças. Hábitos, custos, a força da tradição, a política interna e visões de mundo bem definidas mantêm o status quo. Só que, conforme o ambiente competitivo muda e desafios inesperados surgem, as empresas precisam adaptar sua abordagem.
O empurrão que as organizações precisam dar em uma direção diferente frequentemente vem de grupos renegados – aqueles que percebem os desafios iminentes e preveem soluções potenciais fora dos formatos usados na organização. Geralmente esses grupos estão comprometidos em elevar as capacidades do negócio e prepará-lo para novos desafios apesar da oposição do status quo. Portanto, é fundamental que as organizações criem um clima que fomente o pensamento rebelde e que apoiem esses colaboradores em suas posições.
Equilibrando eficiência e inovação
De 2013 até 2018, nós conduzimos uma estudo de caso no Johnson Space Center da Nasa para entender como as organizações podem se tornar _ambidestras_ – o que definimos como estar apto a equilibrar objetivos concorrentes, como eficácia, inovação e o desenvolvimento de capacidades atuais e futuras. Nossa pesquisa envolveu visitas etnográficas, workshops, entrevistas com gestores, engenheiros e cientistas, e análise de documentos históricos.
Durante nossa pesquisa, acompanhamos um grupo de renegados altamente eficazes que se tornariam conhecidos como os “Piratas”. Esse grupo inovador e ágil foi formado em 1986 e criou um sistema de controle de missão premiado para o programa de ônibus espacial em tempo recorde, com um orçamento muito limitado, e em meio à resistência política.
Os valores e métodos do grupo desafiaram a cultura hierárquica estabelecida. Ele foi pioneiro em práticas ágeis, mesmo antes de o manifesto ágil ter sido lançado na indústria de software ou de a palavra “agilidade” invadir o vocabulário organizacional. O grupo conseguiu vencer a oposição, ganhar patrocinadores de alto nível hierárquico dentro da Nasa, e enfim desenvolver um novo controle para a missão de ônibus espacial com grandes economias de custo.
A história do grupo oferece, a todas as organizações, lições importantes sobre como funcionários renegados podem ajudá-las a equilibrar metas geralmente excludentes de eficiência e inovação.
A HISTÓRIA DOS PIRATAS
Em 1983, John Muratore, um jovem programador, entrou no Johnson Space Center. Ele estava havia quatro anos apoiando o programa de ônibus espacial pela Força Aérea, e ficou surpreso em ver que a arquitetura computacional do Mission Control Center (centro de controle de missão) ainda era o sistema em mainframe da época da Apollo. Os displays eram monocromáticos, sem gráficos, e o sistema conseguia lidar apenas com um número limitado de cálculos simultâneos. Quaisquer mudanças de funcionalidade levavam meses para serem implementadas. Ele logo se questionou: conseguiria aquele sistema de mainframe enfrentar a complexidade crescente do programa de ônibus espacial e a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) planejada?
Então, Muratore se aliou a um pequeno grupo de programadores recém-recrutados que se sentiam da mesma forma em relação ao sistema. Eles queriam um controle de missão com uma arquitetura de sistemas abertos, distribuídos, atualizáveis e escaláveis, construídos para incorporar até tecnologias ainda não inventadas.
As preocupações do grupo inicialmente não foram ouvidas. O controle de missão confiava no sistema testado e comprovado – afinal, ele tinha levado seres humanos à Lua, e os controladores de voo e engenheiros de software conheciam seus caprichos, sendo capazes de responder a qualquer emergência que ocorresse ali.
O grupo de Muratore foi irredutível. E, conforme explicaremos a seguir, seu sucesso teve um segredo: a abordagem. O grupo venceu alcançando resultados, demonstrando resiliência em meio a desafios e mantendo responsabilidade pessoal.
Os Piratas trouxeram novas capacidades de controle de missão para a Nasa. O primeiro projeto do grupo, o Dos Sistemas de Dados em Tempo Real (RTDS, na sigla em inglês), levou um ano de horas extras para ser criado.
Esse sistema, composto por conjuntos de hardware prontos para uso e códigos feitos sob medida, foi construído com fundos de um pequeno financiamento interno para “novas tecnologias”. Eles até pegaram emprestado hardwares, que conseguiam manter por ciclos de 90 a 120 dias, devido às regras do governo sobre usar recursos gratuitos de fornecedores da Nasa.
Mas o RTDS foi levado ao controle de missão, e nossa pesquisa demonstrou que o apoio de um patrocinador de alto nível – nesse caso, o diretor de voo Eugene Kranz – foi um fator-chave no sucesso dos renegados.
Seu novo sistema continha gráficos coloridos e interfaces amigáveis, integrava relatórios no status de sistemas de ônibus espacial, e operava perfeitamente em ocasiões em que o sistema em mainframe fracassou. Os controladores de voo foram percebendo que podiam tomar decisões mais rápido com o novo sistema, e com maior precisão.
Então, todos os sistemas técnicos exigidos para operar o ônibus espacial foram então gradualmente alterados para o sistema dos renegados.
O paradigma: agilidade antes de isso estar na moda
Devido ao sucesso do RTDS, a Nasa pediu que Muratore reunisse uma equipe para atualizar todo o sistema de controle de missão para a Estação Espacial Internacional planejada. Esse novo grupo criou o “Paradigma dos Piratas” – valores que desafiavam a cultura estabelecida, e alguns dos quais ressoam princípios ágeis modernos:
– Não espere que alguém te diga o que fazer; descubra sozinho.
– Desafie tudo, e prepare-se para o cinismo, a oposição, os rumores, os falsos relatos, as insinuações e as difamações inevitáveis.
– Quebre as regras, não a lei.
– Assuma riscos como regra, não como exceção.
– Elimine cronogramas, agendas, processos, revisões e burocracias desnecessárias.
– Apenas comece; conserte os problemas ao longo do caminho.
– Construa um produto, não uma organização; terceirize o máximo possível.
Ao modelar uma ação que foi além da cultura conservadora estabelecida, seus valores permitiram a inovação de capacidades de controle de missão essenciais para a Nasa. O lema dos Piratas era “construa um pouco, teste um pouco, conserte um pouco”, e suas práticas incluíam:
– Marcos de ciclos curtos regulares para encorajar melhoria e experimentação contínua.
– Orientação para resultados.
– Eliminação de burocracia.
– Encorajar responsabilidade pessoal (accountability).
– Desafiar a convenção, enquanto operava em uma organização grande, hierárquica e vinculada a regras.
É necessário muita persistência e compromisso para que inovadores como os Piratas desafiem a cultura de uma organização, mas, conforme seu sucesso com o programa de ônibus espacial e a ISS demonstram, geralmente é disso que as organizações mais precisam.
Desafios inéditos precisam de resolvedores de problemas inéditos
Todos os sistemas e organizações têm limites de performance que não o permitem lidar com desafios inéditos. As empresas muitas vezes resistem a novas abordagens a favor da ordem estabelecida e interesses dominantes, e a inércia organizacional desencoraja a inovação proativa.
Os Piratas da Nasa enfrentaram a computação em mainframe, que não entregava a funcionalidade e a flexibilidade da computação distribuída. Um paralelo pode ser visto nos serviços financeiros de hoje, no sistema de saúde, nos serviços automobilísticos, no varejo e nos setores da educação, que estão começando a ver o potencial de remodelagem da inteligência artificial (IA). As organizações precisam de novas tecnologias de informação e processos organizacionais, não apenas do aprimoramento dos sistemas atuais, para capitalizar os benefícios potenciais da IA.
É aí que os “desviantes positivos” como os Piratas da Nasa entram. Esses indivíduos e grupos são imersos em operações, compreendem desafios iminentes e têm conhecimento, motivação e visão para buscar e criar melhores formas de lidar com esses desafios. Eles são “causadores de problemas” – como algumas pessoas, casadas com o status quo, os veem. Eles podem acabar trazendo competências essenciais à organização.
Alimente seus rebeldes
Muitas organizações se concentram no alinhamento estratégico e organizacional, esperando que todos cumpram as regras e ataquem quaisquer sinais de desvio da norma. A homogeneidade pode fomentar eficácia e otimização, mas também os riscos inerentes de não permitir a evolução do sistema (ou revolução, nesse sentido).
Um antídoto importante para a inércia são os grupos renegados, desviantes positivos que, por meio de dissidências construtivas e resultados inovadores, podem ter a resposta para melhorias na tecnologia e sistemas humanos. As organizações podem fomentar grupos renegados criando solo fértil para tais grupos emergirem:
– Desenvolver uma cultura organizacional verdadeiramente aberta ao desafio e à dissidência positiva.
– Fornecer desvios positivos com financiamento inicial e tempo para experimentação.
– Abrigar grupos renegados de burocracia e políticas da empresa quando emergirem.
– Assegurar que patrocinadores de alto nível se conectem e apoiem esses grupos.
– Reconhecer vitórias iniciais dos renegados para motivar a organização a adotar novas práticas.
– Desenvolver líderes com mindsets ambidestros – equilibrar as necessidades do presente e do futuro; otimização e criação.
Criar esse tipo de ambiente pode ampliar o desvio positivo em vez de reprimi-lo e oferece melhores oportunidades para que os grupos de renegados apareçam e façam uma diferença positiva.
Proteja seus renegados
Mesmo nos dias de hoje, os métodos dos Piratas da Nasa podem ser considerados inovadores para muitas organizações, e eles foram nada menos do que revolucionários para uma organização baseada em processos, regras e hierarquias como é a Nasa. Sua abordagem foi vista como uma invasão de cerca que enraivece muitos que queriam vê-los falhar. Houve uma oposição violenta a eles por parte da ordem estabelecida, incluindo a média gerência e os desenvolvedores de software que pensaram que os Piratas operadores de voo, ao escreverem seu próprio código, estavam prejudicando em seu território. Entretanto, conforme o grupo ganhava um apoio silencioso de patrocinadores de alto nível, seus avanços e inovações introduziram a transformação organizacional.
A história dos grupos de renegados demonstra que mudanças ocasionadas por tais grupos não são apenas cosméticas e superficiais. São verdadeiras transformações e podem ser alcançadas porque os renegados desafiam o status quo com soluções que têm credibilidade e porque têm motivação intrínseca para fazerem a diferença. Essa motivação, aliás, é um fator-chave para determinar se os renegados em sua organização são construtivos, desviantes positivos, ou apenas anarquistas.
Proteção e apoio de patrocinadores de alto nível, que entendem o valor da busca por novos caminhos, oferecem conselhos e perspectiva estratégica, e podem intervir para remover obstáculos do caminho dos renegados, geralmente são a chave para seu sucesso.
A visão dos Piratas da Nasa sobre o Mission Control Center foi desenvolvida em 1996, mas seus efeitos reverberam até hoje. Eles levaram seus métodos com eles pela organização; muitos dos antigos Piratas agora são líderes na agência e na indústria espacial. A história de outros grupos renegados –como o lendário Skunk Works, da Lockheed Martin, e o projeto Macintosh, de Steve Jobs – demonstra que esse não é um caso único, paroquial. Fomentar tais grupos em sua organização pode tirar o peso da inércia e do declínio e fazer da inovação uma vantagem competitiva.
Imagem: Shutterstock.