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As auroras dos vencedores

Será mesmo que o que você faz de manhã pode aumentar sua renda? Os maiores percentuais de milionários que acordam cedo, a sabedoria grega e os provérbios bíblicos dizem isso, mas pedem análise de contexto para serem bem interpretadas

Cássio Pantaleoni
29 de julho de 2024
As auroras dos vencedores
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Creio que o despertador ainda procrastinava quando meu pai me acordou naquela segunda-feira de Março de 1973. As aulas matinais eram novidade para um menino que, até então, estudara apenas no período da tarde. Ele não prescreveu qualquer provérbio do tipo “_Deus ajuda quem cedo madruga_” para que eu animasse os olhos com a penumbra que espreitava à janela. Apenas inaugurou, com o cutucão certeiro no meu ombro direito e a motivação de um trissílabo, o ritual que se cumpriria durante os sucessivos anos letivos: “_Levanta!_”.

Pois o justo não tinha ideia de que, no último março de 2019, a efeméride relativa aos 46 anos daquele episódio haveria de ser celebrada de maneira similar: o precoce despertar de quem acompanha auroras. Sim. Desde aquela época, salvo raras exceções ou excessos, sempre evoco aquele modo imperativo de meu pai e pulo da cama como se estivesse perdendo a hora. Se isso ajudou minha carreira? Não sei dizer.

Coincidentemente ou não, um artigo publicado na versão digital da revista _Inc._, por Peter Gasca – empreendedor, consultor e conselheiro da Startup.SC -, em junho deste ano, desenvolve o tema a partir de uma perspectiva pretensamente alvissareira: “_What You Do in the Morning Can Increase Your Income_”. 

Deixando de lado as tradicionais alusões aos benefícios para corpo e mente, Peter Gasca reapresenta uma pesquisa acerca de como os hábitos matinais estão correlacionados aos indivíduos com maior renda. Entre os resultados, destaca-se que 83% das pessoas que incluem o hábito de verificar seus e-mails pela manhã alcançam o salário médio de $44.442. Em comparação, 25% das pessoas que praticam atividades físicas pela manhã, conquistam renda superior – $51.802. Se você ainda tem dúvida dos benefícios das atividades físicas, é melhor começar a correr, certo?

Ainda, segundo Gasca, a _Business Insider_ descobriu que indivíduos de alta renda estão mais dispostos a antecipar-se ao canto dos galos. Ou seja, é uma sutil referência de que os milionários não dormem no ponto.

A Paidéia – sistema de educação e formação ética da Grécia Antiga – recomendava incluir entre áreas de formação tais como Gramática, Retórica, Música, História, Geografia e Filosofia a prática de atividades físicas que, à época, era denominada Ginástica. Essa menção grega aos cuidados com o corpo inspirou o poeta romano Juvenal na resposta sobre o que as pessoas deviam desejar na vida, cunhando a expressão latina _mens sana en corpore sano_ (uma mente sã num corpo são). Talvez daí decorra a intuição das pessoas de alta renda para a disposição às atividades físicas matinais.

Mas o que dizer da sabedoria dos milionários que compreendem o valor das fendas tênues do dia que empurram os cílios das alvoradas para que na menina dos olhos repouse a luz? Curiosamente, o manuscrito mais lido na história da humanidade – a Bíblia – oferece em Provérbios 19:15, os grãos férteis para que consideremos tal disposição para as antemanhãs: “_A preguiça leva ao sono profundo, e o preguiçoso passa fome_”. Bem, a Bíblia ainda não tinha acesso às evidências da predisposição genética que variam entre os indivíduos.

Contudo, as correlações reapresentadas por Gasca, os percentuais dos milionários que acordam cedo, a sabedoria grega e os provérbios bíblicos sempre pedem contexto para boas interpretações. E já que os provérbios nos encurtam entendimentos, vamos a eles para compreender os contextos de cada caso.

A correlação entre atividades físicas e rendas mais altas não significa que a primeira é causa da segunda. A correlação existiria da mesma maneira se admitíssemos que aqueles que possuem maior renda podem se dar ao luxo de praticar atividades físicas em função de maior poder de aquisição de equipamentos, de casas em bairros seguros, de mensalidades de academias, de serviços de _personal trainer_ etc. Correlação é apenas uma interdependência não necessariamente causal entre duas variáveis. Ou seja, neste quesito é bom lembrar que:  as aparências enganam; o apressado come cru e quente; cada macaco no seu galho, para César o que é de César.

A disposição dos milionários para acordar cedo pode ter várias causas. Trajar as vestes dos bens sucedidos custa caro. Há que se defender o império, refletindo continuamente sobre os riscos iminentes, preocupar-se com isso e com aquilo, e não é qualquer um que está disposto a abraçar essa rotina como se todo o resto fosse secundário. Ou seja, o hábito faz o monge; onde há fumaça, há fogo; seguro morreu de velho. E, afinal, em terra de cego quem tem um olho é rei.

É preciso, apesar de todo o alarde que tais pesquisas suscitam, inclinar-se respeitosamente à sabedoria grega. Mesmo sem a sofisticação instrumental para encontrar correlações como ora são possíveis pela tecnologia analítica, eles demarcaram, no campo da reflexão filosófica, as questões essenciais para que fosse possível desenvolver a _areté_ (virtude) e assim dispor-se ao bem que convém à natureza humana. No campo das virtudes, nunca houve nos gregos alusão à renda, mas ao preparo, à prontidão. É disso, por exemplo, que se nutre a essência do pensamento socrático: a virtude dá-se como fundamento de uma ética do cuidado de si. A ética do cuidado consiste em uma forma de viver, de ser e de se expressar. 

Assim, convém sempre relembrar: a aurora dos vencedores não é aquela que corresponde a chegada da luz no horizonte, e sim aquela que acontece, mais cedo ou mais tarde, dentro de cada um como iluminação de si mesmo. Para mim, essa aurora se dá todos os dias quando ainda escuto a voz daquele meu pai ainda muito jovem, dizendo: “_Levanta!”_.

Crédito da foto: Shutterstock

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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