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Como se programa o futuro de um país?

Três dicas de um “gênio da lâmpada” chamam a atenção para o único modo de fazer isso, que é a educação – e as empresas estão percebendo que também elas precisam agir para mudar a programação

Adriana Salles Gomes
29 de julho de 2024
Como se programa o futuro de um país?
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Imagine que você encontra uma lâmpada parecida com a da história do Aladdin numa caverna lá do Petar, esfrega e surge uma fumacinha e um gênio. Só que esse gênio é metido a educador moderninho e quer ensinar a pescar em vez de dar o peixe. Então, em vez de te conceder três desejos, ele faz três observações e garante que, se você souber agir a partir delas, sua vida vai melhorar muito.

Nos últimos 40 dias, ando com a sensação de ter esfregado uma lâmpada mágica de um gênio moderninho, porque ouvi três observações que não saem da minha cabeça e que podem fazer toda a diferença não para mim apenas, mas para o Brasil e todos os brasileiros. Então, decidi estrear minha coluna aqui no blog de MIT Sloan Management Review Brasil, e celebrar os seis meses de lançamento da nossa revista, com elas. 

A primeira observação se originou no MIT Frontiers #1, o evento dedicado à inteligência artificial organizado por nós no final de outubro. Nosso convidado, Michael Schrage, que é um dos principais pesquisadores da economia digital da MIT Sloan School, disse que a pergunta que hoje as empresas têm de se fazer é: “Quem queremos que nossos clientes se tornem?”. A questão deixou ser “em que negócio nós estamos?”, como o Theodore Levitt tinha nos ensinado, e passou a ser esta – em inglês, who we want our customers to become? 

Ou seja, na visão de Schrage, a real disrupção passa por transformar os clientes em algo diferente do que eles são hoje. Foi o que fez o Henry Ford (e essa teria sido sua principalmente inovação, segundo Schrage), quando transformou seus clientes em motoristas de carros (lembremos que eles eram passageiros de carruagens até então). Foi o que fez o Google ao nos transformar a todos em buscadores de informações. Sem transformar o cliente, não há disrupção de fato. (A MIT Sloan Review Brasil nº 2, que circula em dezembro, vai desenvolver mais esse assunto.)

A segunda observação veio de uma conversa informal com Silvio Meira, uma das maiores autoridades em inovação e em tecnologias digitais do Brasil, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco, cofundador do Porto Digital e do CESAR Instituto de Inovação, e dono de outras tantas credenciais. Fazendo analogias com a linguagem tecnológica, Meira disse que a educação é a maneira de programar o futuro de um país.

A terceira observação emergiu no debate “Educação e Agenda da Competitividade”, organizado pelo Movimento Todos pela Educação (TPE), que foi uma discussão inédita sobre a relação entre os dois assuntos entre lideranças governamentais, não governamentais e do setor privado, ocorrida também no final de outubro. O peruano Jaime Saavedra, manda-chuva da área de educação do Banco Mundial, disse algo que calou fundo: os estudantes mais ricos do Brasil, que estudam em escolas particulares, têm desempenho inferior no Pisa aos estudantes mais pobres do Vietnã. Então, está claro que há a maçã do conhecimento anda podre neste reino, e não é uma podridão que possa ser atribuída apenas ao governo atual, nem meramente uma questão de mais ou menos recursos, uma vez que o Vietnã não tem tantos recursos assim. 

Por que essas três observações me impactaram tanto? Conjugando Silvio Meira (a ideia de que o futuro é programado pela educação) com Jaime Saavedra (nossos alunos nas melhores condições aprendem menos que os vietnamitas nas piores condições), me dei conta de que nosso futuro está muito mais em perigo do que eu pensava – MUITO MAIS. Nas escolas particulares, nenhuma das desculpas usuais se aplica –professores ruins e desmotivados, alunos vindo de famílias desestabilizadas, falta de acesso a conteúdo de primeira linha. 

Pensando em Schrage e no fato de o Brasil precisar desesperadamente de uma disrupção e de dar o tal salto “leapfrog” para compensar as várias décadas perdidas, achei que podemos adaptar a pergunta sobre os consumidores de uma empresa para os trabalhadores de um país e buscar respondê-la como prioridade máxima: quem nós queremos que os brasileiros se tornem? 

Foi isso. O gênio da lâmpada me mostrou, por meio de Schrage, Meira e Saavedra, que o verdadeiro ponto de partida deve ser essa pergunta e a estratégia educacional derivada dele, e que criar um melhor ambiente de negócios (por meio de reforma tributária etc.) vem um pouquinho depois. A sequência da ignição é esta: nos fazemos a pergunta-chave adaptada do Schrage, respondemos e, com base nisso, reformamos o sistema educacional para reprogramar o futuro. Esse é o grande ato estratégico-econômico que o Brasil deve a si mesmo e a sua população. 

(O ideal é fazer tudo ao mesmo tempo, essa reforma na estratégia educacional e a melhora do ambiente de negócios, mas, não sendo possível, a prioridade tem de ser a educação. Falando de modo bem frio e insensível: ainda que máquinas e trabalhadores estrangeiros substituam os brasileiros incompetentes na produção, para o consumo precisaremos de brasileiros capacitados a consumir. E, para que haja futuro, precisaremos de brasileiros não violentos, capazes de viver em sociedade.) 

Vocês veem a educação em pauta? Como disse o Saavedra no debate TPE, um ministro da Educação sempre deveria ser escolhido com a mesma seletividade que o ministro da Economia; o ministro da Educação teria de ser tão importante e tão gabaritado quanto o ministro da Economia. Em alguns países, isso já é assim de fato. (Tanto que, na Alemanha, a primeira-ministra Angela Merkel teve de se explicar publicamente porque o país perdeu dois pontos no Pisa.) E no Brasil? Aqui não é assim, não foi historicamente e hoje é menos ainda. No evento do TPE, ninguém conseguiu dizer nada bom sobre a atual gestão da pasta da educação, por exemplo. Nem Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados. Nem os educadores, como a presidente do TPE, Priscila Cruz. Nem os CEOs das maiores empresas do Brasil que estavam presentes, provavelmente muitos dos quais simpáticos ao ministro da Economia, Paulo Guedes. HÁ ESPERANÇA

Para encerrar essa primeira coluna num tom menos sombrio, quero destacar o que pode nos dar esperança na realização das mudanças necessárias na educação, ainda com base no debate do TPE:

• O desafio agora é mais de qualidade do que de acesso à educação. E a qualidade da aprendizagem depende de como o dinheiro é investido. Por exemplo, leitura e matemática são o que importa – e não um milhão de conteúdos. Além do mais, calcula-se que um terço do dinheiro investido vá para o lixo por ineficiência sistêmica, porque se coloca dinheiro bom em processo ruim. A boa notícia é que temos sobre o que construir: houve uma significativa expansão do tempo que uma criança fica na escola, de 2 para 8 anos. (Claro, dá para melhorar – em Singapura são 13 anos –, mas evoluiu.) 

• Para que uma mudança aconteça, é preciso três coisas: dados nos quais apoiar as ações, bons exemplos a seguir e força política. Temos duas, falta uma. O Brasil é muito rico em dados sobre educação, segundo Saavedra, não fazendo feio em relação ao restante do mundo. Temos bons exemplos em estados como Acre, Espírito Santo, Ceará e Pernambuco. Por exemplo, o Ceará saiu da 16ª posição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em 2007 para a 5ª posição em 2015 e hoje tem a menor diferença de aprendizagem entre alunos de diferentes níveis socioeconômicos. Na mensuração do Ideb relativa ao ensino médio, Pernambuco saiu da 21ª posição para a 1ª no mesmo período e também apresenta o menor índice de desigualdade. A organização não-governamental ICE (Instituto de Corresponsabilidade pela Educação), que esteve envolvida em casos de sucesso de Pernambuco e ajudou outros estados, tem a explicação, segundo seu presidente, o engenheiro pernambucano Marcos Magalhães. Está sendo adotado (já em 55% das escolas) um modelo de escola em tempo integral que também faça o papel da família. Isso não é simples, mas é factível se houver vontade política. 

Ao que tudo indica, vontade política foi o que houve no Espírito Santo, cuja nota no Ideb para ensino médio subiu de 3,6 em 2007 para 4,0 em 2015. O Espírito Santo governado por Paulo Hartung estava pressionado pelo crime organizado e achou que o melhor combate a isso era a educação, embora fosse uma medida de prazo mais longo. O governo bancou o investimento. Teve de enfrentar reações dos professores para aumentar o tempo de estudo das crianças, mas venceu isso ao reestruturar a carreira do magistério e priorizar a remuneração dos professores, e também ao garantir a formação de uma entidade sem fins lucrativos – a Espírito Santo em Ação – que pudesse cobrar uma continuidade da política educacional dos governadores seguintes, para que isso virasse política de estado e não de governo. 

Rodrigo Maia disse que não consegue “discutir qualidade e eficiência de educação com os governadores”. Pode ser que o Congresso sozinho não consiga. Mas outros stakeholders podem intervir. Empresariado também faz política, bem como todos os cidadãos eleitores. Uma parte do empresariado, presente ao debate do TPE, parece ter entendido bem ao menos duas coisas: 

1. Que o grande desafio do Brasil não é mais eliminar a pobreza em si (ao contrário do discurso populista típico), mas eliminar a “pobreza na aprendizagem”, conceito trazido pelo Saavedra que está diretamente ligado à economia e à competitividade. Sabem o que os países ricos têm em comum? Posições elevadas no ranking do índice de capital humano (ICH) que, por sua vez, vêm de um investimento bem gerenciado em educação (em geral, acima de US$ 6 mil por criança/ano – o do Brasil é de US$ 3,8 mil por criança/ano). Empresários da estatura dos que estavam no debate têm muita influência sobre qualquer governo.2. Que o empresariado precisa sair da sua bolha e ajudar o país a vencer esse desafio se realmente quiser sobreviver no mundo da quarta revolução industrial, e não será apenas doando dinheiro por meio de suas fundações. (Sim, mais um item na agenda das prioridades.) Os líderes empresariais têm de agir em relação a isso com “skin in the game”, como diria Nassim Taleb, um matemático apreciado por muitos CEOs, persuadindo os governos executivos e parlamentos (nas várias instâncias e geografias) a conferir qualidade e eficiência aos recursos da educação, e a seguir os modelos de aprendizagem certos.

O primeiro teste de eficiência está na mesa do Congresso Nacional, inclusive, com a reformulação do Fundeb (o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica). Vocês devem ter ouvido falar no Fundeb, todos nós ouvimos. Ele foi criado por emenda constitucional em 2006 e vence no ano que vem, o que é um problemão, porque responde por 63% dos recursos para o financiamento da educação básica do País (100% no caso de alguns municípios). Segundo Priscila Cruz, é adequada a proposta de emenda constitucional 15/2015, que tramita no Congresso Nacional para tornar o Fundeb permanente – Rodrigo Maia a ouviu dizer isso –, porque mantém o fundo corrigindo as distorções que existiam antes. Por exemplo, pela proposta, a distribuição dos recursos passará a ser proporcional às necessidades de cada rede de ensino, fazendo finalmente a distinção (óbvia!) entre municípios mais ricos e mais pobres.

Quem são os brasileiros que o Brasil quer ter no futuro? Nem precisei ir a uma caverna do Petar. O gênio da lâmpada, transmutado em três pessoas de carne e osso (Schrage, Meira e Saavedra), veio me dar as três dicas e eu as repassei aqui; agora, nós temos de fazer o resto.

Adriana Salles Gomes

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