A reconfiguração de cadeias inteiras obrigará as empresas aéreas a mudar seus fornecedores e mercados; a fabricante brasileira de aviões tem a chance de desbravar novos segmentos – isso, se trabalhar com dados
O tamanho dos aviões comerciais pode diminuir, o que representa para a Embraer uma oportunidade única de ganhar novos mercados. Afirmar isso em plena crise mundial parece precoce, mas, se olharmos para o impacto que o apagão de dados gera sobre cadeias de negócios, esse é justamente o raciocínio que deveríamos estar fazendo.
A pandemia reduziu não apenas receitas, mas eliminou dados que permitem aos mercados serem lucrativos. Com as empresas forçadas a se reorganizar, novas cadeias produtivas vão surgir, e essa é justamente a oportunidade que a Embraer tem para crescer – ou desaparecer. O mesmo vale para muitas empresas, é claro.
O mercado de aviação é selvagem. A dependência do dólar e de combustível gera custos com proteção hedge enorme para operações. E a concorrência, global, é acirrada. Mesmo assim, projeções feitas em 2019 mostravam um mercado em franca expansão, com crescimento de 4% ao ano, inaugurando uma década de lucratividade para empresas aéreas. A pandemia atacou em cheio esse cenário. Em 2020, a queda de passageiros transportados chegou a 95%, segundo a IATA, principal organização internacional do setor. E não há, em 2020, previsão de melhora.
Existem diversos fatores para uma empresa aérea ser lucrativa, mas o coração do negócio reside no bom uso de big data. Mais exatamente, na capacidade de usar dados para vencer o maior inimigo do setor: a elasticidade de preço.
Vender passagens aéreas é vencer o desafio constante de, tendo uma aeronave com número de assentos fixos, vender o máximo de passagens pelo maior valor médio final. Estima-se que alguns passageiros vão pagar menos, outros mais, mas, na média, a empresa deve fazer as aeronaves decolarem com o maior preço médio pago pelo maior número possível de clientes.
Aeronaves decolando com a melhor receita exige calcular a todo momento, em todo canal de venda, o preço máximo que o consumidor está disposto a pagar. Essa elasticidade de preço hoje é a regra, mas nem sempre foi assim. Empresas como Ryanair ou Gol entraram no mercado explorando justamente esse fator, e isso forçou todo o mercado a copiar a fórmula. A prática hoje está no transporte rodoviário internacional, como também em aplicativos de logística de Uber a Loggi.
A elasticidade de preço depende de acesso a dados, muitos dados. Esses dados não podem ser simplesmente comprados no mercado. Os dados que realmente importam são aqueles gerados por série histórica pelas próprias empresas. É a relação com o cliente que permite às empresas saber, segundo a segundo, o impacto dos negócio, turismo e economia na disponibilidade do consumidor de pagar por algo.
Com a pandemia desapareceram os clientes, e com os clientes, as séries históricas de dados. Pior: nada indica que os dados de antes serão confiáveis para vender passagens, pois o home office, o turismo regional, o medo de multidão devem impactar a disposição das pessoas em viajar. O quanto isso afetará a elasticidade de preço futura? Impossível prever com exatidão. O que sabemos é que o desafio futuro é talvez ainda maior que o desafio atual, que é pegar as contas com aeronaves no pátio. Quando o mercado voltará a vender passagens com a mesma eficiência? Não sabemos.
Eis então que surge uma oportunidade de ouro para a Embraer. A empresa é líder de mercado em aeronaves com menos assentos que os aviões mais usados na atualidade. O segredo do negócio é encher aeronaves, com o maior ticket médio. Uma forma de resolver isso é ter mais dados. Outra forma é diminuir o número de assentos. Menos assentos significa menor risco de decolar com avião vazio ou menor ticket médio. Ou seja, mesmo vendendo menos passagens é possível gerar maior lucro. Não por aumentar a venda, mas por diminuir o risco.
A Embraer precisou de anos, mas conseguiu introduzir uma nova tendência no mercado. Especializada nos E-jets, aviões com menos de 150 lugares (em geral aeronaves entre 70 e 120 lugares), a empresa possui um grande competidor, a Bombardier, que está anos atrás em tecnologia e vendas. O avião “menor” da Embraer é sucesso na aviação comercial regional, e pode agora ir para além do segmento regional, e ocupar – por que não – até mesmo ponte-aéreas movimentadas.
Antes da pandemia, podíamos imaginar cenários futuros para a Embraer. Havia o sucesso potencial da aeronave militar C-190, a conturbada negociação com a Boeing, o impacto da junção da principal concorrente com a AirBus.
Isso era 2019. Em 2020 veio a pandemia e, com a pandemia, veio o desaparecimento de dados, dados esses que sustentavam cadeias de negócios. Sem os dados, as cadeias se movem como em um jogo de cartas, e a Embraer ganha abertura para concorrer em mercados antes dominados pela AirBus e a Boeing – por exemplo, o segmento das aeronaves ETOPs, de mais de 150 lugares. A Boeing já avisou que a previsão é o mercado de aviação comercial em geral levar ao menos três anos para se recuperar, mas será que essa projeção olha para o mercado que existe hoje, ou o futuro?
Some a isso a reconfiguração do mercado de aviões de carga – que, por causa do excesso de dados novos, vive situação inversa e de expansão. Some a isso a mudança nos escritórios em direção a home offices – que pode gerar crescimento no transporte regional, como nos Estados Unidos e Europa.
E some a isso ainda o potencial da Embraer de atuar no mercado de dados (por exemplo, por meio de sua aquisição recente da Tempest, com a qual expandiu a atuação em segurança cibernética), ou o potencial de fabricantes de aeronaves em geral de atuarem nos ecossistemas de SaaS ou B2B2C. (Pode-se considerar também uma parceria potencial com a China, com mudança de estratégia, o que, desde que se colocou o cenário sem Boeing, tornou-se uma jogada relevante.)
Tudo somado, podemos estar prestes a ver uma reconfiguração do mercado no qual a Embraer, até 2019, nem imaginava participar – e o qual pode agora, inclusive, liderar.
Qual o papel do governo nisso? Por certo, perceber que o caso da Embraer será similar aos de diversas outras empresas nacionais. Ele pode apoiá-las aumentando a oferta de dados de mercado, bons e baratos. Precisamos de mais dados abertos e organizados, de incentivos para tratar dados, de agências reguladoras, agências de fomento e órgãos do poder executivo que invistam logo em formas saudáveis de compartilhamento de dados.
Vejam só o open banking, que cresce – finalmente – no País. Open banking é uma forma de permitir aos consumidores a portabilidade de dados e às empresas, que compartilhem dados protegendo segredos de mercado. Há uma resistência a essa lógica de compartilhamento controlado de dados, mas o apagão de dados recente mostra os limites dessa mentalidade. O compartilhamento de inteligência é lucrativo, principalmente quando todos possuem menos dados do que precisam para operar. A questão não é se vamos compartilhar, mas como o faremos.
Tratar a pandemia como oportunidade é uma necessidade. O apagão de dados na aviação nos revela como cadeias inteiras do mercado serão reconfiguradas, não por estratégia, mas por necessidade. Com o desaparecimento de séries históricas de dados, modelos de negócio entram em crise.
Podemos ir além: com a explosão do mercado de pagamentos eletrônicos e comércio digital, novas cadeias estão se formando e surge demanda. Eis o momento em que o ambiente digital e o analógico se integram de forma intensa – e rápida.
A prática vai exigir das empresas que mudem seus fornecedores e mercados, e quem projetar isso primeiro, ou rápido, pode ter acesso a lugares antes inesperados. Ou desaparecer.”