Esses executivos precisam reescrever as jornadas de seus negócios passando de genéricos a autorais – e a psicanálise corporativa pode ajudar nesse processo
Há uns 10 anos, quando já tinha um certo domínio dos conceitos psicanalíticos, escrevi um trabalho semestral para meu curso de formação chamado “O Lado Profissional do Sujeito e a Transferência”. Apesar do interesse pela psicanálise e a forte intenção de enveredar por aí na maturidade, queria somar meus mais de 30 anos como executivo em empresas nacionais e multinacionais com os então recentes aprendizados sobre saúde mental.
Na época, meu texto foi analisado pelo psicanalista e professor Eduardo Bastos, que corrigiu meu texto e, ao mesmo tempo, marcou definitivamente meu interesse pela psique dos indivíduos no trabalho. São poucos os autores sobre o tema, sendo o médico e psicanalista francês Christophe Dejour, que analisa a vida psíquica no trabalho desde os anos 1980, o mais relevante sobre o tema.
A clínica do trabalho é uma espécie de artifício metapsicológico que se utiliza dos conceitos psicanalíticos para explicar os porquês dos afetos e atitudes nas relações intramuros das empresas. Esse assunto, per se, já preencheria mais uma dezena de outras laudas, mas garanto que você, leitor, como executiva(o) atenta(o) que é, nem precisa fazer muito esforço para entender que esse assunto é extremamente atual, especialmente diante do que vivemos nesse ano de 2020.
Da OMS à FioCruz, do Fantástico ao The New York Post, surgiram centenas, quiçá, milhares de estudos, artigos e matérias sobre o impacto da pandemia na saúde mental dos indivíduos e nas instituições. E as corporações estão se vendo também com mais essa batata quente nas mãos além, é claro, de terem que lidar com sua rentabilidade e performances descendo ralo abaixo.
Muitos negócios estão sobrevivendo. Outros, infelizmente, não. Mas, o que ainda fica praticamente sem providência é o rescaldo emocional (e psíquico) que sobrou no vínculo entre o indivíduo e a empresa após a atual reviravolta nas relações de trabalho com a pandemia.
Qual o papel da minha empresa na comunidade? E na minha vida? A corporação sabe o que está fazendo nesta crise? Como ela – empresa – e eu sobreviveremos? Quais as conexões entre mim e ela, agora num mundo remoto? Há futuro possível? Risco? Como preservo o que já conquistei?
É claríssimo que o sentimento de medo está tomando conta do subtexto das perguntas. As questões são muitas e merecem atenção. Porém, ainda mais atenção merecem os líderes dessas corporações que ficam ensanduichados entre quem tem o poder de responder a essas perguntas e quem as faz.
A regulação da saúde mental no trabalho, as angústias e os sofrimentos de cada profissional da organização perpassam quase que imediatamente por esse personagem chamado “líder”, que é tido como uma espécie de reparador ou interditor (na psicanálise, um superego) sobre grande parte dos assuntos nas relações corporativas. Talvez apenas com seus instintos ele consiga regular a tensão individual e coletiva no trabalho, lute pelo equilíbrio interno do negócio, ao mesmo tempo que é porta voz de mensagens ambivalentes que representam ambos, chefes e subalternos. Mas fazer isso sozinho é difícil. Ele precisa de ajuda.
A figura do líder que a literatura do ‘pop management’ quer formar (e forma), assim como o treinamento de ‘gestão de pessoas’ que se quer impor é, muitas vezes, o do líder genérico, uma espécie de efeito tranquilizador para a empresa, que forma o gestor que corresponde às expectativas e age segundo (seus) padrões. Sem riscos, sem zonas de cinza. Assim, como manda o manual. A psicanálise nos faz refletir se nossas organizações necessitam de fato de um ‘líder de manual’, assim, mais genérico.
Pensar a questão da liderança, por exemplo, do ponto de vista psicanalítico significa fazer a distinção entre o líder genérico (aquele determinado pela cartilha corporativa, orientado pelo discurso normativo institucionalizado), do líder autoral (aquele que tem a coragem de se autorizar em sua singularidade, em seu estilo próprio de executar ‘apesar’ dos manuais corporativos).
Volto a afirmar que o grande feito de Freud não foi a descoberta do inconsciente, mas sim, identificar que o indivíduo está subjugado a ele mesmo pelo inconsciente. Daí o verdadeiro sentido do termo ‘sujeito’. O pai da psicanálise descobriu a riqueza de estar ‘sujeito aos seus recalques e traumas’, o que torna o indivíduo uma figura realmente especial e única.
Será que as empresas estão preparadas para ouvir um líder autoral? Deveriam considerar isso um risco? Mas, elas não demandam autonomia, independência e finalmente, protagonismo, que são os elementos fundamentais da singularidade do sujeito?
Para que a valorização do verdadeiro líder nas empresas não se torne apenas uma figura retórica é necessário que a empresa abrace para si a singularidade desse indivíduo que está longe de ser genérica e que, ao contrário, edifica todas suas virtudes. Finalmente, nos dias atuais, cai por terra a ilusão de que as empresas contratam somente o profissional e não a pessoa que vem junto com ele.
Num exercício ainda raso de investigação sobre as relações de trabalho de hoje podemos dizer que o ditado “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ficou lá no século 20, certo? Errado.
Apesar do aparecimento dos processos agile e lean das empresas tech, a franca maioria dos modelos de negócio por aqui ainda pressupõe relações verticais e hierárquicas fortes, cada uma com seus gabaritos atitudinais e líderes muito bem definidos.
Como consultor de empresas em marketing e comunicação há 38 anos e como psicanalista há 10, ouso comparar o comportamento empresarial sobre o tema e confesso que, colocando lado a lado o século 20 do século 21, vejo evoluções ainda pífias.
A dinâmica das startups – com workflow definido por líderes de projetos, com a formação de grupos auto-organizados de alta performance e altamente colaborativos (efeitos inequívocos do uso da singularidade do sujeito) – é apenas a pontinha de um iceberg que promete um caminho promissor (e gigantesco) para os próximos anos nas pequenas, médias e grandes corporações.
Antes que os profissionais de RH joguem pedra neste artigo, tenho que reconhecer um fato importante sobre o assunto. Enxergo claramente o esforço das companhias (especialmente as de grande porte) em assimilar e aprender com as mudanças do mundo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo) e as vejo também tendo um esforço hercúleo ao tentar transferi-las para suas relações de trabalho e para formação de seus líderes (tarefa capitaneada pelas equipes de RH, muitas vezes em conjunto com a diretoria corporativa ou de marketing).
Em contrapartida, tenho sido testemunha de uma lentidão perigosa na adoção de padrões de comportamentos corporativos mais flexíveis, menos rígidos e hierárquicos. Dado o movimento exponencial do tema, arrisco dizer que o que temos de concreto é ainda uma imagem de microscópio diante da realidade de um país que tem mais de 90% do seu PIB constituído de micro, pequenas e médias empresas procurando gabaritos e manuais e desprezando as singularidades. Vejo ainda muito conflito e ausência de diálogo com os líderes e, especialmente, entre os líderes.
É claro que a agilidade dessa tarefa não está apenas nas mãos de um profissional ou de uma única área na empresa, mas dos altos postos da corporação, seja na diretoria executiva, na posição do CEO e/ou ainda dos conselheiros. Não é por acaso que um dos quatro pilares de sustentação da teoria do capitalismo consciente é o dos líderes conscientes. Sem o efeito cascata que eles provocam, não há mudança possível.
Com a Covid-19, as relações de trabalho mais contemporâneas que vinham sendo endereçadas – meio que ‘em banho maria’ – foram catapultadas lá para frente na fila das prioridades, pois a demanda por respostas tem sido de baixo para cima, ou seja, dos colaboradores para corporação. Como dizem por aí, se acostumar com coisa boa é fácil. Difícil é abandoná-las. No caso das novas relações de trabalho, os colaboradores da empresa estão experimentando o melhor de dois mundos: trabalho remoto e o convívio mais próximo com a sua família.
Quem não quer ver o filhx começar a andar ou ler? Projetos sendo executados no horário em que ‘estou disponível’? Quem não quer ir ao supermercado às 15 horas e trabalhar nos projetos ‘quando o filhx está dormindo?’. Reuniões mais assertivas, menos longas? (cuidado para não abrir o Zoom no banheiro…). Realizar tarefas intelectuais e estratégicas “do seu jeito” sendo mais produtivo ou “produtivo ao seu jeito” (na ausência de chefes pendurados nos ombros impondo seu jeitão de trabalhar)? E por aí vai.
Os líderes que estão reescrevendo a jornada do negócio precisam estar atentos aos novos formatos. A relevância do assunto subiu degraus importantes e passa a estar lado a lado aos assuntos complexos para a sobrevivência do negócio como o e-commerce e a nova jornada do consumidor. Note que a maioria, senão todas as questões que apelam ao sujeito e à sua singularidade na empresa, está se pondo antes mesmo delas serem levantadas como risco pelas corporações.
Nos tempos bicudos que vivemos, temos que repensar nossos papéis e o dos (novos) líderes na corporação e entender seus vínculos e os funcionamentos grupais nela. A psicanálise está onde o ser humano está. É a partir dessa definição que a clínica corporativa se coloca na redefinição do sucesso ou do fracasso empresarial neste século, gerenciando os afetos e valores corporativos.
A pulsão de vida empresarial pode estar contida em quão elástica é a aceitação da vulnerabilidade dos indivíduos e nos sujeitos nas empresas, sejam eles líderes e não líderes.”