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Tecnologia disruptiva de 1984

É hora de analisar também o outro lado dos smart grids e tudo que pode dar errado com essa solução para a energia elétrica

Carlos de Mathias Martins
29 de julho de 2024
Tecnologia disruptiva de 1984
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Imagine um sistema político no qual todos os registros tenham que ser destruídos ou falsificados, todos os livros tenham que ser reescritos, todos os quadros tenham que ser repintados, todas as estátuas, todas as ruas, todos os edifícios renomeados, todas as datas tenham que ser alteradas.

E que esse processo tenha que continuar dia a dia, minuto a minuto. Que, por alguma razão, a história precise ser interrompida. Em resumo: um sistema com uma hierarquia poderosa que determine que nada possa existir além de um presente interminável no qual o governo de ocasião tenha sempre razão.

Acredito enfaticamente que o cenário descrito acima esteja distante da nossa realidade atual. No entanto, há anos, reguladores de governos centrais discutem a criação de uma rede de controle digital que possa integrar por completo sistemas elétricos distribuídos em diversas regiões de um ou mais continentes, os chamados “smart grids”.

Esse modelo é uma consequência natural do desenvolvimento da geração descentralizada de energia combinada com as redes neurais criadas pelas empresas gigantes da tecnologia. Mas, caso ele se viabilize, uma hierarquia de geração e consumo de energia poderá ser estabelecida pelo poder central de um país ou território com consequências terríveis para a liberdade dos seus cidadãos.

Imagine um aparato central com características de rede neural controlando todos os elétrons de um sistema de energia elétrica. O painel solar instalado no teto da escola do bairro aquece a água do seu boiler. Em caso de falta de energia, o carro elétrico estacionado na garagem do vizinho mantém a sua TV ligada.

As intermitências do vento e da radiação solar são compensadas com baterias gigantes que armazenam eletricidade suprindo o consumo da rede com energia renovável.

Parece roteiro de filme de um admirável mundo novo.

Agora imagine este admirável mundo novo no qual o regulador de plantão tem o poder de cortar o fornecimento de eletricidade para o seu desktop sem necessariamente interferir no computador do seu colega na baia vizinha.

Ou imagine franquear ao regulador o poder de cirurgicamente interromper o suprimento de energia da torre de celular da sua região para que você perca acesso por alguns minutos ao seu site favorito de fake news.

LEI DE MOORE X LEI DE WRIGHT

O conceito de um aparato de controle centralizado de sistemas elétricos não é novidade, mas tomou impulso recente com a disseminação das baterias de íon-lítio.

Originalmente utilizadas em laptops e telefones celulares, as baterias de íon-lítio sofreram redução significativa no seu custo de produção com o aumento acentuado da demanda por fabricantes de veículos elétricos. Para que se tenha uma perspectiva do que essa inflexão significa, um único Tesla modelo básico carrega o equivalente a 5.000 baterias de iPhone no seu tanque de eletricidade.

Enfim, traçar prognósticos sobre avanços tecnológicos é tarefa arriscada. Ainda assim, exegetas e jornalistas de revistas de negócios adoram citar a lei de Moore, segundo a qual tecnologias evoluem exponencialmente ao longo do tempo. Acontece que, há aproximadamente dez anos, analistas aplicando modelos preditivos baseados na lei de Moore antecipavam erradamente que a tecnologia de íon-lítio atingira a maturidade.

Ao contrário, análises fundamentadas em outro modelo preditivo, a chamada Lei de Wright, previam corretamente a aceleração da queda nos preços de produção das baterias de íon-lítio. Aplicando premissas atualizadas ao modelo cunhado em 1936 pelo engenheiro norte-americano Theodore Wright e criado originalmente para estimar o custo de produção de aviões, os preços das baterias de íon-lítio continuarão decrescendo por algum tempo.

Evidentemente, quanto mais baratas as baterias elétricas, potencialmente maior será a utilização de sistemas de armazenamento de eletricidade pelas distribuidoras de energia.

A LEI DE MURPHY

Obviamente a alternativa para o controle central dos smart grids poderia ser estabelecida pelo regulador bem intencionado – um evidente oximoro – mediando a competição entre entes privados do setor de tecnologia, evitando assim a mão pesada do “Grande Irmão” estatal.

Eu não apostaria um sabre azul do Darth Vader nessa hipótese. Traçando um paralelo com a concentração de mercado obtida pelas empresas gigantes de tecnologia, arrisco dizer que a opção privativista criaria o maior monopólio da história da humanidade.

Uma das teorias mais interessantes sobre dinâmica dos sistemas é a de que reguladores deveriam sempre projetar aparatos que pudessem ser operados por idiotas, pois cedo ou tarde algum idiota irá operá-los.

Esse adágio remete aos estudos efetuados pelo engenheiro aeroespacial norte-americano Edward Murphy, artífice da lei que leva o seu sobrenome, resumida no seguinte teorema: “Qualquer coisa que possa dar errado vai dar errado no pior momento possível”.

Smart grids ou sistemas digitais baseados em redes neurais para controlar o setor elétrico de um país: a tecnologia está dominada, mas tem tudo para dar errado.”

Carlos de Mathias Martins
Carlos de Mathias Martins é engenheiro de produção formado pela Escola Politécnica da USP com MBA em finanças pela Columbia University. É empreendedor focado em cleantech.

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