Entre o medo e a inércia, até os propósitos de satisfação pessoal, a cultura vivenciada dentro das empresas pode tanto corroer quanto estimular estratégias que buscam promover uma verdadeira transformação (digital)
Em 2018 lançamos um curso na CESAR School, Gestão de Negócios na Era Digital. A motivação surgiu pela percepção de que muitos falavam, mas poucos entendiam, sobre o que é a transformação digital. No entanto, há sinais visíveis de progresso de lá para cá. O curso foi um sucesso, várias turmas foram fechadas rapidamente, já são mais de 250 alumni entre executivos vindos do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil. Vale acrescentar que a transformação digital era, naquele primeiro momento, entendida pelos alunos como tecnologia.
A fase simplista de que investimento em tecnologia resolveria a transformação digital, passou. Que bom. E passou com muito investimento resultando em nada, como aponto em outro artigo. O insucesso dos programas levou os executivos a uma reflexão mais ampla, ao entendimento de que um processo de transformação digital é um processo de transformação. Com a vista mais limpa, então, outros catalisadores puderam ser observados. E um deles, tornou-se o foco, principalmente na pandemia, das conversas atuais: a cultura.
Vamos dar um passo atrás. Não existe transformação sem estratégia. Ou você é daqueles que começa uma transformação sem saber aonde quer ir (como mostra, sobre o tema, o artigo de Silvio Meira e André Neves)?
Aponto, de início, que A. G. Lafley e Roger L. Martin desdobraram a formulação estratégica em cinco etapas, que vão da (1) definição de uma aspiração vencedora até (5) quais sistemas de gestão são necessários. Mais detalhes sobre essa estratégia, aliás, podem ser lidos em “Playing to Win: How Strategy Really Works”.
Já Peter Drucker, numa conversa daquelas de futuro, de quem matou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje, trouxe a questão das questões para o centro ao dizer que “”a cultura come a estratégia no café da manhã””. Ou seja, nenhuma estratégia ou transformação ocorre sem envolvimento de todos. O top down é uma ilusão. Acontece apenas se os colaboradores e demais interessados compartilharem da mesma visão, estiverem engajados quanto necessidade e urgência do passo do processo e, com isso, eles mesmos se transformarem.
A questão então é muito e muito mais complexa do que conduzir boas dinâmicas motivacionais, ou mesmo montar squads para resolver todos e quaisquer problemas que surjam. Aliás, os squads não têm a menor chance se outras amarras organizacionais ainda não forem trabalhadas. Portanto, sim, a questão de como alinhar a cultura, e motivar pessoas é das mais difíceis a se enfrentar durante um processo de transformação (digital).
Alardear o “”fim do mundo””, a despeito do senso comum, propagar o “”mude ou morra!”” não funciona também. Não funcionou com Cassandra em Tróia, por que funcionaria agora? Infelizmente não é uma abordagem tão rara. Com dados cientificamente levantados, em 2005, Alan Deutschman, escreveu na Fast Company um artigo imperdível que precisa ser lido por todos que se interessam sobre o tema. Segundo o autor, mesmo em questões de vida real, envolvendo risco de morte, por exemplo, entre dez pessoas apenas uma muda de comportamento. Posto de outro modo, com 10% do time, ninguém faz muita coisa.
“”A sabedoria convencional diz que a crise é um poderoso motivador para a mudança. Mas as doenças cardíacas graves estão entre as crises pessoais mais sérias e não motivam – pelo menos não o suficiente. Nem dar às pessoas análises precisas e informações factuais sobre suas situações”, afirmou Alan Deutschman.
A abordagem de mudança de cultura de John P. Kotter, uma das mais difundidas e adotadas atualmente em gestão de mudança cultural, sugere que o “”primeiro passo”” seja o desenvolvimento eficaz de um senso de urgência para a mudança, que é sutilmente diferente do conceito de “”risco”.
Diversão motiva mais que o medo, muito mais. No entanto, não é a diversão que você está pensando. Em artigo para a HBR, Lindsay McGregor e Neel Doshi publicaram o resultado de pesquisa que conduziram com mais de 20 mil trabalhadores de mais de 50 grandes empresas, no qual identificaram seis principais razões pelas quais as pessoas trabalham (na ordem de importância): diversão, propósito, potencial, pressão emocional, pressão econômica e inércia, sendo que os três primeiros contam positivamente e os três últimos negativamente.
Dois resultados da pesquisa chamaram minha atenção de imediato. O primeiro deles é sobre o que conta mais: a diversão, que não tem a ver com as festas que a organização promove, mas com o “”gostar”” do que se faz. Já o propósito, o queridinho dos consultores de plantão, muito importante, ficou com um honroso segundo lugar. E veja, isso torna tudo muito mais difícil, porque o propósito pode ser trabalhado no todo, a diversão, depende de cada um.
O segundo dado que me chamou a atenção é que a pressão emocional não é o que conta mais negativamente (será que mudou durante a pandemia?), e sim a inércia, que é quando o motivo está tão distante do trabalho – e de sua identidade – que você não consegue saber porque está trabalhando.
Trabalhos sérios de cultura devem ser conduzidos de forma a potencializar os fatores positivos e atenuar os fatores negativos da motivação em sintonia com a estratégia. Mas mais que isso. Resgato aqui o item (5) do desdobramento estratégico de A. G. Lafley e Roger L. Martin lá de cima: quais sistemas de gestão são necessários?
A menos que você esteja apenas reforçando traços de uma cultura existente, sem objetivos de transformação, com a intenção apenas de aumentar a eficiência da operação atual, trabalhar a cultura de forma isolada só vai causar frustração, ou ficará no nível de superficialidade e, quando os consultores vão embora, tudo volta a ser tão normal como antes.
De acordo com D. Kirk Hamilton, Robin Diane Orr e W. Ellen Raboin, para ser efetiva, uma mudança cultural precisa estar vinculada a outras iniciativas de mudança organizacional, como estrutura, políticas, procedimentos, e recrutamento. Um processo de mudança cultural bem implantado cria um ciclo virtuoso que se auto reforça e promove a transformação de comportamentos alinhados com a estratégia, para que ela não seja devorada no café da manhã.
Deixo abaixo alguns passos (incompletos) de como criar este ciclo virtuoso de mudança cultural:
1. Desenvolva um senso de urgência para a mudança, mas não de risco;
2. Identifique os traços de cultura que precisam entrar e os que precisam sair para que a nova estratégia tenha sucesso (pense nos soft skills, para além dos hard skills);
3. Acrescente ao processo de recrutamento a verificação desses traços;
4. Elabore dinâmicas de mudança cultural e trabalhe com todo o time (existem bons profissionais para isso), para que em conversa franca (nunca fáceis) acrescente alguns traços desejados, e procure atenuar pontos que devem ser apagados;
5. Identifique e remova as barreiras estruturais, para que a nova cultura possa florescer (quem você promove, o que você premia? se apenas a eficiência, não adianta pedir para o povo ser criativo);
6. Reserve uma parte do investimento para ações não pensadas (nos projetos, são os conhecidos known unknowns). Não existem planos que não necessitem correções e não existem transformações sem planos.
Vou voltar ao tema e fazer uma continuação no próximo artigo, mas já reflita e entre em contato comigo se quiser contribuir para o debate ou para a nossa expansão conjunta de conhecimento. Pois, se fazer regime não é fácil, imagina transformar uma organização! Vamos?
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