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Por que o ecossistema de Recife foi um spin-off do Manguebeat

Artes e ciências são separadas na cabeça de muitos, mas não deveriam. O polo de inovação que envolve Cesar e Porto Digital nasceu de um movimento sociocultural a que pesquisadores acadêmicos aderiram. E vem evoluindo assim

H.D. Mabuse
6 de agosto de 2024
Por que o ecossistema de Recife foi um spin-off do Manguebeat
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Na história do Ocidente, alguns conceitos se desenvolvem com uma força que quase nos faz esquecer que são frutos da cultura, extrapolando muitas vezes a vida do próprio autor. Entre esses personagens conceituais, um que marcou a segunda metade do século 20 e nos afeta até hoje é a noção do mundo dividido em duas culturas, as artes e as ciências.

Apesar de ter suas bases em ideias que remontam ao menos ao século 19, foi com o artigo “The Two Cultures”, publicado em 1956 na revista New Statesman, que o conceito pegou. E logo teve o reforço de uma palestra de 1959 em Cambridge, na qual o físico e novelista C.P. Snow apresentou sua hipótese de um mundo do pensamento dividido em dois grupos opostos: de um lado os escritores (que para ele representavam artes e humanidades) e, do outro lado, os físicos (representantes máximos dos cientistas). Na hipótese de Snow, existe um espaço praticamente intransponível entre esses opostos. De lá para cá, muitas foram as abordagens para refutar essa separação – desde argumentos das ciências políticas, dando foco à utilidade desse discurso no contexto das mudanças no liberalismo britânico, até a história da arte, que oferece evidências sucessivas de como as artes dialogam com as ciências, tendo como exemplo evidente o cubismo, que é nomeado a partir de um conceito matemático. Por fim, pensadores como Vilém Flusser entendem que a superação dessa ideia “não apenas é uma tentativa de ultrapassar a crise da ciência e da arte, mas também a crise da sociedade”.

O presente texto pretende apresentar mais uma contribuição para essa percepção de que há uma única cultura humana. Esse conceito foi explicitado de forma brilhante pelo mesmo Flusser na frase “toda criação científica é obra de arte, toda criação artística é articulação de conhecimento”.

O relato que segue se dá a partir de um contexto específico: a segunda metade da década de 1990, na cidade de Recife. Está imerso no caldo que deu origem a um dos mais importantes movimentos culturais recentes do Brasil, o Manguebeat, e em paralelo ao nascimento do Centro de Inovação Cesar.

Mangue e Cesar – uma introdução

Inicialmente concebido como uma cooperativa cultural, o que se tornou o Movimento Mangue tinha na pluralidade e na inovação a sua base, declaração que pode ser constatada em duas grandes metáforas. A primeira dá nome ao próprio movimento, Mangue. Manguezais são “comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo. Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vege­tação do mangue”.

Partindo dessa definição, no manifesto pioneiro do Mangue, “Caranguejos com Cérebro”, aplica-se a metáfora à cena de Recife: assim como 2 mil formas de vida compõem os manguezais, alguns milhares de pessoas se juntavam para formar bandas, dirigir filmes, assistir a shows, produzir moda e, em muitos casos, desenvolver softwares.

A segunda metáfora é “A parabólica fincada na lama”: nascido no início dos anos 1990, o Mangue surge antes da internet comercial no Brasil e com uma imagem inaugural já de conexão com o mundo. A parabólica como símbolo de fluxos globalizados da indústria fonográfica, cinematográfica e da moda tem uma base sólida no material orgânico das tradições locais. Não há dicotomia na imagem, mas complementaridade. “Não espere nada do centro se a periferia está morta”, como cantou – e explicou – a banda Mundo Livre S/A.

É essa cena que dá origem a bandas como Mundo Livre S/A, Chico Science e Nação Zumbi, Eddie, Devotos e Mestre Ambrósio. Com elas surgem uma estrutura de festivais (Abril Pro Rock, RecBeat, Coquetel Molotov) e meios de comunicação como Manguebeat (o programa de rádio) e Manguebit (o website lançado em 1995). Ser um movimento de periferia, tanto na dimensão da indústria da música, quanto na dimensão da produção tecnológica, de um problema se tornou uma característica. Para quem viveu os anos 1980 e 90 no Brasil, a lembrança da indústria brasileira de música veiculada refletia um Brasil que começava no Rio de Janeiro e ia até Salvador; da mesma forma, apesar de uma excelência acadêmica no campo tecnológico, as referências de mercado apontavam o tempo todo para São Paulo e regiões próximas.

Da movimentação toda da cena recifense, fazia parte um grupo de estudantes e jovens professores do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que, segundo o professor Silvio Meira: “Nos encontrávamos em todos os bares, em todos os lugares, na Soparia, com a galera que estava montando o Movimento Mangue (…) a interação com esse movimento cultural e o redesenho que ele fazia das bases da música, misturando maracatu com rock, com música clássica nordestina, foi fundamental para a gente ver que era possível fazer alguma coisa de classe mundial a partir daqui. E isso nos deu energia para tentar criar, com mais afinco, com mais determinação, o que viria a ser o Cesar”.

Foi com esse conjunto de ações de uma forma ou de outra articuladas que, em meados dos anos 1990, a indústria fonográfica ampliou seu olhar para o Nordeste do Brasil e, a partir dos anos 2000, a produção de inovação do Cesar seria reconhecida para além de suas fronteiras regionais.

EM RECIFE – história com olhar modernizante

Existe um conjunto de semelhanças entre o Movimento Mangue e os esforços para a construção de um ecossistema de tecnologias de informação e comunicação (TICs) em Recife, que fizeram com que Silvio Meira declarasse que o Cesar– e, por extensão, o Porto Digital – é um spin-off do Manguebeat. Entre as semelhanças mais relevantes entre eles está a percepção de uma construção baseada na dimensão histórica desse caldo cultural – tratava-se de um olhar modernizante para um legado profundo, por meio de uma inovação geracional.

De um lado, o Manguebeat tem como característica a construção de uma música nova que olha para influências globais, lidando com referências e suas contradições de impacto nacional, que cruzam a história, o hip-hop e o punk dos anos 1980 (representados em Recife pelo Orla Orbe e Serviço Sujo) com Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Lula Cortes, a geração do Beco do Barato e a expressão da contracultura nos anos 1970, –e voltando ainda mais no tempo, com o baião de Luiz Gonzaga, nos anos 1950, e as incursões da academia por Ariano Suassuna rumo à cultura popular. Poderíamos seguir viagem até o início do século 20, ao maestro Zuzinha e o frevo.

De outro lado, a tecnologia vai da fundação do Departamento de Informática na UFPE (futuro Cin), em 1983, ao acesso público gratuito à recém-chegada internet com a Rede Cidadão da Emprel, em 1993, passando pelo primeiro microcomputador nordestino – Corisco, dos anos 1980, criado por Belarmino Alcoforado –e pelas empresas de serviços de computação como a Procenge, de 1972. Podemos voltar até 1963, quando computadores IBM chegaram ao governo de Miguel Arraes.

NO MUNDO – cibernética

Durante a segunda guerra mundial, o matemático Norbet Wiener trabalhava em duas grandes frentes: a programação de máquinas computadoras e o desenvolvimento de mecanismos de controle para artilharia antiaérea. Um ponto em comum entre as duas pesquisas era o estudo de sistemas elétrico-mecânicos que pudessem atuar no lugar de seres humanos. Seja fazendo cálculos de extrema complexidade, seja no que ele descreve como a “previsão do futuro” – ele se refere, nesse caso, à predição da trajetória de uma aeronave que será alvo de artilharia em “algum momento do futuro”, com sucesso.

Dessa pesquisa veio o conceito de controle denominado “feedback”, que realimenta de informação sobre o ocorrido, para compensação do sistema, com o objetivo de alcançar o desempenho desejado. Em sua pesquisa, Wiener observa que esses feed­backs podem sofrer oscilações, que dificultam o controle do sistema. Foi com base nessas observações que ele e o fisiologista Arturo Rosenblueth notaram que alguns problemas neurológicos – como o das pessoas que tinham ataxia, caracterizada pela perda dos movimentos musculares voluntários – davam-se por uma relação muito semelhante ao problema de feedback nos sistemas mecânicos.Então, em 1948, Wiener publica Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina, dando início a uma disciplina que se propunha a abarcar “não apenas o estudo da linguagem, mas também o estudo das mensagens como meios de dirigir a maquinaria e a sociedade, o desenvolvimento de máquinas computadoras e outros autômatos […], certas reflexões sobre a psicologia e o sistema nervoso, e uma nova teoria conjetural do método científico”.

O que une a cibernética com o mangue e o Cesar? A concepção de que, por meio da observação das inovações tecnológicas que todos estavam presenciando, seja nos laboratórios da universidade, seja nas leituras de reportagens, estávamos todos expostos a iniciativas que mimetizavam a vida e a sociedade (realidade virtual, redes de computadores, robótica, biônica, nanotecnologias…) em pesquisas ou em código de software. Em pouco tempo, estávamos todos imersos na cibercultura.É importante ressaltar que essas imersões se davam de formas diferentes. No início do Cesar, a imersão ocorria em uma experiência vivida na ação, nos laboratórios experimentais dessas tecnologias, mas ao mesmo tempo em um tipo muito particular de “aceleracionismo”, uma corrente filosófica que surge nos anos 1990, que defende um aumento da velocidade do desenvolvimento tecnológico dentro de um contexto capitalista e crê que com essa ação, e por meio de um conceito de feedback positivo, será possível superar as contradições atuais do sistema (ou crê que isso deve ser feito de qualquer forma, por ser inevitável).

O Cesar surge com essa característica da esperança no uso das tecnologias emergentes para a superação dos problemas atuais, nascendo no momento do neoliberalismo da era FHC, e com a particularidade de ter um propósito voltado ao desenvolvimento da região e do País. Seria então um subversivo aceleracionismo desenvolvimentista.

No movimento do mangue, a cibernética entra por outra porta e se desenvolve por outro caminho – o da cultura pop – com os ciborgues do mangá Ghost in the Shell, as criaturas orgânico-mecânicas do artista plástico H. R. Giger, o ciberespaço do livro Neuromancer, o sistema de vigilância constante e feedback social da graphic novel V de Vingança, as experiências teóricas de um primitivo VRML [realidade virtual], as experiências de sons e imagens na grande rede de computadores que era a internet – ainda fortemente textual.

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Essas relações associadas às novas tecnologias e ao contexto de cibercultura eram remixadas com as tradições afro-indígenas-brasileiras e povoadas por caboclos de lança e batuques de alfaias. Tratava-se de uma cibernética da vida. Se existe um aceleracionismo no mangue, é o que vem subverter a cibernética e espremê-la entre a ancestralidade e a psicodelia.

Em três mundos – futuros

Em meu breve período de existência, participei de mundos completamente diferentes. Vivi num em que quatro grandes empresas monopolizavam a produção e a distribuição da música, investiam em novos artistas e no qual não existia a internet. Naquele mundo, ainda tínhamos um cientista dos ritmos entre nós, Chico Science: amigo e artífice de parte significativa dessa história, que nos deixou em 1997. A partir dos anos 2000, participei de outro novo mundo, onde a energia toda articulada com o mangue se espalhou, e vem polinizando novas realidades, se desenvolvendo e germinando em uma reinvenção constante e inovadora do Cesar, que sai de suas origens dentro do Centro de Informática da UFPE, com todas as questões de fato tratadas pela engenharia e pelas ciências, e aporta no Bairro do Recife, como uma das primeiras iniciativas no Porto Digital. Ele cresce, se distribui pelo Brasil e, na busca de uma ampliação de experiências e olhares inovativos, concentra-se em questões de interesse mais amplas do que as abordagens técnicas/tecnológicas poderiam dar conta, olhando para a humanidade, as necessidades e os desejos e os questionamentos dos significados do que antes era apresentado apenas como fato.

Em março de 2020 o mundo é novamente outro, drasticamente modificado por uma pandemia de proporções nunca vistas, que expôs as questões mais críticas das últimas décadas – os efeitos das desigualdades sociais e as mudanças no nosso planeta, agora entendido na era do Antropoceno.

O Cesar, nesse contexto, novamente repensa seu olhar – agora para o que a filósofa Maria Puig de la Bellacasa chama de “questões do cuidado”. Entendemos que, para existir um futuro, precisamos de uma noção de cuidado como método em cada uma das áreas do centro de inovação, um cuidado além das disposições morais, para promover a mudança da realidade com a construção do conhecimento e da ação mediados pelas tecnociências.

Bit, beat e outras vibrações, por Chico Saboya

A gênese de um ambiente de inovação pode ser contada de diferentes maneiras. Idealizadores, construtores, sustentadores, empreendedores, cada um tem a sua própria leitura do que se passou num tempo em que tudo era desesperança e de repente ganha forma um ecossistema robusto de inovação, suportado por tecnologias digitais e muita criatividade. Estamos falando do Porto Digital, parque tecnológico de Recife fundado em 2000 e que hoje abriga cerca de 350 empresas, mais de 11 mil trabalhadores do conhecimento e fatura R$ 2,5 bilhões anuais.

É preciso recuar no tempo para ir ao rizoma desse movimento. Recife vivia a sua pior fase na virada dos anos 1980-90, num país que descia ribanceira abaixo nos tresloucados anos Collor. A capital e o estado perdiam posição relativa na economia nordestina, mas os fundamentos estavam lá, intactos. Falamos aqui de conhecimento, tecnologia, criatividade – os ingredientes da nova economia. Havia uma vibração diferente em alguns segmentos da academia, especialmente no Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco, e das artes, com destaque para cinema, artes plásticas e música.

Era o tempo da globalização, das mudanças políticas de orientação liberal e da revolução tecnológica que se (re)inaugurava com a internet. E a ideia dos protagonistas do momento era abrir janelas para o mundo que se redesenhava nesse redemoinho e criar novas alternativas para economias periféricas como Recife. Do outro lado do planeta, na Austrália, a economia criativa decolava – encruzilhada entre ciência, tecnologia, artes e negócios, numa sociedade hiperconectada, em que o lado não prático das coisas passa a ter valor de mercado e significado econômico.

Do lado de cá, numa sincronicidade quase premonitória, eram criados dois movimentos paralelos: o Movimento Mangue e o Delta do Capibaribe. Com o primeiro, cuja imagem de uma parabólica enfiada na lama virou um ícone, a inquietação ganhou forma e os coletivos criativos – a brodagem, numa palavra bem nossa – produziam freneticamente filmes, experimentações visuais, músicas e festivais. Com o segundo, espécie de prolongamento natural de uma longa história de pioneirismo em tecnologia tanto na universidade como no mercado, foram multiplicados empreendimentos de base tecnológica.

As barreiras seculares que excluíam mutuamente cientistas e artistas foram rompidas. Para o bem de todos, os universos das artes e da tecnologia se encontraram e compartilharam a mesma mesa de bar. A frase seminal de Fred Zero Quatro – “computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro” – conectava as artes e as tecnologias digitais ao mercado. As dinâmicas eram tão entrelaçadas que quase não havia distinção – na própria imprensa, inclusive – entre as palavras beat (unidade rítmica) e bit (unidade computacional). Uma das primeiras incubadoras de negócios de tecnologia de chamava BEAT – Base de Empreendimentos Avançados de Tecnologia. O site que – precariamente – reverberava isso tudo, em especial a música, se chamava “Manguebit”. Daí para a criação do Cesar, e deste para o Porto Digital, e do PD para a comunidade empreendedora Manguezal e suas centenas de startups, e dali para Recife ter a maior concentração per capita de estudantes em cursos de computação e informática do país foi um pulo. Mas não foi fácil. E não será nunca.

A experiência do Porto Digital pode ser replicada em outros lugares do Brasil? A construção de ecossistemas de inovação sempre depende muito de “nontradable goods” – componentes intrínsecos a cada lugar, que não se compram em prateleiras. Mas cinco características de Recife são, sim, replicáveis: ter capital humano como base, inovação como regra, diversidade como princípio, conexões como meio para fazer negócios e muito trabalho. Elas estão presentes em todos os ambientes que constroem futuros.

hico Saboya é presidente da Anprotec (Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores) e superintendente do Sebrae-PE.

H.D. Mabuse
H. D. Mabuse é consultor e pesquisador do centro de inovação Cesar e professor da Cesar School. Foi um dos principais idealizadores do movimento Manguebeat. Além de criador do site Manguebit, foi em seu quarto que nasceu a banda Bom Tom Rádio, com Chico Science e Jorge Du Peixe, no fim dos anos 1980, uma espécie de estopim do movimento. Com Du Peixe, criou a capa do álbum ♫Afrociberdelia♫, de Chico Science e Nação Zumbi. Hoje tem se dedicado ao design aplicado à saúde.

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