Fluidez da sociedade pede atenção a marcas que buscam posicionamento
A franca maioria dos projetos de reposicionamento de marca que entram atualmente porta adentro das consultorias de marketing e comunicação tem um pedido muito específico: como deixo minha marca mais atual sem escorregar nas cascas de banana que levam as empresas ao cancelamento?
No momento que estamos vivendo, em um mundo cheio de assuntos controversos e desafiadores, esse pedido parece ser daqueles que valem 1 milhão de dólares. O crescimento de pedidos de projetos de reposicionamento de marca e negócios nas consultorias de branding cresceu absurdamente nos últimos anos. Já vinha crescendo entre 2018 e 2019 e depois explodiu. Só na minha consultoria, os pedidos de branding triplicaram.
Esse é um sintoma decorrente de duas possibilidades. A primeira é da clássica questão que permeia projetos do tipo: a insatisfação dos gestores com o anacronismo de suas marcas nos tempos atuais (ou seja, o quanto ela está alicerçada em valores do passado).
A segunda possibilidade, essa mais de curto prazo e tática, tem correlação direta com a pressão (e necessidade) a que os gestores de marketing estão submetidos para construir pontes de engajamento entre suas marcas e seus usuários mais contemporâneos, seja para manutenção do seu negócio ou simplesmente para entrar no tecido social e dialogar de igual para igual com eles. Não importa qual, ambas necessidades podem direcionar marcas a territórios menos legítimos e desalinhados com seu verdadeiro valor central.
A afirmação acima pode parecer dramática, mas estabelece claramente sobre o que estamos falando. “”Fantasiar”” uma marca ou toda uma empresa com valores ditos “”contemporâneos”” só porque o mundo pede, já que passa por uma transformação de costumes imensa, é fórmula fadada ao fracasso.
É claro que a sociedade tem evoluído em progressão geométrica. O que tinha valor como insumo para estabelecimento dos atos e das atitudes na construção de marcas há 10 anos está sendo colocado em xeque atualmente. A modernidade líquida de Bauman – cunhada já há mais de 30 anos, imagine só – nunca foi tão atual. Ainda estamos testemunhando (sim, no gerúndio) o surgimento de um novo tipo de sociedade, uma sociedade com desejos de ser “”pouco ou não hierárquica””, de ser mais igualitária e mais democrática.
É uma sociedade em que as pessoas assumem o protagonismo como só seu. Que têm o poder de tomar suas próprias decisões, expressam sua opinião livremente (o que deixa as relações entre marcas e usuários muito difícil) e onde o poder deve ser compartilhado.
É no meio desse cenário idealizado de mundo, quase utópico, que os gestores de marketing têm apenas uma certeza: a de que seu usuário virou rei. E, como consequência disso, seu branding deve estar estruturado a partir desta nova realidade. Certo? Errado!
Volto ao nosso primeiro parágrafo. É exatamente esta a maior armadilha do branding ou rebranding das marcas. Branding é sobre identidade. É sobre o que a marca é intrinsecamente, e não sobre o que a sociedade espera do mundo e dela. Somar valores aleatórios às marcas porque esses valores estão alinhados com o mundo contemporâneo é apenas uma idealização estratégica ingênua.
As reais perguntas a serem feitas são:- Quais valores essa marca tem que podem construir um vínculo forte e duradouro com seu usuário e com o mundo de hoje?- Quais as atitudes e os comportamentos “”solares”” que ela tem com seus stakeholders (se é que tem)?- O que é nato e não “”importado”” de fora e que a faz diferente, única, sedutora?- Quais atributos de impacto positivo na cadeia de valor que ela traz na sua genética?
Acreditar que uma empresa e suas marcas tenham que enfrentar uma espécie de divã corporativo para iniciar uma jornada de metamorfose interna para se transformar 100% sua identidade somente para agradar seus usuários e conquistar novos é uma espécie de suicídio empresarial.
(Re)branding é um movimento de gestão de marca que respeita a identidade construída vinda do seu passado (equity), “”apesar”” das demandas do presente e daquelas esperadas no futuro. O (re)branding busca encontrar uma espécie de roupagem no armário corporativo da própria marca que esteja atual e alinhada com a moda, que seja confortável o suficiente para que ela (a marca) se sinta à vontade em exercitar sua missão de negócios e sua cidadania corporativa.
Ele é um movimento que procura construir pontes com a sociedade por meio de legitimidade, de dentro para fora. Estamos falando de trazer à tona o melhor da árvore de valores da marca que estão na sua identidade e em seus atributos, que estão embebidos em seu DNA. Não estamos falando em fantasiar uma marca (e toda a empresa) dos valores vigentes na sociedade só porque estão em evidência. Essa é uma armadilha que vemos com muita frequência.
A crítica aqui vai na quantidade de vezes que vemos projetos já finalizados de branding que nos chegam por clientes que têm mínima relação com o estudo feito, seja porque são apenas benchmark de boas práticas, seja porque são estranhos à genética daquela companhia.
O que seria? Se você estiver falando a respeito das relações do usuário com a marca, por favor, não chame essa atividade de branding. Assuma essa tarefa como algo que pertença a um outro território do marketing, como “”plano de comunicação em apoio a marketing”” ou “”estratégia de pontos de contato””.
De uma vez por todas, comunicação de marca não é branding de marca. Essa confusão é mais uma armadilha do cancelamento. Por quê? Simples de explicar.
Como já dito aqui, branding é o construto da identidade. É a marca na sua genética fundamental: genótipo (como é constituída) e fenótipo (como se mostra arquetipicamente).
Para atuar “”em sociedade”” e entrar no tecido social, essa marca tem que estar presente nos diálogos com seus consumidores nas plataformas de mídia social. Entrar nessas “”conversas”” (especialmente nas conversas da comunidade de seus usuários) é uma tarefa necessária, mas extremamente perigosa, já que é aí que o cancelamento se dá.
Numa analogia simplória, mas eficaz, imagine-se numa festa, entrando numa roda de amigos que se conhecem há muito tempo. Você, como recém-chegado, observa e compartilha suas opiniões para ser “”aceito”” no grupo. A armadilha pode estar aí. Para ser um indivíduo genuíno, transparente e sincero, você compartilha “”sua opinião”” e não a opinião que o grupo gostaria de ouvir.
Essa sutileza nas relações também está presente nas relações entre marca e usuário. As marcas não podem entrar numa espécie de “”vale-tudo”” para se engajar com seus usuários. Se uma marca resolver entrar numa conversa com princípios que não correspondem aos seus valores e à sua própria atitude, ela vai, lá na frente, ser pega de calças curtas. E ser cobrada por atitudes que provavelmente não poderá sustentar.
Se a identidade da marca que você gerencia (branding) for clara, tiver valores e atributos de personalidade cristalizados nos princípios fundamentais de um ambiente corporativo que seja consciente e respeitoso, não há nada o que temer. Agora, se o branding dessa marca estiver baseado em valores e princípios externos, ditados pela fluidez do comportamento da sociedade contemporânea, sua marca pode estar em uma posição delicada, fadada a um cancelamento.
Com absoluta certeza posso afirmar que comunicação de marca nestes tempos atuais é uma tarefa muito delicada para as companhias e seus gestores. O discurso, o tom, os temas, as questões dúbias e ambíguas, as incertezas do comportamento humano, enfim, tudo pode cair na armadilha do cancelamento.
Conhecer profundamente seu consumidor ou usuário (comunicação), reconhecer sua identidade como marca (branding) e entender (e se posicionar) sobre as novas dinâmicas sociais é o tripé em que os gestores de marketing devem basear suas estratégias.
Vai ficar para um novo artigo, o ponto que talvez seja o mais delicado: como as marcas devem se posicionar diante de uma sociedade tão fluida?
Até lá. “